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ENTREVISTA
O cineasta Spike Lee diz que o conflito racial não arrefeceu diante do novo alvo de discriminação: o árabe-americano
Negros e brancos não se unirão contra o "inimigo estrangeiro"
MARILENE FELINTO
ENVIADA ESPECIAL A NOVA YORK
Spike Lee compara os recentes
atentados terroristas aos Estados
Unidos à crise dos mísseis cubanos nos anos 60. "Eu tinha 4 ou 5
anos. Não sabia exatamente o que
estava acontecendo, mas achava
que era muito ruim e que o mundo ia acabar", Lee contou à Folha
em seu escritório de Manhattan.
O mais consagrado cineasta negro dos EUA acha que os americanos estão com medo e perderam a
liberdade de ação. Defende a criação de um Estado palestino já e
diz que o governo Bush só vai parar de bombardear o Afeganistão
quando o país ou Osama bin Laden estiverem "completamente
destroçados".
O autor de "Faça a Coisa Certa",
"Malcolm X" e do mais recente
"A Hora do Show" discorda da
idéia de que o conflito racial entre
negros e brancos tenha arrefecido
diante do novo alvo de discriminação em seu país -os árabe-americanos.
"Não é isso que vai erradicar 400
anos de racismo", diz, e cita como
exemplo da tensão permanente as
primárias democratas para prefeito de Nova York na semana
passada. Segundo ele, 90% dos
votos de Fernando Ferrer, candidato de origem latina, foram de
negros e latinos. O resultado do
pleito democrata ainda não saiu.
Lee, 44, pai de dois filhos, diz
que não filmaria nada que remetesse ao episódio de 11 de setembro. Evita falar sobre o fato de
seus filmes estarem em baixa dentro e fora do país.
Atualmente dedica-se à filmagem de um documentário sobre a
vida de mais um herói negro, ou
"afro-americano", como prefere
dizer. É Jim Brown, lendário jogador de futebol americano nascido
em 1936, ator de cinema e ativista
da causa negra.
Folha - Qual sua impressão dos
EUA depois dos atentados?
Spike Lee - Acho que o mundo
mudou, especialmente a América. Nós realmente vivemos uma
vida dourada até este ponto em
que atrocidades têm acontecido
em todo o mundo, mas muito
pouco aqui. Então, está tudo diferente.
Folha - Como?
Lee - A diferença é que as pessoas não estão agindo como
agiam antes. Elas perderam a liberdade. Estão vivendo o cotidiano com medo. Você não sabe se
vai entrar num avião que vai cair
ou se vai abrir um envelope que
vai explodir ou conter antraz.
Folha - Você sente medo?
Lee - Bom, voar eu não vou por
enquanto. Não diria que estou
com medo, mas cuidadoso. Eu
não entro em um avião desde 10
de setembro, quando fui para Los
Angeles.
Folha - Estava lá quando as torres
caíram?
Lee - Estava. E voltei de trem,
uma viagem de três dias para voltar para casa, para minha família.
Não tinha como voltar de avião.
Nem queria. Tive que trocar de
trem em Chicago. Foram 72 horas
de viagem.
Folha - Viu tudo pela TV?
Lee - É, em LA. Não transmitiram o ataque do primeiro avião
ao vivo. Mas eu vi o segundo.
Folha - O que mais impressionou
você naquela cena?
Lee - Bom, eu vou dizer o que todo mundo já disse. Parecia um filme. Parecia um péssimo filme de
catástrofe.
Folha - Também acha que os terroristas se inspiraram em Hollywood?
Lee - Com certeza que sim.
Aqueles terroristas foram influenciados por Hollywood, mas isso
não é nenhuma revelação. A cultura americana influencia o mundo inteiro. Sempre achei isso e
continuo achando. Os Estados
Unidos são a maior potência
mundial não por causa de nossas
armas, mas por causa de nossa
cultura, de nosso cinema, de nossa música e de nossa televisão. É
assim que nós dominamos o
mundo.
Folha - Hollywood vai mudar depois do que houve?
Lee - Não. Só o tempo vai dizer.
Sei que havia alguns filmes sobre
atentados terroristas programados para serem lançados e que foram adiados. Mas é uma maneira
de fazer dinheiro. Acho que vão
dar um tempo, mas isso não vai
significar o fim dos filmes de catástrofe.
