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ARTIGO
Amos Oz diz que papa deve tentar reparar feridas infligidas nos dois povos ao longo da história pela Europa cristã
"Cristãos injustiçaram judeus e árabes"
Leia a seguir a continuação do
texto do escritor israelense Amos
Oz.
Deve-se, em primeiríssimo lugar, à Igreja Católica, que durante
milênios retratou os judeus como
assassinos de Deus. Quão assustadores e repugnantes os judeus devem ter parecido a gerações de
fiéis cristãos de mentalidade simples: pessoas que eram capazes e
se mostraram dispostas a matar
um Deus deveriam ser, ao mesmo
tempo, sobre e subumanas.
Mas meu Jesus é inteiramente
humano. Quando o papa João
Paulo 2º for a Nazaré e a Belém, ao
mar da Galiléia e a Jerusalém, estará percorrendo o caminho trilhado por um dos judeus mais genuínos que já viveram.
Frequentemente o chamo de rabino Jesus. Alguns de meus amigos judeus, e também alguns cristãos, se sentem pouco à vontade
com esse título, mas os discípulos
originais de Jesus o chamavam
exatamente assim: "rabbi", uma
palavra hebraica que significa
simplesmente "mestre".
E ele foi professor, um professor
judeu não ortodoxo que queria levar o judaísmo de volta ao que via
como suas origens puras, ou levá-lo adiante, em direção ao que via
como sendo suas consequências
mais intransigentes.
Desnecessário dizer que Jesus
não era cristão; ele ensinou e debateu em muitas sinagogas, mas
jamais poderia ter posto os pés
numa igreja, nem feito o sinal da
cruz ou se ajoelhado diante de
qualquer cruz, ícone ou imagem.
Na terminologia moderna, diríamos que ele viveu como judeu reformista e morreu como judeu inconformista.
Frequentemente me pergunto
como o rabino Jesus teria se sentido no interior de uma catedral ou
em meio às manifestações terrenas do poderio católico. Tento
imaginar como o jovem, direto e
irônico poeta descalço da Galiléia
enxergaria o vigário de Cristo se
topasse com ele viajando através
da Galiléia nos dias de hoje,
acompanhado de seu séquito majestoso e cercado por milhares de
guardas armados judeus.
Será que Jesus se enxergaria como um dos convidados? Ou como um dos anfitriões? Estaria no
meio da multidão, dando vivas? A
visita do pontífice à Galiléia o faria
sentir-se mais como minhas tias e
minha avó, ou mais como aquelas
freiras francesas?
Embora todo cristão o chame
de Salvador, para mim ele é Yeshu
-Jesus-, filho de Miriam e Yosef, aquele que tinha toda razão
no que diz respeito à rigidez e à hipocrisia da religião organizada,
por exemplo, e também sobre a
necessidade universal de compaixão, mas que provavelmente se
enganou profundamente quanto
à possibilidade de amor universal,
que abrange tudo.
O amor é um artigo raro e,
quando espalhado para abranger
toda a humanidade, forma uma
camada muito fina. Podemos
amar uma dúzia de pessoas, talvez duas dúzias, mas se afirmamos amar o Terceiro Mundo inteiro, por exemplo, ou todos os
pobres ou todos os cegos, isso significa muito pouco.
Ademais, um amor desse tipo
pode facilmente deteriorar quando não correspondido, transformando-se em ódio ou repulsa.
Outros sábios judeus foram mais
modestos do que Jesus ao pregarem a justiça, a justeza e a caridade, em lugar do amor universal.
Os judeus são vítimas do amor
cristão há milhares de anos. Dizem-lhes constantemente que
precisam mudar. Precisam amar
Jesus, quer o amem, quer não. Como os judeus normalmente têm
tido dificuldade em amar Jesus, os
inquisidores espanhóis, os perpetradores cristãos de "pogroms"
ou os anti-semitas da casa ao lado
sempre estiveram ali, prontos a
ajudá-los a encontrar o amor.
"A conversão dos judeus", para
usar o vocabulário da igreja, virou
sinônimo da segunda vinda do
Messias à terra, da salvação do
mundo. Ao rejeitar Jesus e recusar a conversão, os judeus se tornaram culpados de adiar a Redenção e, com isso, de prolongar
o sofrimento do mundo. Por isso
mesmo, seu lugar é na cruz.
