São Paulo, quinta-feira, 18 de outubro de 2001

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ENTREVISTA

O cineasta Spike Lee diz que o conflito racial não arrefeceu diante do novo alvo de discriminação: o árabe-americano

Negros e brancos não se unirão contra o "inimigo estrangeiro"

MARILENE FELINTO
ENVIADA ESPECIAL A NOVA YORK

Spike Lee compara os recentes atentados terroristas aos Estados Unidos à crise dos mísseis cubanos nos anos 60. "Eu tinha 4 ou 5 anos. Não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas achava que era muito ruim e que o mundo ia acabar", Lee contou à Folha em seu escritório de Manhattan.
O mais consagrado cineasta negro dos EUA acha que os americanos estão com medo e perderam a liberdade de ação. Defende a criação de um Estado palestino já e diz que o governo Bush só vai parar de bombardear o Afeganistão quando o país ou Osama bin Laden estiverem "completamente destroçados".
O autor de "Faça a Coisa Certa", "Malcolm X" e do mais recente "A Hora do Show" discorda da idéia de que o conflito racial entre negros e brancos tenha arrefecido diante do novo alvo de discriminação em seu país -os árabe-americanos.
"Não é isso que vai erradicar 400 anos de racismo", diz, e cita como exemplo da tensão permanente as primárias democratas para prefeito de Nova York na semana passada. Segundo ele, 90% dos votos de Fernando Ferrer, candidato de origem latina, foram de negros e latinos. O resultado do pleito democrata ainda não saiu.
Lee, 44, pai de dois filhos, diz que não filmaria nada que remetesse ao episódio de 11 de setembro. Evita falar sobre o fato de seus filmes estarem em baixa dentro e fora do país.
Atualmente dedica-se à filmagem de um documentário sobre a vida de mais um herói negro, ou "afro-americano", como prefere dizer. É Jim Brown, lendário jogador de futebol americano nascido em 1936, ator de cinema e ativista da causa negra.

Folha - Qual sua impressão dos EUA depois dos atentados?
Spike Lee -
Acho que o mundo mudou, especialmente a América. Nós realmente vivemos uma vida dourada até este ponto em que atrocidades têm acontecido em todo o mundo, mas muito pouco aqui. Então, está tudo diferente.

Folha - Como?
Lee -
A diferença é que as pessoas não estão agindo como agiam antes. Elas perderam a liberdade. Estão vivendo o cotidiano com medo. Você não sabe se vai entrar num avião que vai cair ou se vai abrir um envelope que vai explodir ou conter antraz.

Folha - Você sente medo?
Lee -
Bom, voar eu não vou por enquanto. Não diria que estou com medo, mas cuidadoso. Eu não entro em um avião desde 10 de setembro, quando fui para Los Angeles.

Folha - Estava lá quando as torres caíram?
Lee -
Estava. E voltei de trem, uma viagem de três dias para voltar para casa, para minha família. Não tinha como voltar de avião. Nem queria. Tive que trocar de trem em Chicago. Foram 72 horas de viagem.

Folha - Viu tudo pela TV?
Lee -
É, em LA. Não transmitiram o ataque do primeiro avião ao vivo. Mas eu vi o segundo.

Folha - O que mais impressionou você naquela cena?
Lee -
Bom, eu vou dizer o que todo mundo já disse. Parecia um filme. Parecia um péssimo filme de catástrofe.

Folha - Também acha que os terroristas se inspiraram em Hollywood?
Lee -
Com certeza que sim. Aqueles terroristas foram influenciados por Hollywood, mas isso não é nenhuma revelação. A cultura americana influencia o mundo inteiro. Sempre achei isso e continuo achando. Os Estados Unidos são a maior potência mundial não por causa de nossas armas, mas por causa de nossa cultura, de nosso cinema, de nossa música e de nossa televisão. É assim que nós dominamos o mundo.

Folha - Hollywood vai mudar depois do que houve?
Lee -
Não. Só o tempo vai dizer. Sei que havia alguns filmes sobre atentados terroristas programados para serem lançados e que foram adiados. Mas é uma maneira de fazer dinheiro. Acho que vão dar um tempo, mas isso não vai significar o fim dos filmes de catástrofe.