Folha - Você filmaria algo relacionado com aquele dia?
Lee - Não filmaria algo relacionado com o 11 de setembro. Acho
que dá para fazer ótimos filmes
sem ver aquilo, sem nem lidar
com aquilo ou com como aquilo
afetou as pessoas. Mas ainda não
sei como. Não pensei sobre isso.
Folha - O que você acha de serem
os árabe-americanos os novos alvos da discriminação aqui?
Lee - Isso não é novo. Sempre
houve racismo na América.
Folha - Mas não de negros contra
árabes ou...
Lee - Eu não vi nenhum negro
envolvido nessas mortes de árabes que houve aqui recentemente.
Eu não estou dizendo que não podemos ser racistas como todo
mundo, mas eu nunca vi negros
atirando ou coisa do gênero.
Folha - Mas não é verdade que os
muçulmanos estão sendo discriminados?
Lee - Eu não sei. Em primeiro lugar, há muitos negros muçulmanos aqui, especialmente em Nova
York.
Folha - Brancos e negros não estariam mais próximos, agora que o
"inimigo" é estrangeiro?
Lee - Não, não, não. Isso não está
erradicando o racismo neste país.
Não vai erradicar 400 anos de racismo.
Folha - Você não acredita em uma
união entre brancos e negros?
Lee - Não. Isso não vai acontecer. Não vai ficar tudo bem entre
brancos e negros porque houve
um atentado. Basta olhar as recentes primárias democratas para
prefeito de Nova York, que aconteceram na semana passada. Noventa por cento dos votos de Ferrer, que é o candidato latino, foram de negros e latinos. Enquanto
Mark Green recebeu os votos dos
brancos. Está aí de novo a divisão
entre brancos e negros.
Folha - Mas a comunidade árabe-americana está com medo...
Lee - É claro que está. Eles estão
sendo escorraçados. Agora não,
mas logo depois de 11 de setembro eles podiam ser atacados se
andassem pelo bairro errado.
Qualquer um que parecesse árabe
ou que aparentasse ser do Oriente
Médio. Muitos sikhs foram escorraçados e eles nem são árabes.
Folha - Como você mostraria um
árabe-americano em "Faça a Coisa
Certa", se fosse filmá-lo hoje?
Lee - Não sei. Eu não filmaria de
novo "Faça a Coisa Certa". Não
faço "remakes". Fiz aquele filme
há muito tempo, em 1988. Em que
ano estamos?
Folha - Hipoteticamente falando.
Lee - Não faço "remakes", nem
sequências nem continuações.
Folha - O governo Bush está preparado para lidar com esta guerra?
Lee - Já está lidando. Eles estão
atirando e fazendo chover bombas no Afeganistão.
Folha - Essa é a melhor maneira
de reagir?
Lee - Não estou dizendo que é a
melhor maneira, mas aquele ataque terrorista de 11 de setembro
foi tão demoníaco. Matou gente
inocente. Então, eles vão continuar bombardeando. Não estou
dizendo que isso é certo ou errado. Mas aquelas bombas não vão
parar até que os terroristas desistam. Até que o cara (Bin Laden)
ou o Afeganistão estejam completamente destroçados.
Folha - Depois dessa tragédia, os
EUA vão mudar seu relacionamento com o resto do mundo?
Lee - Eu acho que sim. Acho que
isso realmente fez a América se
tornar mais consciente do fato de
que não pode se isolar. E também,
em primeiro lugar, aliás, é uma
coisa que o Bush já disse e Tony
Blair repetiu ontem: que, para haver estabilidade mundial, é preciso existir um Estado palestino. Isso é ponto pacífico. Os palestinos
têm o direito de existir, eu acho,
de possuírem sua própria terra.
Isso não significa que Israel não
deva existir. Até que toda essa coisa não se resolva, aquilo vai funcionar como um barril de pólvora
para a explosão da Terceira Guerra Mundial.
Folha - Você disse que os ataques
terroristas foram contra a cultura
americana, mais do que contra a
política...
