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São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2003

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ARTIGO

O 18 de Brumário de Bush

MICHAEL HARDT
ESPECIAL PARA A FOLHA

 Hegel comenta em algum lugar que todos os fatos e personagens de grande importância na história mundial ocorrem duas vezes, por assim dizer. Ele esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa." Karl Marx

Parecemos condenados à repetição histórica. Há um excesso de fantasmas do passado vagando por nosso atual cenário. É preciso afastar os falsos espectros e ver quais grandes eventos e figuras históricas estão se repetindo hoje.
Sob alguns aspectos, a guerra contra o Iraque e a atual missão global do governo americano parecem repetir os antigos projetos imperialistas europeus. Os atuais esforços não apenas para impor novos regimes no Afeganistão e no Iraque, mas também, de modo mais geral, para refazer a paisagem política no Oriente Médio e até "remodelar o ambiente global" são concebidos e apresentados usando-se os antigos termos da missão civilizadora das potências européias. O presidente Bush poderia se imaginar vestindo o manto dos grandes e nobres imperialistas que educaram os selvagens e levaram a civilização ao mundo. Devemos ter a coragem de ajudá-los, ele diz, e eles nos agradecerão mais tarde. Ou, em um aspecto mais venal, as iniciativas para controlar os vastos campos de petróleo no Iraque e no Oriente Médio certamente lembram diversas guerras imperialistas para acumular riqueza, como as tentativas britânicas um século atrás, na Guerra dos Bôeres, de assumir o controle das grandes minas de ouro da África do Sul.
Apesar dessas semelhanças, porém, os antigos imperialismos não nos ajudam a compreender o que é fundamental em nossa situação contemporânea. Essas comparações realmente não passam de roupas mal ajustadas que disfarçam o que está acontecendo por baixo. A verdadeira repetição histórica está muito mais perto de casa. Poderíamos dizer que os EUA estão repetindo hoje a Guerra do Golfo, de 1991, mas isso é na verdade apenas um elemento de uma repetição histórica muito mais importante: o golpe de Estado no sistema global - um novo 18 de Brumário, desta vez uma repetição de pai e filho, em vez de tio e sobrinho [como Napoleão]. Por golpe de Estado quero dizer aqui a usurpação de poder dentro da ordem governante pelo elemento monárquico unilateral e a correspondente subordinação das forças aristocráticas multilaterais.
O golpe de Estado de Bush pai foi concebido na época como a criação de uma nova ordem mundial. Pouco depois da queda do Muro de Berlim e do colapso da ordem bipolar da Guerra Fria, a primeira Guerra do Golfo ajudou a definir os termos da nova estrutura de poder global. Os EUA, como única superpotência restante, teriam precedência sobre todas as outras, mas não governariam o mundo sozinhos. O papel dos EUA no Primeiro Império trilhou um caminho que combinava superioridade e colaboração. Exerceriam poderes monárquicos, especialmente em questões militares, mas ao mesmo tempo colaborariam em um amplo sistema de poder global constituído por uma rede de potências de diversas capacidades e formas, incluindo os outros países dominantes, juntamente com grandes corporações capitalistas, organizações transnacionais como a ONU e o FMI e muitas outras. A característica essencial do Primeiro Império é que a superioridade dos EUA não contradiz ou impede a participação das outras forças.
O golpe de Estado de Bush filho, que muitas vezes recebe o nome de unilateralidade, vai um passo além na concentração do poder global. O que está claro na nova doutrina americana de ataques preventivos e reestruturação política global é que o país está tentando subordinar todas as potências aristocráticas. Os EUA acreditam que podem governar o mundo sozinhos ou com a mera ajuda de vassalos passivos. Outras potências são aconselhadas a seguir sua liderança, não tanto porque sejam necessárias, mas para não se tornarem irrelevantes.
Enquanto Bush filho interpreta o jovem Bonaparte, a ONU e os países-estados europeus, especialmente França e Alemanha, encontram-se na posição dos partidos parlamentares burgueses da França no século 19, insistindo na multilateralidade contra a unilateralidade do imperador. Essa é a repetição histórica. A luta entre os EUA e a ONU, os esforços americanos para dividir e enfraquecer a Europa e os conflitos na Otan estão muito mais perto da essência dos atuais desenvolvimentos que a própria guerra contra o Iraque. É aí que a hierarquia do Segundo Império - nova ordem mundial 2 - está sendo definida hoje.
Mas toda repetição histórica tem uma diferença. O golpe de Bush filho lembra o do pai na medida em que ambos buscam concentrar mais poder nas mãos dos EUA. No Primeiro Império, porém, o papel monárquico dos EUA na nova ordem mundial foi equilibrado por uma ampla participação aristocrática em uma rede de numerosas potências. Hoje essa natureza dupla do Império - superioridade americana mais ampla colaboração - parece ter sumido. A Europa, a ONU e outras potências multilaterais ameaçam representar uma alternativa eficaz aos EUA. O Segundo Império de Bush filho tenta separar os EUA de todas as outras potências e tornar desnecessária sua colaboração. Podemos ver que a concórdia das potências dominantes do Primeiro Império ruiu.
Em reação ao golpe de Estado bonapartista e à formação do Segundo Império na França do século 19, quando as forças da revolução tinham minguado, Marx procurou motivos de otimismo. Ele não defendeu que se assumisse o lado dos partidos burgueses multilaterais contra o imperador unilateral. Ele viu os conflitos entre as potências dominantes como uma passagem pelo purgatório, em que as forças revolucionárias aparentemente inexistentes estavam apenas cavando túneis no subsolo, esperando o momento para se manifestar. Nós também não temos a intenção de assumir o lado de qualquer das forças que lutam pelo poder no topo da hierarquia global. Hoje, porém, as forças da revolução estão trabalhando em plena vista. Os diversos movimentos que há vários anos vêm protestando contra a atual forma de globalização são centrais nos atos contra a guerra e hoje são cada vez mais reconhecidos como uma "opinião pública global". Essa voz alternativa existente talvez seja a diferença mais importante hoje, que pode nos libertar do trágico ciclo da repetição histórica.


Michael Hardt é professor de literatura da Universidade Duke (EUA) e co-autor, com Antonio Negri, de "Império".


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