Folha - Você filmaria algo relacionado com aquele dia?
Lee -
Não filmaria algo relacionado com o 11 de setembro. Acho que dá para fazer ótimos filmes sem ver aquilo, sem nem lidar com aquilo ou com como aquilo afetou as pessoas. Mas ainda não sei como. Não pensei sobre isso.

Folha - O que você acha de serem os árabe-americanos os novos alvos da discriminação aqui?
Lee -
Isso não é novo. Sempre houve racismo na América.

Folha - Mas não de negros contra árabes ou...
Lee -
Eu não vi nenhum negro envolvido nessas mortes de árabes que houve aqui recentemente. Eu não estou dizendo que não podemos ser racistas como todo mundo, mas eu nunca vi negros atirando ou coisa do gênero.

Folha - Mas não é verdade que os muçulmanos estão sendo discriminados?
Lee -
Eu não sei. Em primeiro lugar, há muitos negros muçulmanos aqui, especialmente em Nova York.

Folha - Brancos e negros não estariam mais próximos, agora que o "inimigo" é estrangeiro?
Lee -
Não, não, não. Isso não está erradicando o racismo neste país. Não vai erradicar 400 anos de racismo.

Folha - Você não acredita em uma união entre brancos e negros?
Lee -
Não. Isso não vai acontecer. Não vai ficar tudo bem entre brancos e negros porque houve um atentado. Basta olhar as recentes primárias democratas para prefeito de Nova York, que aconteceram na semana passada. Noventa por cento dos votos de Ferrer, que é o candidato latino, foram de negros e latinos. Enquanto Mark Green recebeu os votos dos brancos. Está aí de novo a divisão entre brancos e negros.

Folha - Mas a comunidade árabe-americana está com medo...
Lee -
É claro que está. Eles estão sendo escorraçados. Agora não, mas logo depois de 11 de setembro eles podiam ser atacados se andassem pelo bairro errado. Qualquer um que parecesse árabe ou que aparentasse ser do Oriente Médio. Muitos sikhs foram escorraçados e eles nem são árabes.

Folha - Como você mostraria um árabe-americano em "Faça a Coisa Certa", se fosse filmá-lo hoje?
Lee -
Não sei. Eu não filmaria de novo "Faça a Coisa Certa". Não faço "remakes". Fiz aquele filme há muito tempo, em 1988. Em que ano estamos?

Folha - Hipoteticamente falando.
Lee -
Não faço "remakes", nem sequências nem continuações.

Folha - O governo Bush está preparado para lidar com esta guerra?
Lee -
Já está lidando. Eles estão atirando e fazendo chover bombas no Afeganistão.

Folha - Essa é a melhor maneira de reagir?
Lee -
Não estou dizendo que é a melhor maneira, mas aquele ataque terrorista de 11 de setembro foi tão demoníaco. Matou gente inocente. Então, eles vão continuar bombardeando. Não estou dizendo que isso é certo ou errado. Mas aquelas bombas não vão parar até que os terroristas desistam. Até que o cara (Bin Laden) ou o Afeganistão estejam completamente destroçados.

Folha - Depois dessa tragédia, os EUA vão mudar seu relacionamento com o resto do mundo?
Lee -
Eu acho que sim. Acho que isso realmente fez a América se tornar mais consciente do fato de que não pode se isolar. E também, em primeiro lugar, aliás, é uma coisa que o Bush já disse e Tony Blair repetiu ontem: que, para haver estabilidade mundial, é preciso existir um Estado palestino. Isso é ponto pacífico. Os palestinos têm o direito de existir, eu acho, de possuírem sua própria terra. Isso não significa que Israel não deva existir. Até que toda essa coisa não se resolva, aquilo vai funcionar como um barril de pólvora para a explosão da Terceira Guerra Mundial.

