São Paulo, domingo, 19 de março de 2000


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ARTIGO
Amos Oz diz que papa deve tentar reparar feridas infligidas nos dois povos ao longo da história pela Europa cristã
"Cristãos injustiçaram judeus e árabes"

Leia a seguir a continuação do texto do escritor israelense Amos Oz.

Deve-se, em primeiríssimo lugar, à Igreja Católica, que durante milênios retratou os judeus como assassinos de Deus. Quão assustadores e repugnantes os judeus devem ter parecido a gerações de fiéis cristãos de mentalidade simples: pessoas que eram capazes e se mostraram dispostas a matar um Deus deveriam ser, ao mesmo tempo, sobre e subumanas.
Mas meu Jesus é inteiramente humano. Quando o papa João Paulo 2º for a Nazaré e a Belém, ao mar da Galiléia e a Jerusalém, estará percorrendo o caminho trilhado por um dos judeus mais genuínos que já viveram.
Frequentemente o chamo de rabino Jesus. Alguns de meus amigos judeus, e também alguns cristãos, se sentem pouco à vontade com esse título, mas os discípulos originais de Jesus o chamavam exatamente assim: "rabbi", uma palavra hebraica que significa simplesmente "mestre".
E ele foi professor, um professor judeu não ortodoxo que queria levar o judaísmo de volta ao que via como suas origens puras, ou levá-lo adiante, em direção ao que via como sendo suas consequências mais intransigentes.
Desnecessário dizer que Jesus não era cristão; ele ensinou e debateu em muitas sinagogas, mas jamais poderia ter posto os pés numa igreja, nem feito o sinal da cruz ou se ajoelhado diante de qualquer cruz, ícone ou imagem. Na terminologia moderna, diríamos que ele viveu como judeu reformista e morreu como judeu inconformista.
Frequentemente me pergunto como o rabino Jesus teria se sentido no interior de uma catedral ou em meio às manifestações terrenas do poderio católico. Tento imaginar como o jovem, direto e irônico poeta descalço da Galiléia enxergaria o vigário de Cristo se topasse com ele viajando através da Galiléia nos dias de hoje, acompanhado de seu séquito majestoso e cercado por milhares de guardas armados judeus.
Será que Jesus se enxergaria como um dos convidados? Ou como um dos anfitriões? Estaria no meio da multidão, dando vivas? A visita do pontífice à Galiléia o faria sentir-se mais como minhas tias e minha avó, ou mais como aquelas freiras francesas?
Embora todo cristão o chame de Salvador, para mim ele é Yeshu -Jesus-, filho de Miriam e Yosef, aquele que tinha toda razão no que diz respeito à rigidez e à hipocrisia da religião organizada, por exemplo, e também sobre a necessidade universal de compaixão, mas que provavelmente se enganou profundamente quanto à possibilidade de amor universal, que abrange tudo.
O amor é um artigo raro e, quando espalhado para abranger toda a humanidade, forma uma camada muito fina. Podemos amar uma dúzia de pessoas, talvez duas dúzias, mas se afirmamos amar o Terceiro Mundo inteiro, por exemplo, ou todos os pobres ou todos os cegos, isso significa muito pouco.
Ademais, um amor desse tipo pode facilmente deteriorar quando não correspondido, transformando-se em ódio ou repulsa. Outros sábios judeus foram mais modestos do que Jesus ao pregarem a justiça, a justeza e a caridade, em lugar do amor universal.
Os judeus são vítimas do amor cristão há milhares de anos. Dizem-lhes constantemente que precisam mudar. Precisam amar Jesus, quer o amem, quer não. Como os judeus normalmente têm tido dificuldade em amar Jesus, os inquisidores espanhóis, os perpetradores cristãos de "pogroms" ou os anti-semitas da casa ao lado sempre estiveram ali, prontos a ajudá-los a encontrar o amor.
"A conversão dos judeus", para usar o vocabulário da igreja, virou sinônimo da segunda vinda do Messias à terra, da salvação do mundo. Ao rejeitar Jesus e recusar a conversão, os judeus se tornaram culpados de adiar a Redenção e, com isso, de prolongar o sofrimento do mundo. Por isso mesmo, seu lugar é na cruz.