Lee - Não, foram contra a América como um todo. Não há como
aqueles caras não terem assistido
aos filmes de Hollywood. Eu
aposto US$ 1 milhão que eles assistiram a "Independence Day".
Eles têm que ter assistido.
Folha - Então é má influência...
Lee - É, sempre há alguma má
influência. Não vou dizer que tudo na cultura americana é ótimo.
Há muitas coisas para mudar.
Quando se é uma potência mundial, o número 1 do mundo, você
sempre será o alvo, porque representa tudo o que é mau. E eu acho
que alguns extremistas islâmicos
pensam que tudo na América é
mau, desde o jeito como as mulheres se vestem até todas as outras coisas. Uma vez que se está
numa sociedade capitalista -e
com isso não estou dizendo "Vamos voltar ao socialismo"-, tudo gira em torno de fazer dinheiro. Não importa se as pessoas são
mortas ou atacadas. Muitas vezes
isso tem pouca importância. Ainda que a natureza tenha que ser
destruída para se fazer dinheiro,
destroem. Veja o que aconteceu
no Brasil com a floresta Amazônica. Eles acabaram com ela, por dinheiro.
Folha - O que você pensa do posicionamento dos negros muçulmanos americanos?
Lee - Em relação a quê?
Folha - Às questões de gênero,
por exemplo. Na Nação do Islã (do
líder negro Louis Farrakhan) as
mulheres também são submissas.
Lee - Não posso dizer que concordo, mas é a religião deles. É a
religião que eles escolheram para
seguir. E nunca escutei Farrakhan
dizer isso.
Folha - Você não considera Farrakhan um extremista?
Lee - Extremista? Como?
Folha - Um radical?
Lee - Bom, se é radical pensar
que os negros não são inferiores,
então ele é radical.
Folha - Você imaginava que os Estados Unidos despertassem tanto
ódio estrangeiro quanto ficou demonstrado em 11 de setembro?
Lee - Eu não acho que o que
aconteceu ali representa como o
mundo se sente em relação à
América. Pergunta número um:
por que tanta gente fica querendo
vir viver nos EUA?
Veja quantas nacionalidades temos aqui. É porque na América
você tem chance de melhorar sua
vida. Você ainda encontra oportunidade de se aprimorar como
em nenhum outro lugar. Muitos
países e povos têm uma relação de
amor e ódio com os EUA.
Folha - Esta é a primeira vez que
você se sentiu vulnerável como
americano vivendo na América?
Lee - Não. Eu era muito pequeno, mas me lembro da crise dos
mísseis de Cuba. Eu tinha 4 ou 5
anos. Não sabia exatamente o que
estava acontecendo, mas achava
que aquilo era muito ruim e que o
mundo ia acabar.
Folha - Mas nem ali os EUA foram
atacados em seu território.
Lee - Não importa. Havia mísseis russos em Cuba apontados
para os EUA. E Cuba fica a apenas
90 milhas de Miami. Era bem parecido com o que acontece hoje.
Lee - Agora, eu queria perguntar
uma coisa. É verdade que o Brasil
está começando uma ação afirmativa [prática de redução das
desigualdades motivadas por gênero, raça, origem..."?
Folha - Acho que estão tentando
algo nesse sentido. Espero que façam à brasileira, sem imitar a americana.
Lee - Qual a seria a diferença?
Folha - Nossa realidade étnica é
diferente. No Brasil nunca tivemos
segregação.
Lee - Mas qual é a diferença? Não
há. O racismo é o mesmo.
Folha - Não é o mesmo. Segregação gera ódio. Aqui vocês têm ódio
uns dos outros, da cor da pele.
Lee - E não é por ódio que somente 2% dos negros frequentam
a universidade no Brasil?
Folha - Isso é diferença de classe
social, herança da escravidão, ignorância. É tudo menos ódio.
Lee - E escravidão não é ódio? É
ignorância?
Folha - Ódio é eu acenar para um
táxi em Nova York e o motorista
não parar porque acha que sou negra. Isso não aconteceria comigo
no Brasil.
Lee - Você está transformando a
discussão em questão semântica.
Folha - Você é que está. Eu apenas
não concordo com seu ponto de vista. Além do mais, eu frequentei a
universidade.
Lee - Pois eu quero te dizer que
você teve foi muita sorte.
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