Folha - Você disse que os ataques terroristas foram contra a cultura americana, mais do que contra a política...
Lee -
Não, foram contra a América como um todo. Não há como aqueles caras não terem assistido aos filmes de Hollywood. Eu aposto US$ 1 milhão que eles assistiram a "Independence Day". Eles têm que ter assistido.

Folha - Então é má influência...
Lee -
É, sempre há alguma má influência. Não vou dizer que tudo na cultura americana é ótimo. Há muitas coisas para mudar. Quando se é uma potência mundial, o número 1 do mundo, você sempre será o alvo, porque representa tudo o que é mau. E eu acho que alguns extremistas islâmicos pensam que tudo na América é mau, desde o jeito como as mulheres se vestem até todas as outras coisas. Uma vez que se está numa sociedade capitalista -e com isso não estou dizendo "Vamos voltar ao socialismo"-, tudo gira em torno de fazer dinheiro. Não importa se as pessoas são mortas ou atacadas. Muitas vezes isso tem pouca importância. Ainda que a natureza tenha que ser destruída para se fazer dinheiro, destroem. Veja o que aconteceu no Brasil com a floresta Amazônica. Eles acabaram com ela, por dinheiro.

Folha - O que você pensa do posicionamento dos negros muçulmanos americanos?
Lee -
Em relação a quê?

Folha - Às questões de gênero, por exemplo. Na Nação do Islã (do líder negro Louis Farrakhan) as mulheres também são submissas.
Lee -
Não posso dizer que concordo, mas é a religião deles. É a religião que eles escolheram para seguir. E nunca escutei Farrakhan dizer isso.

Folha - Você não considera Farrakhan um extremista?
Lee -
Extremista? Como?

Folha - Um radical?
Lee -
Bom, se é radical pensar que os negros não são inferiores, então ele é radical.

Folha - Você imaginava que os Estados Unidos despertassem tanto ódio estrangeiro quanto ficou demonstrado em 11 de setembro?
Lee -
Eu não acho que o que aconteceu ali representa como o mundo se sente em relação à América. Pergunta número um: por que tanta gente fica querendo vir viver nos EUA?
Veja quantas nacionalidades temos aqui. É porque na América você tem chance de melhorar sua vida. Você ainda encontra oportunidade de se aprimorar como em nenhum outro lugar. Muitos países e povos têm uma relação de amor e ódio com os EUA.

Folha - Esta é a primeira vez que você se sentiu vulnerável como americano vivendo na América?
Lee -
Não. Eu era muito pequeno, mas me lembro da crise dos mísseis de Cuba. Eu tinha 4 ou 5 anos. Não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas achava que aquilo era muito ruim e que o mundo ia acabar.

Folha - Mas nem ali os EUA foram atacados em seu território.
Lee -
Não importa. Havia mísseis russos em Cuba apontados para os EUA. E Cuba fica a apenas 90 milhas de Miami. Era bem parecido com o que acontece hoje.

Lee - Agora, eu queria perguntar uma coisa. É verdade que o Brasil está começando uma ação afirmativa [prática de redução das desigualdades motivadas por gênero, raça, origem..."?

Folha - Acho que estão tentando algo nesse sentido. Espero que façam à brasileira, sem imitar a americana.
Lee -
Qual a seria a diferença?

Folha - Nossa realidade étnica é diferente. No Brasil nunca tivemos segregação.
Lee -
Mas qual é a diferença? Não há. O racismo é o mesmo.

Folha - Não é o mesmo. Segregação gera ódio. Aqui vocês têm ódio uns dos outros, da cor da pele.
Lee -
E não é por ódio que somente 2% dos negros frequentam a universidade no Brasil?

Folha - Isso é diferença de classe social, herança da escravidão, ignorância. É tudo menos ódio.
Lee -
E escravidão não é ódio? É ignorância?

Folha - Ódio é eu acenar para um táxi em Nova York e o motorista não parar porque acha que sou negra. Isso não aconteceria comigo no Brasil.
Lee -
Você está transformando a discussão em questão semântica.

Folha - Você é que está. Eu apenas não concordo com seu ponto de vista. Além do mais, eu frequentei a universidade.
Lee -
Pois eu quero te dizer que você teve foi muita sorte.



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