É claro que isto não é um resumo da história judaico-cristã em
sua totalidade. Houve épocas
ruins, e outras piores. O ponto
mais baixo no relacionamento
entre judeus e cristãos, pelo menos desde a época da Inquisição
espanhola, se deu no século 20,
quando o papa Pio 12 deixou de
condenar inequivocamente o
massacre dos judeus pela Alemanha nazista e deixou de exortar
seu rebanho a dar abrigo aos judeus perseguidos.
No dia 15 de janeiro de 1964 o
papa Paulo 6º veio visitar a Terra
Santa. Da Cisjordânia jordaniana,
ele atravessou a fronteira para Israel, e lá passou algumas horas,
visitando locais sagrados mas
sem uma única vez proferir a palavra "Israel". Tomou o cuidado
de tampouco dizer "judeus", mas
fez questão de usar o termo "os filhos do Pacto de Abraão".
Deixou muito claro que viera fazer uma peregrinação, e não uma
visita. Concluindo sua estada com
uma missa no monte Sion, evitou
passar pelo Yad Vashem, o museu nacional do Holocausto, e
qualquer outro local que tivesse
significado religioso judaico ou
nacional israelense.
Em seu discurso de despedida,
quando estava prestes a deixar o
país que se recusara a citar pelo
nome, Paulo 6º, entretanto, elogiou seu mentor, o papa Pio 12,
defendendo o silêncio mantido
por este durante o Holocausto.
De volta ao Vaticano, enviou
um telegrama cortês endereçado
ao "Presidente Shazar, Tel Aviv",
evitando não apenas usar a palavra "Israel" mas também fazer
qualquer referência a Jerusalém
como sua capital e, com isso, somando à afronta uma injúria.
Ainda na década
de 60, o Vaticano
tratava Israel como
se não fosse um
país, sua população
como se não formasse uma nação e
seu governo como
se não existisse.
Como aquelas duas
freiras francesas, ficou claro que o papa Paulo 6º se sentiu acabrunhado
com o fato de "Jerusalém hoje em
dia ser cheia de judeus".
Ao tratar o povo
israelense como
tratou, esse papa
com essa exceção
inovadora reforçou
em muitos judeus o
sentimento amargo e doloroso de terem sido excluídos
da família das nações. O rabino Jesus talvez tivesse
visto essa conduta
papal arrogante como farisaica.
Desde aquela infeliz viagem
pontifical anterior à Terra Santa,
muita coisa mudou. Ainda antes
disso, um avanço inicial nas relações entre a Igreja Católica e o povo judeu foi conseguido pelo papa
João 23, que absolveu os judeus
da responsabilidade coletiva pela
morte de Jesus; com isso, talvez
tenha conseguido retirá-los da
cruz ou, pelo menos, arrancar alguns dos pregos.
Seguiu-se um início gradativo e
hesitante de diálogo entre judeus
e católicos, patrocinado pela Igreja, que acabou levando a um pedido oficial de desculpas formulado
pela Igreja Católica por seu papel
na provação histórica imposta
aos judeus.
O papa João Paulo 2º é o espírito
vivo que está por trás dos vários
passos de reconciliação que culminaram com o reconhecimento
oficial do Estado de Israel pelo
Vaticano e no estabelecimento de
relações diplomáticas plenas entre Israel e o Vaticano.
Apesar de tudo isso, minha única tia que ainda vive (mas já está
muito velhinha) ainda não está
totalmente satisfeita. Para ela, um
pedido de desculpas não é o suficiente. Ela acha que a Igreja Católica -e o mundo cristão de maneira geral- ainda precisam fazer um sério exame de consciência e uma autocrítica profunda
em relação ao tratamento histórico que deram aos judeus.
Na visão dela, o mínimo que os
cristãos poderiam fazer agora para redimir-se de seus muitos pecados cometidos contra os judeus
seria tomar o partido de Israel em
sua disputa com os árabes.
Minha tia acha que, enquanto
nossa disputa com os árabes não
passa de uma escaramuça passageira em torno do direito à terra, o
conflito judaico-cristão possui
uma vertente teológica sombria
que não pode ser resolvida com
negociações diplomáticas. Afinal,
os árabes nos acusam apenas de
tomar suas terras, não de trair seu
Deus.