É claro que isto não é um resumo da história judaico-cristã em sua totalidade. Houve épocas ruins, e outras piores. O ponto mais baixo no relacionamento entre judeus e cristãos, pelo menos desde a época da Inquisição espanhola, se deu no século 20, quando o papa Pio 12 deixou de condenar inequivocamente o massacre dos judeus pela Alemanha nazista e deixou de exortar seu rebanho a dar abrigo aos judeus perseguidos.
No dia 15 de janeiro de 1964 o papa Paulo 6º veio visitar a Terra Santa. Da Cisjordânia jordaniana, ele atravessou a fronteira para Israel, e lá passou algumas horas, visitando locais sagrados mas sem uma única vez proferir a palavra "Israel". Tomou o cuidado de tampouco dizer "judeus", mas fez questão de usar o termo "os filhos do Pacto de Abraão".
Deixou muito claro que viera fazer uma peregrinação, e não uma visita. Concluindo sua estada com uma missa no monte Sion, evitou passar pelo Yad Vashem, o museu nacional do Holocausto, e qualquer outro local que tivesse significado religioso judaico ou nacional israelense.
Em seu discurso de despedida, quando estava prestes a deixar o país que se recusara a citar pelo nome, Paulo 6º, entretanto, elogiou seu mentor, o papa Pio 12, defendendo o silêncio mantido por este durante o Holocausto.
De volta ao Vaticano, enviou um telegrama cortês endereçado ao "Presidente Shazar, Tel Aviv", evitando não apenas usar a palavra "Israel" mas também fazer qualquer referência a Jerusalém como sua capital e, com isso, somando à afronta uma injúria.
Ainda na década de 60, o Vaticano tratava Israel como se não fosse um país, sua população como se não formasse uma nação e seu governo como se não existisse. Como aquelas duas freiras francesas, ficou claro que o papa Paulo 6º se sentiu acabrunhado com o fato de "Jerusalém hoje em dia ser cheia de judeus".
Ao tratar o povo israelense como tratou, esse papa com essa exceção inovadora reforçou em muitos judeus o sentimento amargo e doloroso de terem sido excluídos da família das nações. O rabino Jesus talvez tivesse visto essa conduta papal arrogante como farisaica.
Desde aquela infeliz viagem pontifical anterior à Terra Santa, muita coisa mudou. Ainda antes disso, um avanço inicial nas relações entre a Igreja Católica e o povo judeu foi conseguido pelo papa João 23, que absolveu os judeus da responsabilidade coletiva pela morte de Jesus; com isso, talvez tenha conseguido retirá-los da cruz ou, pelo menos, arrancar alguns dos pregos.
Seguiu-se um início gradativo e hesitante de diálogo entre judeus e católicos, patrocinado pela Igreja, que acabou levando a um pedido oficial de desculpas formulado pela Igreja Católica por seu papel na provação histórica imposta aos judeus.
O papa João Paulo 2º é o espírito vivo que está por trás dos vários passos de reconciliação que culminaram com o reconhecimento oficial do Estado de Israel pelo Vaticano e no estabelecimento de relações diplomáticas plenas entre Israel e o Vaticano.
Apesar de tudo isso, minha única tia que ainda vive (mas já está muito velhinha) ainda não está totalmente satisfeita. Para ela, um pedido de desculpas não é o suficiente. Ela acha que a Igreja Católica -e o mundo cristão de maneira geral- ainda precisam fazer um sério exame de consciência e uma autocrítica profunda em relação ao tratamento histórico que deram aos judeus.
Na visão dela, o mínimo que os cristãos poderiam fazer agora para redimir-se de seus muitos pecados cometidos contra os judeus seria tomar o partido de Israel em sua disputa com os árabes.
