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ARTIGO
O 18 de Brumário de Bush
MICHAEL HARDT
ESPECIAL PARA A FOLHA
Hegel comenta em algum lugar que todos os fatos e personagens de grande importância na história mundial ocorrem duas vezes, por assim dizer.
Ele esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa." Karl Marx
Parecemos condenados à repetição histórica. Há um excesso de
fantasmas do passado vagando
por nosso atual cenário. É preciso
afastar os falsos espectros e ver
quais grandes eventos e figuras
históricas estão se repetindo hoje.
Sob alguns aspectos, a guerra
contra o Iraque e a atual missão
global do governo americano parecem repetir os antigos projetos
imperialistas europeus. Os atuais
esforços não apenas para impor
novos regimes no Afeganistão e
no Iraque, mas também, de modo
mais geral, para refazer a paisagem política no Oriente Médio e
até "remodelar o ambiente global"
são concebidos e apresentados
usando-se os antigos termos da
missão civilizadora das potências
européias. O presidente Bush poderia se imaginar vestindo o manto dos grandes e nobres imperialistas que educaram os selvagens e
levaram a civilização ao mundo.
Devemos ter a coragem de ajudá-los, ele diz, e eles nos agradecerão
mais tarde. Ou, em um aspecto
mais venal, as iniciativas para controlar os vastos campos de petróleo no Iraque e no Oriente Médio
certamente lembram diversas
guerras imperialistas para acumular riqueza, como as tentativas britânicas um século atrás, na Guerra
dos Bôeres, de assumir o controle
das grandes minas de ouro da
África do Sul.
Apesar dessas semelhanças, porém, os antigos imperialismos não
nos ajudam a compreender o que
é fundamental em nossa situação
contemporânea. Essas comparações realmente não passam de
roupas mal ajustadas que disfarçam o que está acontecendo por
baixo. A verdadeira repetição histórica está muito mais perto de casa. Poderíamos dizer que os EUA
estão repetindo hoje a Guerra do
Golfo, de 1991, mas isso é na verdade apenas um elemento de uma
repetição histórica muito mais importante: o golpe de Estado no sistema global - um novo 18 de
Brumário, desta vez uma repetição de pai e filho, em vez de tio e
sobrinho [como Napoleão]. Por
golpe de Estado quero dizer aqui a
usurpação de poder dentro da ordem governante pelo elemento
monárquico unilateral e a correspondente subordinação das forças
aristocráticas multilaterais.
O golpe de Estado de Bush pai
foi concebido na época como a
criação de uma nova ordem mundial. Pouco depois da queda do
Muro de Berlim e do colapso da
ordem bipolar da Guerra Fria, a
primeira Guerra do Golfo ajudou
a definir os termos da nova estrutura de poder global. Os EUA, como única superpotência restante,
teriam precedência sobre todas as
outras, mas não governariam o
mundo sozinhos. O papel dos
EUA no Primeiro Império trilhou
um caminho que combinava superioridade e colaboração. Exerceriam poderes monárquicos, especialmente em questões militares, mas ao mesmo tempo colaborariam em um amplo sistema de
poder global constituído por uma
rede de potências de diversas capacidades e formas, incluindo os
outros países dominantes, juntamente com grandes corporações
capitalistas, organizações transnacionais como a ONU e o FMI e
muitas outras. A característica essencial do Primeiro Império é que
a superioridade dos EUA não contradiz ou impede a participação
das outras forças.
O golpe de Estado de Bush filho,
que muitas vezes recebe o nome
de unilateralidade, vai um passo
além na concentração do poder
global. O que está claro na nova
doutrina americana de ataques
preventivos e reestruturação política global é que o país está tentando subordinar todas as potências
aristocráticas. Os EUA acreditam
que podem governar o mundo sozinhos ou com a mera ajuda de
vassalos passivos. Outras potências são aconselhadas a seguir sua
liderança, não tanto porque sejam
necessárias, mas para não se tornarem irrelevantes.
Enquanto Bush filho interpreta
o jovem Bonaparte, a ONU e os
países-estados europeus, especialmente França e Alemanha, encontram-se na posição dos partidos
parlamentares burgueses da França no século 19, insistindo na multilateralidade contra a unilateralidade do imperador. Essa é a repetição histórica. A luta entre os
EUA e a ONU, os esforços americanos para dividir e enfraquecer a
Europa e os conflitos na Otan estão muito mais perto da essência
dos atuais desenvolvimentos que a
própria guerra contra o Iraque. É
aí que a hierarquia do Segundo
Império - nova ordem mundial
2 - está sendo definida hoje.
Mas toda repetição histórica tem
uma diferença. O golpe de Bush filho lembra o do pai na medida em
que ambos buscam concentrar
mais poder nas mãos dos EUA. No
Primeiro Império, porém, o papel
monárquico dos EUA na nova ordem mundial foi equilibrado por
uma ampla participação aristocrática em uma rede de numerosas
potências. Hoje essa natureza dupla do Império - superioridade
americana mais ampla colaboração - parece ter sumido. A Europa, a ONU e outras potências multilaterais ameaçam representar
uma alternativa eficaz aos EUA. O
Segundo Império de Bush filho
tenta separar os EUA de todas as
outras potências e tornar desnecessária sua colaboração. Podemos ver que a concórdia das potências dominantes do Primeiro
Império ruiu.
Em reação ao golpe de Estado
bonapartista e à formação do Segundo Império na França do século 19, quando as forças da revolução tinham minguado, Marx procurou motivos de otimismo. Ele
não defendeu que se assumisse o
lado dos partidos burgueses multilaterais contra o imperador unilateral. Ele viu os conflitos entre as
potências dominantes como uma
passagem pelo purgatório, em que
as forças revolucionárias aparentemente inexistentes estavam apenas cavando túneis no subsolo, esperando o momento para se manifestar. Nós também não temos a
intenção de assumir o lado de
qualquer das forças que lutam pelo poder no topo da hierarquia
global. Hoje, porém, as forças da
revolução estão trabalhando em
plena vista. Os diversos movimentos que há vários anos vêm protestando contra a atual forma de globalização são centrais nos atos
contra a guerra e hoje são cada vez
mais reconhecidos como uma
"opinião pública global". Essa voz
alternativa existente talvez seja a
diferença mais importante hoje,
que pode nos libertar do trágico
ciclo da repetição histórica.
Michael Hardt é professor de literatura
da Universidade Duke (EUA) e co-autor,
com Antonio Negri, de "Império".
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