Recentemente, fazendo referência à visita próxima do papa João
Paulo 2º, ela comentou, mais ou
menos falando consigo mesma:
"Talvez seja bom o fato de ele ser
polonês. Também vim da Polônia. Ele e eu sabemos a verdade
sobre o que os católicos fizeram
aos judeus. Ele deveria contar essa
verdade a Arafat."
Desconfio que o que minha tia
realmente quer do papa é algo
que nem mesmo Jesus seria capaz
de dar: um rio de amor incondicional, que ela acha que os cristãos devem ao Estado de Israel e a
cada judeu individual no mundo.
Ela quer que o papa e todos os outros cristãos queiram que Jerusalém esteja repleta de judeus. Depois de tudo que a Igreja infligiu
aos judeus por milhares de anos,
minha tia não vai se satisfazer
com nada menos do que um papa
sionista.
Os árabes, por outro lado, querem o papa inteiramente do lado
deles. Esperam que a Igreja e toda
a cristandade vejam as coisas sob
a ótica deles. Ademais, várias publicações árabes frequentemente
retratam os judeus como inimigo
comum tanto da cristandade
quanto do Islã: os judeus são o povo que se obstinou em rejeitar
tanto o Salvador cristão quanto o
Profeta do Islã.
Indesejados na Europa e rejeitados pelas nações cristãs, esses judeus agora se impõem aos povos
muçulmanos do Oriente Médio.
Na verdade, algumas das mais repulsivas manifestações anti-semitas islâmicas são tiradas textualmente do imenso arsenal do secular anti-semitismo cristão.
Tanto judeus quanto árabes foram injustiçados pela Europa
cristã, embora de maneiras diferentes. Nós, judeus, fomos discriminados, perseguidos e, por último, nos tornamos vítimas de genocídio. Os árabes sofreram as
sangrentas cruzadas na Idade
Média e, nos tempos modernos, o
imperialismo, o colonialismo e a
exploração da Europa.
Pelo menos parte da tragédia
árabe-israelense está relacionada
ao fato de que judeus e árabes,
quando se vêem, não se olham
nos olhos. Frequentemente vêem
uns nos outros a imagem viva de
seu opressor comum do passado.
Acredita-se comumente que as vítimas de um mesmo opressor desenvolvem um sentimento de solidariedade mútua. Na
realidade, o que
acontece com frequência é que, em
lugar de irmanar-se
no sofrimento, se
transformam em
inimigos mortais.
Duas vítimas do
mesmo opressor,
dois filhos do mesmo pai cruel, muitas vezes enxergam
um no outro não
sua própria imagem
espelhada, mas um
reflexo de seu inimigo comum.
Minhas tias viam
os palestinos como
nada mais do que
uma nova encarnação dos velhos cossacos e nazistas
cheios de ódio pelos
judeus -para mudar um pouco, vestindo "keffiyas" e ostentando bigodes, mas ainda envolvidos na
prática antiga de degolar judeus
por pura diversão.
Do mesmo modo, muitos palestinos e outros árabes são incapazes de enxergar a nós, judeus de
Israel, como o que realmente somos: um bando de refugiados e
sobreviventes traumatizados. Em
lugar disso, vêem em nós uma extensão dos arrogantes e opressores europeus que voltaram mais
uma vez, desta vez disfarçados de
israelenses mas ainda ocupados
em tentar colonizar os árabes, tiranizá-los, tomar deles suas terras
e suas riquezas.
Quando o papa João Paulo percorrer a Terra Santa, atravessando as partes dela que são o Estado
de Israel e aquelas que em breve
se tornarão o Estado da Palestina,
fará bem se puder transformar
sua viagem em mais do que apenas mais uma peregrinação a lugares sagrados. Poderia fazer dela
uma visita dotada de significado
emocional para duas nações, a
dos judeus israelenses e a dos árabes palestinos, profundamente
feridas não apenas -e não principalmente- uma pela outra,
mas em primeiro lugar e principalmente pela Europa cristã.