Minha tia acha que, enquanto nossa disputa com os árabes não passa de uma escaramuça passageira em torno do direito à terra, o conflito judaico-cristão possui uma vertente teológica sombria que não pode ser resolvida com negociações diplomáticas. Afinal, os árabes nos acusam apenas de tomar suas terras, não de trair seu Deus.
Recentemente, fazendo referência à visita próxima do papa João Paulo 2º, ela comentou, mais ou menos falando consigo mesma: "Talvez seja bom o fato de ele ser polonês. Também vim da Polônia. Ele e eu sabemos a verdade sobre o que os católicos fizeram aos judeus. Ele deveria contar essa verdade a Arafat."
Desconfio que o que minha tia realmente quer do papa é algo que nem mesmo Jesus seria capaz de dar: um rio de amor incondicional, que ela acha que os cristãos devem ao Estado de Israel e a cada judeu individual no mundo. Ela quer que o papa e todos os outros cristãos queiram que Jerusalém esteja repleta de judeus. Depois de tudo que a Igreja infligiu aos judeus por milhares de anos, minha tia não vai se satisfazer com nada menos do que um papa sionista.
Os árabes, por outro lado, querem o papa inteiramente do lado deles. Esperam que a Igreja e toda a cristandade vejam as coisas sob a ótica deles. Ademais, várias publicações árabes frequentemente retratam os judeus como inimigo comum tanto da cristandade quanto do Islã: os judeus são o povo que se obstinou em rejeitar tanto o Salvador cristão quanto o Profeta do Islã.
Indesejados na Europa e rejeitados pelas nações cristãs, esses judeus agora se impõem aos povos muçulmanos do Oriente Médio. Na verdade, algumas das mais repulsivas manifestações anti-semitas islâmicas são tiradas textualmente do imenso arsenal do secular anti-semitismo cristão.
Tanto judeus quanto árabes foram injustiçados pela Europa cristã, embora de maneiras diferentes. Nós, judeus, fomos discriminados, perseguidos e, por último, nos tornamos vítimas de genocídio. Os árabes sofreram as sangrentas cruzadas na Idade Média e, nos tempos modernos, o imperialismo, o colonialismo e a exploração da Europa.
Pelo menos parte da tragédia árabe-israelense está relacionada ao fato de que judeus e árabes, quando se vêem, não se olham nos olhos. Frequentemente vêem uns nos outros a imagem viva de seu opressor comum do passado.
Acredita-se comumente que as vítimas de um mesmo opressor desenvolvem um sentimento de solidariedade mútua. Na realidade, o que acontece com frequência é que, em lugar de irmanar-se no sofrimento, se transformam em inimigos mortais. Duas vítimas do mesmo opressor, dois filhos do mesmo pai cruel, muitas vezes enxergam um no outro não sua própria imagem espelhada, mas um reflexo de seu inimigo comum.
Minhas tias viam os palestinos como nada mais do que uma nova encarnação dos velhos cossacos e nazistas cheios de ódio pelos judeus -para mudar um pouco, vestindo "keffiyas" e ostentando bigodes, mas ainda envolvidos na prática antiga de degolar judeus por pura diversão.
Do mesmo modo, muitos palestinos e outros árabes são incapazes de enxergar a nós, judeus de Israel, como o que realmente somos: um bando de refugiados e sobreviventes traumatizados. Em lugar disso, vêem em nós uma extensão dos arrogantes e opressores europeus que voltaram mais uma vez, desta vez disfarçados de israelenses mas ainda ocupados em tentar colonizar os árabes, tiranizá-los, tomar deles suas terras e suas riquezas.

