São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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IRAQUE SOB TUTELA

Modalidade de crime provoca fuga da classe média do país e mistura motivos políticos com simples extorsão

Pandêmico, seqüestro atinge todo o Iraque

DAVID GARDNER
DO "FINANCIAL TIMES"

Ninguém está seguro. Absolutamente ninguém. É essa a mensagem por trás da pandemia dos seqüestros no Iraque, e sua eficiência é inegável.
O seqüestro de dois norte-americanos e um britânico capturados em um rico bairro à beira-rio em Bagdá, na semana passada, e o recente seqüestro de duas trabalhadoras italianas de uma organização assistencial talvez não tenham conexão intrínseca. Mas são parte de um padrão emergente sob o qual os objetivos políticos se sobrepõem e se misturam à extorsão financeira, e que causa mais sofrimento aos iraquianos do que aos estrangeiros no país.
No caso dos estrangeiros, parece fazer pouca diferença a posição assumida por seus países de origem no debate sobre a guerra, a presença ou não de tropas enviadas por seus governos em solo iraquiano ou sua presença no país como mercenários ou missionários, trabalhadores da construção ou repórteres. Franceses são seqüestrados da mesma forma que italianos, russos e canadenses.
Turquia, Irã, Egito e Líbano se opuseram à guerra, mas isso não protegeu seus cidadãos (em sua maioria muçulmanos) contra seqüestros, e o Japão, a Coréia do Sul e as Filipinas, aliados dos EUA, tampouco se viram poupados. O Nepal, cuja única participação em toda a encrenca é a presença de 15 mil trabalhadores no Iraque, enfrentou o horror de ver 12 de seus cidadãos assassinados pelos seqüestradores.
"É doloroso que os seqüestradores não diferenciem entre os irmãos e amigos e os inimigos", disse Jean Obeid, chanceler libanês, depois de uma tentativa frustrada de seqüestro que causou a morte de três cidadãos libaneses no Iraque, uma semana atrás.
No entanto, desde a queda de Bagdá, 18 meses atrás, os iraquianos é que vêm sofrendo mais. Com o colapso do Estado iraquiano, o triunfo do banditismo e a derrota da lei, fenômeno que antecede a ascensão da resistência aos ocupantes, raras são as famílias providas de meios financeiros, ainda que modestos, que não tenham sofrido seqüestros ou pedidos de resgate. Talvez até mais que os perigos da guerra em curso, o seqüestro é a principal causa da fuga de iraquianos de classe média para os países vizinhos, hemorragia que nenhum país que precisa ser reconstruído praticamente do zero tem como aceitar.
Alguns dos seqüestradores são claramente militantes islâmicos sunitas, e suas demandas, em geral envolvendo retiradas de tropas, são apresentadas em comunicados.
A vingança sangrenta que eles extraem é registrada em repulsivas gravações em vídeo ou transmitida pela internet. Há também os membros do partido Baath, entre os quais antigos (e, de acordo com alguns relatos, atuais) membros da polícia e das Forças Armadas. E não podemos esquecer os simples malfeitores, que exploram a incapacidade norte-americana para controlar as estradas, fronteiras e um número cada vez maior de cidades de grande e pequeno porte no centro e no sul do Iraque.
O objetivo político dos seqüestros é provocar uma série de retiradas das tropas aliadas, das empresas estrangeiras e dos profissionais iraquianos, para demonstrar que a ocupação é incapaz de garantir a paz ou de conduzir a reconstrução. Os objetivos financeiros são igualmente diretos.
Da mesma forma que Washington imputa boa parte da culpa pela resistência a "combatentes estrangeiros" (a despeito de pouco mais de duas dúzias destes terem sido capturados em meio aos 43 mil prisioneiros detidos após a queda de Bagdá), eles atribuem parte exagerada da responsabilidade pelos seqüestros a indivíduos fáceis de demonizar, como Abu Musab al Zarqawi.
Zarqawi, wahhabita jordaniano cujos objetivos incluem uma guerra de extermínio contra a maioria xiita no Iraque, parece ter decapitado pessoalmente o americano Nick Berg, em maio. Por mais repulsivos que sejam esse ritual, o ato e Zarqawi, na realidade não são mais que uma fração do problema.
Isso acontece, entre outros fatores, porque o caos reinante entre as facções e a ausência da lei geram múltiplas conexões, ainda que pouco visíveis, entre os aspectos políticos e financeiros dos seqüestros, criando um mercado no qual reféns capturados por dinheiro são revendidos a grupos políticos e religiosos. Essa parece ser a direção que os seqüestros no Iraque vem tomando, e a tendência é profundamente sinistra.
Os franceses parecem preparados para pagar pela libertação dos seqüestrados e lançaram uma ofensiva diplomática, atraindo apoio de capitais árabes e ocidentais, grupos e figuras militantes como o Hamas e Moqtada al Sadr, além de religiosos muçulmanos tradicionalistas.
O pagamento de resgates estimula os seqüestros, enquanto a diplomacia conduzida em grande escala amplifica a importância dos seqüestradores e faz com que multipliquem suas demandas. Há um debate cada vez mais intenso sobre as organizações noticiosas quanto à possibilidade de que a publicidade esteja exacerbando o problema dos seqüestros. Mas as fatwas, éditos religiosos, têm poder no mundo muçulmano.
Não existem boas opções ou soluções fáceis para a praga dos seqüestros, da mesma forma que não as há para o caos do Iraque no pós-guerra. Mas a capacidade da França para mobilizar a opinião árabe e muçulmana, bem como o debate sobre o grau de divulgação que deve ser dado aos seqüestros, são indícios sugestivos.
Caso as autoridades religiosas do Iraque e da região promulguem fatwas proibindo os seqüestros, disse um empreiteiro que abandonou o trabalho no Iraque depois de pagar o resgate de dois motoristas, muitos empresários retornarão. Mais fatwas e menos manchetes não parecem ser causa de grande esperança, mas não há outras alternativas funcionais à disposição, no momento.


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