Quem sabe a mensagem mais
importante do papa durante essa
visita pudesse ser dirigida não a
judeus ou muçulmanos, mas aos
cristãos: a Europa cristã carrega
uma responsabilidade de longa
data por muito do sofrimento de
ambas as partes em conflito no
Oriente Médio. Assim, é dever
moral da Europa patrocinar a paz
no Oriente Médio, ajudando todas as partes de todas as maneiras
possíveis.
Em lugar de constantemente tomar partido, levantando um dedo
repreensor como um mestre de
escola antiquado que censura um
aluno insubordinado, é hora de a
população da Europa oferecer a
todas as partes todas as formas
possíveis de apoio moral e material em sua tentativa de chegar a
um acordo de conciliação que está fadado a ser doloroso e frustrante para todos os envolvidos.
Já não é necessário que qualquer parte de fora da região opte
entre ser pró-israelense ou pró-palestino; hoje já é possível ser
pró-paz, nutrindo empatia com
ambos. A disputa israelo-árabe
possui um lado emocional complexo que foi intensificado por
suas respectivas histórias passadas e que carrega as cicatrizes dos
confrontos com os cristãos. Nessa
dimensão emocional do conflito,
o papa talvez pudesse exercer um
papel curador, não necessariamente dando ou recebendo perdão, mas oferecendo seu endosso
emocional a ambas as partes.
A disputa em torno dos lugares
sagrados não é, definitivamente, a
causa do conflito israelo-árabe,
mas é um de seus campos minados mais repletos de perigo. Nos
casos em que as reivindicações
conflitantes judaica e muçulmana
sobre alguns dos lugares sagrados
são abertas e aparentemente insolúveis, o papa erraria se surgisse
como parte reivindicadora terceira, falando em nome da igreja ou
de toda a cristandade.
Na verdade, acho que a única
opção possível para desfazer a
tensão em torno dos lugares sagrados disputados consiste em
procurar encontrar um modo interino para eles, possibilitando
que os fiéis de todas as fés pratiquem suas respectivas religiões,
suspendendo todas as questões
relativas à propriedade ou soberania ou, até mesmo, ao status final desses lugares.
Quando eu era criança, minha
sábia avó me explicou a diferença
entre judeus e cristãos em termos
simples (mas, na verdade, suas
palavras de sabedoria poderiam
aplicar-se a quaisquer diferenças
religiosas). "Os cristãos", disse
minha avó, "acreditam que o
Messias já esteve aqui uma vez e
vai retornar algum dia; os judeus
afirmam que o Messias ainda está
por vir. Em torno disso", prosseguiu a vovó, "já se nutriu ódio e
derramou sangue sem fim. Por
que?", indagou, perplexa. "Por
que todo o mundo não pode simplesmente esperar para ver? Se o
Messias chegar dizendo "olá, é
bom rever vocês", então os judeus
terão que admitir que estavam errados. Se, por outro lado, Ele chegar perguntando "como vão vocês?", então o mundo cristão inteiro terá que pedir desculpas aos judeus. Enquanto esse dia não chegar", continuou, " por que não viver e deixar viver, simplesmente?"
"Perdoa-os", disse o rabino Jesus, "porque não sabem o que fazem." Eu concordaria com as sábias palavras cristãs relativas ao
perdão, mas não com a parte sobre o "não saber". Devemos procurar perdoar uns aos outros pelas diversas injustiças passadas,
mas não devemos fazê-lo com base numa infantilidade moral ou
imbecilidade ética. Todos nós sabemos o que estamos fazendo
quando infligimos dor, impomos
humilhação ou causamos ofensa,
porque todos nós, em um momento ou outro, já fomos alvos e
vítimas de tudo isso.
Minha avó compreendia isso, e,
pelo menos no que diz respeito
aos lugares sagrados que tanta ira
provocam, vejo a proposta dela
como a única realística. Mas será
que o papa a endossaria? Será que
judeus e muçulmanos conseguiriam conviver com ela? Na verdade, será que todos nós conseguiremos sobreviver sem ela?
Amos Oz, 60, é militante pacifista e o mais
renomado escritor israelense contemporâneo. Entre seus romances traduzidos para o português estão "Fima", "A Caixa Preta" e "Pantera no Porão"
Tradução de Clara Allain
Copyright Amos Oz 2000
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