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MISSÃO NO CARIBE
Enchente mortífera de setembro passado em Gonaives pode se repetir; reforma é suspeita de malversação
Obra antitragédia atrasa no norte do Haiti
FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A GONAIVES
"Você acha que isso está terminado?", pergunta, extremamente
irritada, a economista européia
Ana (nome fictício) ao empreiteiro haitiano Madsen Phileús, contratado para reconstruir um dos
dois principais canais de escoamento de água de Gonaives, no
norte do Haiti.
Mas a questão é retórica, e a resposta, óbvia: cercando um lado
do córrego de água suja existe
apenas uma elevação irregular de
terra, que nem sequer foi compactada. Qualquer leigo rapidamente adivinha que a primeira
chuva mais forte levará a frágil
barreira embora.
E chuva forte é o que não tem
faltado em Gonaives, sobretudo a
partir de junho, quando começa a
temporada de tormentas tropicais no Caribe. Segundo o Instituto Meteorológico dos EUA, a deste ano promete ser difícil: há 70%
de chances de que haja mais furacões do que o normal no oceano
Atlântico; a previsão é que ocorram de 12 a 15 furacões nos próximos meses.
Em setembro do ano passado,
mais de 3.000 haitianos morreram em decorrência da passagem
de um deles, o Jeanne. Boa parte
dos corpos foi encontrada ao longo desse canal, que, com cerca de
5 km, circunda a cidade, uma das
mais pobres do miserável Haiti,
até deixar no mar barrento dessa
parte do Caribe a água marrom
que desce das montanhas descobertas de vegetação. A reforma
prevê obras em cerca de 3 km.
Considerada a região prioritária
para a ajuda humanitária ao Haiti,
o canal de Gonaives é um exemplo de que mesmo o pouco dinheiro liberado até agora pelos
doadores internacionais custa a
dar resultados. Do montante de
US$ 1 bilhão prometido por países ricos a projetos sociais e de infra-estrutura no país, apenas estimados 20% desse valor chegaram
até agora.
Acompanhada por várias crianças, a inspeção, que incluía o arquiteto cubano Juan Carlos González e foi testemunhada pela Folha, percorre alguns metros da
obra precária.
(As crianças, a maioria aparenta
ter cerca de 12 anos de idade, cercam o repórter com perguntas e
piadas, mas o motorista, de Porto
Príncipe, afasta o grupo: "Aqui
em Gonaives são todos canibais",
diz, em referência ao nome da
mais famosa gangue da cidade.)
"O dique não está como previmos", repete Ana mais duas vezes, e a cada vez mais irritada. "O
DDA mentiu?"
A economista, que fiscaliza a
obra financiada por doadores europeus, tem motivos de sobra para estar contrariada. Dos US$ 150
mil previstos para a construção,
70% já foram repassados à empresa de Philéus e à empresa estatal DDA, com a expectativa de que
a obra ficasse pronta até o final de
junho, em tempo para ajudar na
temporada de chuvas.
Agora, fala-se em outubro e novembro - isso se, ironicamente,
um eventual excesso de chuvas
não atrapalhar as obras.
"Eles fizeram o mínimo, 10% do
que deveriam", diz a economista,
quando o haitiano se afasta. "Eles
roubaram o dinheiro." Educada
na Universidade Cambridge (Reino Unido) e há nove meses no
Haiti, ela concordou que a reportagem a acompanhasse, mas com
a condição de que seu nome e o
do doador europeu não fossem
revelados.
Após a inspeção, feita sob um
calor de cerca de 30 ºC, a comitiva
segue para a sede da DDA, cuja sigla significa Departamento de Desenvolvimento de Agricultura do
Departamento de Artibonite. O
órgão foi o responsável pelo projeto de reconstrução do canal, que
não passou por nenhuma reforma em exatos 50 anos.
"Você está no Haiti"
Localizado numa rua sem asfalto, enlameada e esburacada, o escritório do DDA ficou inacessível
por carro depois que uma pequena ponte de concreto partiu ao
meio. É preciso descer e atravessá-la a pé.
"Nós não vimos o que você fez
com os nossos recursos desde a
última vez que estivemos aqui",
afirma Ana, logo ao encontrar
Antoine Bellanoir, responsável
pela obra no DDA. "Você está no
Haiti", é a resposta ouvida pela representante européia.
O grupo entra no escritório.
Ana tenta pressionar: "Como você vai cumprir as obrigações segundo o contrato? E quando?"
"Ne t'inquiete pas", repete Bellanoir três vezes. "Nós faremos o
nosso trabalho."
Na saída da reunião, é a vez de o
arquiteto cubano, há quatro anos
em Gonaives, confidenciar, longe
dos haitianos e de Ana: "Se os estrangeiros não fizerem todo o trabalho, mas todo mesmo, ficará tudo do mesmo jeito, compreendeu?".
Mas González não acredita que
a tragédia do ano passado volte a
se repetir. "Pelo menos os canais
foram limpos da sujeira, a água
escoará mais rápido."
O empreiteiro Phileús, que também é engenheiro civil, tem uma
previsão mais sombria: "Se chover de 15 mm a 20 mm, a água vai
inundar as casas de novo e teremos mais mortos."
Os dois concordam, no entanto,
que já não há mais como reformar o canal a tempo para receber
eventuais tormentas tropicais.
A corrida contra o tempo deu
lugar à roleta russa.
O repórter Fabiano Maisonnave viajou
ao Haiti com as despesas parcialmente
custeadas pelo Ministério da Defesa. O
percurso entre Porto Príncipe e Gonaives
foi feito por meio de um helicóptero das
Nações Unidas
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