Quando o papa João Paulo percorrer a Terra Santa, atravessando as partes dela que são o Estado de Israel e aquelas que em breve se tornarão o Estado da Palestina, fará bem se puder transformar sua viagem em mais do que apenas mais uma peregrinação a lugares sagrados. Poderia fazer dela uma visita dotada de significado emocional para duas nações, a dos judeus israelenses e a dos árabes palestinos, profundamente feridas não apenas -e não principalmente- uma pela outra, mas em primeiro lugar e principalmente pela Europa cristã.
Quem sabe a mensagem mais importante do papa durante essa visita pudesse ser dirigida não a judeus ou muçulmanos, mas aos cristãos: a Europa cristã carrega uma responsabilidade de longa data por muito do sofrimento de ambas as partes em conflito no Oriente Médio. Assim, é dever moral da Europa patrocinar a paz no Oriente Médio, ajudando todas as partes de todas as maneiras possíveis.
Em lugar de constantemente tomar partido, levantando um dedo repreensor como um mestre de escola antiquado que censura um aluno insubordinado, é hora de a população da Europa oferecer a todas as partes todas as formas possíveis de apoio moral e material em sua tentativa de chegar a um acordo de conciliação que está fadado a ser doloroso e frustrante para todos os envolvidos.
Já não é necessário que qualquer parte de fora da região opte entre ser pró-israelense ou pró-palestino; hoje já é possível ser pró-paz, nutrindo empatia com ambos. A disputa israelo-árabe possui um lado emocional complexo que foi intensificado por suas respectivas histórias passadas e que carrega as cicatrizes dos confrontos com os cristãos. Nessa dimensão emocional do conflito, o papa talvez pudesse exercer um papel curador, não necessariamente dando ou recebendo perdão, mas oferecendo seu endosso emocional a ambas as partes.
A disputa em torno dos lugares sagrados não é, definitivamente, a causa do conflito israelo-árabe, mas é um de seus campos minados mais repletos de perigo. Nos casos em que as reivindicações conflitantes judaica e muçulmana sobre alguns dos lugares sagrados são abertas e aparentemente insolúveis, o papa erraria se surgisse como parte reivindicadora terceira, falando em nome da igreja ou de toda a cristandade.
Na verdade, acho que a única opção possível para desfazer a tensão em torno dos lugares sagrados disputados consiste em procurar encontrar um modo interino para eles, possibilitando que os fiéis de todas as fés pratiquem suas respectivas religiões, suspendendo todas as questões relativas à propriedade ou soberania ou, até mesmo, ao status final desses lugares.
Quando eu era criança, minha sábia avó me explicou a diferença entre judeus e cristãos em termos simples (mas, na verdade, suas palavras de sabedoria poderiam aplicar-se a quaisquer diferenças religiosas). "Os cristãos", disse minha avó, "acreditam que o Messias já esteve aqui uma vez e vai retornar algum dia; os judeus afirmam que o Messias ainda está por vir. Em torno disso", prosseguiu a vovó, "já se nutriu ódio e derramou sangue sem fim. Por que?", indagou, perplexa. "Por que todo o mundo não pode simplesmente esperar para ver? Se o Messias chegar dizendo "olá, é bom rever vocês", então os judeus terão que admitir que estavam errados. Se, por outro lado, Ele chegar perguntando "como vão vocês?", então o mundo cristão inteiro terá que pedir desculpas aos judeus. Enquanto esse dia não chegar", continuou, " por que não viver e deixar viver, simplesmente?"
"Perdoa-os", disse o rabino Jesus, "porque não sabem o que fazem." Eu concordaria com as sábias palavras cristãs relativas ao perdão, mas não com a parte sobre o "não saber". Devemos procurar perdoar uns aos outros pelas diversas injustiças passadas, mas não devemos fazê-lo com base numa infantilidade moral ou imbecilidade ética. Todos nós sabemos o que estamos fazendo quando infligimos dor, impomos humilhação ou causamos ofensa, porque todos nós, em um momento ou outro, já fomos alvos e vítimas de tudo isso.
Minha avó compreendia isso, e, pelo menos no que diz respeito aos lugares sagrados que tanta ira provocam, vejo a proposta dela como a única realística. Mas será que o papa a endossaria? Será que judeus e muçulmanos conseguiriam conviver com ela? Na verdade, será que todos nós conseguiremos sobreviver sem ela?


Amos Oz, 60, é militante pacifista e o mais renomado escritor israelense contemporâneo. Entre seus romances traduzidos para o português estão "Fima", "A Caixa Preta" e "Pantera no Porão"

Tradução de Clara Allain

Copyright Amos Oz 2000


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