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Cantor de protesto dos 70 vira hit bolivariano
Propaganda do governo Chávez resgata Alí Primera e usa canções em comícios
Febre se espalha em vídeos pela internet; nas mãos de presidente venezuelano, letras embalam campanha pelo "sim" no referendo
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
Em 2005, Hugo Chávez
transformou a voz de Alí Primera (1942-1985) em Patrimônio Nacional da Venezuela. Foi
o primeiro passo para tornar as
músicas de protesto do cantor,
que haviam feito sucesso nos
anos 70, a trilha sonora oficial
das manifestações chavistas.
Já em maio deste ano, Primera entrou de vez nos lares venezuelanos. Suas canções passaram a embalar programas pró-governo da Tves (Televisora
Venezuelana Estatal), emissora que substituiu a oposicionista RCTV, obrigada a sair do ar
quando sua concessão não foi
renovada por Chávez.
A tentativa do presidente de
transformar Primera numa espécie de Victor Jara de sua revolução bolivariana já pode ser
considerada um sucesso.
Um passeio pelo YouTube ou
pelo MySpace mostra como as
músicas do cantor ganharam
nova vida por meio de videoclipes e montagens divertidas jogadas na rede. Elas mesclam
cenas de manifestações de rua,
cartazes de propaganda e retratos tirados durante shows, comícios e entrevistas.
Porém, diferentemente do
cantor chileno, morto pelo regime Pinochet logo depois do
golpe de 1973, Primera teve
uma relação menos difícil com
as autoridades de seu país.
Apesar de ter sofrido censura
a ponto de ser obrigado a abrir
um selo próprio para gravar
seus 13 discos, Primera pôde
viajar pelo continente, e sua
morte não foi fruto de perseguição política, mas sim de um
acidente de carro numa estrada
perto de Caracas, em 1985.
Ainda assim, Chávez vem
tratando o artista como mártir
e uma espécie de visionário da
revolução que ele hoje encabeça. "Essa pátria que Alí Primera
cantou e com que sonhou é a
que está começando a decolar",
tem repetido publicamente.
Em comício no último dia 4,
Chávez entoou uma de suas
canções para pedir votos pelo
"sim" para sua proposta de reforma constitucional -que será votada em 2 de dezembro.
Em pé de guerra com o cardeal Jorge Urosa Sabino, que se
manifestou contra a mudança,
o presidente citou Primera para pedir um rechaço da população às opiniões do religioso.
"Razão tinha Alí Primera, que
dizia que o povo deveria buscar
os padres das paróquias, e não
os cardeais. Deus está contente
com a revolução. Os padres que
estão perto do povo é que são os
verdadeiros cristãos", bradou.
Nas ruas, o rosto de Primera
pode ser visto em cartazes e
bandeiras, enquanto suas músicas reverberam nos sistemas
de som das aglomerações chavistas -para desespero dos "esquálidos" (apelido que Chávez
cunhou para designar os oposicionistas).
Movimento estudantil
Nascido no interior do país,
Primera passou a infância na
pobreza. Em Caracas, estudou
química na mesma universidade em que, no começo dos anos
60, começou a entoar seus primeiros hinos políticos (confira
algumas letras ao lado).
Depois de vencer um festival
de música de protesto, em 1968,
o Partido Comunista do país
patrocinou sua ida à Europa,
onde lançou os primeiros LPs.
Na volta, passou a fazer shows
em sindicatos, fábricas e escolas e a trabalhar na campanha
eleitoral de José Vicente Rangel, pelo Movimento ao Socialismo (MAS), em 1973. Rangel
foi vice-presidente de Chávez
de 1999 até o ano passado.
A historiadora Tânia Garcia,
da Unesp/Franca, que pesquisa
a canção popular na América
Latina, considera o uso que
Chávez faz da obra de Primera
algo fora de contexto.
"A figura do cantor, do modo
como está sendo recuperada
pela propaganda chavista, está
absolutamente deslocada no
tempo", disse, em entrevista à
Folha. "Chávez corta e cola,
apropria-se de um símbolo pertencente a uma realidade distinta e depois o reinventa."
Para ela, há um descompasso
entre a realidade latino-americana e o tipo de canção de protesto que Chávez quer reviver.
"O mundo do teatro, cinema e
música esteve plenamente integrado às transformações políticas dos anos 60 e 70. Ser artista naquela época significava
ter um posicionamento com relação às ideologias de direita e
de esquerda."
Garcia dá como exemplo o
movimento da Nova Canção,
que se desenvolveu no Chile,
Argentina, Uruguai e Brasil no
período. A idéia era buscar na
tradição folclórica popular elementos musicais que ajudassem a veicular mensagens políticas revolucionárias, então
usadas como expressão contra
a repressão militar.
"No caso do Chile, caberia
mesmo a pergunta. Quem veio
primeiro? Allende ou Victor
Jara? Diferentemente do caso
da Venezuela, a Nova Canção
chilena surgiu e se desenvolveu
no mesmo contexto que levou a
formação da Unidade Popular e
Allende ao poder. Ou seja, ambos foram respostas às demandas sociais e políticas do período. Daí terem sentido bastante
distinto desta apropriação que
Chávez faz de Primera."
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