São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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MISSÃO NO CARIBE

Enchente mortífera de setembro passado em Gonaives pode se repetir; reforma é suspeita de malversação

Obra antitragédia atrasa no norte do Haiti

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A GONAIVES

"Você acha que isso está terminado?", pergunta, extremamente irritada, a economista européia Ana (nome fictício) ao empreiteiro haitiano Madsen Phileús, contratado para reconstruir um dos dois principais canais de escoamento de água de Gonaives, no norte do Haiti.
Mas a questão é retórica, e a resposta, óbvia: cercando um lado do córrego de água suja existe apenas uma elevação irregular de terra, que nem sequer foi compactada. Qualquer leigo rapidamente adivinha que a primeira chuva mais forte levará a frágil barreira embora.
E chuva forte é o que não tem faltado em Gonaives, sobretudo a partir de junho, quando começa a temporada de tormentas tropicais no Caribe. Segundo o Instituto Meteorológico dos EUA, a deste ano promete ser difícil: há 70% de chances de que haja mais furacões do que o normal no oceano Atlântico; a previsão é que ocorram de 12 a 15 furacões nos próximos meses.
Em setembro do ano passado, mais de 3.000 haitianos morreram em decorrência da passagem de um deles, o Jeanne. Boa parte dos corpos foi encontrada ao longo desse canal, que, com cerca de 5 km, circunda a cidade, uma das mais pobres do miserável Haiti, até deixar no mar barrento dessa parte do Caribe a água marrom que desce das montanhas descobertas de vegetação. A reforma prevê obras em cerca de 3 km.
Considerada a região prioritária para a ajuda humanitária ao Haiti, o canal de Gonaives é um exemplo de que mesmo o pouco dinheiro liberado até agora pelos doadores internacionais custa a dar resultados. Do montante de US$ 1 bilhão prometido por países ricos a projetos sociais e de infra-estrutura no país, apenas estimados 20% desse valor chegaram até agora.
Acompanhada por várias crianças, a inspeção, que incluía o arquiteto cubano Juan Carlos González e foi testemunhada pela Folha, percorre alguns metros da obra precária.
(As crianças, a maioria aparenta ter cerca de 12 anos de idade, cercam o repórter com perguntas e piadas, mas o motorista, de Porto Príncipe, afasta o grupo: "Aqui em Gonaives são todos canibais", diz, em referência ao nome da mais famosa gangue da cidade.)
"O dique não está como previmos", repete Ana mais duas vezes, e a cada vez mais irritada. "O DDA mentiu?"
A economista, que fiscaliza a obra financiada por doadores europeus, tem motivos de sobra para estar contrariada. Dos US$ 150 mil previstos para a construção, 70% já foram repassados à empresa de Philéus e à empresa estatal DDA, com a expectativa de que a obra ficasse pronta até o final de junho, em tempo para ajudar na temporada de chuvas.
Agora, fala-se em outubro e novembro - isso se, ironicamente, um eventual excesso de chuvas não atrapalhar as obras.
"Eles fizeram o mínimo, 10% do que deveriam", diz a economista, quando o haitiano se afasta. "Eles roubaram o dinheiro." Educada na Universidade Cambridge (Reino Unido) e há nove meses no Haiti, ela concordou que a reportagem a acompanhasse, mas com a condição de que seu nome e o do doador europeu não fossem revelados.
Após a inspeção, feita sob um calor de cerca de 30 ºC, a comitiva segue para a sede da DDA, cuja sigla significa Departamento de Desenvolvimento de Agricultura do Departamento de Artibonite. O órgão foi o responsável pelo projeto de reconstrução do canal, que não passou por nenhuma reforma em exatos 50 anos.

"Você está no Haiti"
Localizado numa rua sem asfalto, enlameada e esburacada, o escritório do DDA ficou inacessível por carro depois que uma pequena ponte de concreto partiu ao meio. É preciso descer e atravessá-la a pé.
"Nós não vimos o que você fez com os nossos recursos desde a última vez que estivemos aqui", afirma Ana, logo ao encontrar Antoine Bellanoir, responsável pela obra no DDA. "Você está no Haiti", é a resposta ouvida pela representante européia.
O grupo entra no escritório. Ana tenta pressionar: "Como você vai cumprir as obrigações segundo o contrato? E quando?"
"Ne t'inquiete pas", repete Bellanoir três vezes. "Nós faremos o nosso trabalho."
Na saída da reunião, é a vez de o arquiteto cubano, há quatro anos em Gonaives, confidenciar, longe dos haitianos e de Ana: "Se os estrangeiros não fizerem todo o trabalho, mas todo mesmo, ficará tudo do mesmo jeito, compreendeu?".
Mas González não acredita que a tragédia do ano passado volte a se repetir. "Pelo menos os canais foram limpos da sujeira, a água escoará mais rápido."
O empreiteiro Phileús, que também é engenheiro civil, tem uma previsão mais sombria: "Se chover de 15 mm a 20 mm, a água vai inundar as casas de novo e teremos mais mortos."
Os dois concordam, no entanto, que já não há mais como reformar o canal a tempo para receber eventuais tormentas tropicais.
A corrida contra o tempo deu lugar à roleta russa.


O repórter Fabiano Maisonnave viajou ao Haiti com as despesas parcialmente custeadas pelo Ministério da Defesa. O percurso entre Porto Príncipe e Gonaives foi feito por meio de um helicóptero das Nações Unidas


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