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Havana recebe as reformas dos Castro com ira e desalento
Uma semana após anúncio das demissões, ninguém sabe qual apoio será dado aos que perderem emprego
Na cidade, são comuns os casos de servidores do Estado que faturam muito mais cobrando por serviços "por fora"
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA (CUBA)
Roberto G., 54, trabalha
em uma relojoaria estatal vizinha a um dos melhores e
maiores hotéis de Havana.
Especialista em marcas de
luxo, como Breitling, Bulgari, Cartier e Jaeger-LeCoultre,
ele se acostumou a receber
do governo o salário mensal
equivalente a 17 pesos conversíveis (cerca de R$ 32,65),
ao mesmo tempo em que embolsa quase tudo o que recebe dos seus clientes endinheirados.
Taxistas que trabalham
em um ponto próximo dizem
que o "por fora" de Roberto
pode superar em 10 vezes o
que ele ganha "por dentro".
Roberto está revoltado
com a decisão do governo cubano de demitir meio milhão
de funcionários públicos,
quase 10% da população
economicamente ativa.
Sabe que é um dos fortes
candidatos a estar na rua até
o fim do primeiro trimestre
de 2011 -este é o prazo dado
para a realização dos cortes.
"É incrível que o Estado
cubano seja hoje o recriador
do exército industrial de reserva", diz o homem, evocando um dos conceitos mais
caros do marxismo, para o
qual o tal "exército industrial
de reserva" seria uma forma
de o capitalismo rebaixar o
valor do trabalho.
Mas é gente como o relojoeiro Roberto que faz com
que muitos cubanos vejam
nas demissões uma medida
quase inevitável.
"Como é possível que o Estado continue pagando salários a quem não lhe dá nada
em troca?", pergunta o professor de inglês Alejandro N..
Refere-se à imensa economia informal que se criou
desde os anos 90, quando o
país teve de se abrir para o turismo, depois do desabamento da União Soviética.
A loja em que Roberto trabalha como relojoeiro é oficial. Como um patrão descuidado, entretanto, o Estado
deixa que o empregado se
aproprie dos rendimentos.
"É assim que funcionam
também os táxis da Cubataxi,
de propriedade do Estado",
afirma Thomaz A..
O sujeito recebe um fixo
por mês (19 pesos conversíveis). Mas basta o telefonema
de um turista para que ele se
aproprie do veículo.
Aí, sem que o governo tenha qualquer possibilidade
de controle (não há taxímetro ou GPS, por exemplo), cobra do turista uma base de 25
pesos conversíveis por hora.
"Vai direto para o bolso
dele. É o melhor negócio do
mundo. Sem investir um tostão, sem pagar aluguel ou
manutenção, o cara embolsa
em uma hora mais do que recebe em um mês do governo.
É roubo. É desaforo", diz
Thomaz.
"DESALENTO"
A maioria dos entrevistados pela Folha em Havana
diz estar "desalentada".
"Não é tristeza, não é revolta.
É desalento mesmo. Parece
que, em vez de corrigir os
problemas, o Estado se verga
a eles", disse Hector, revolucionário de primeira hora.
Ele se lembra de quando,
em 1968, Fidel Castro nacionalizou todo o setor de varejo
da ilha. Em nome da chamada "Grande Ofensiva Revolucionária", 58.012 pequenos
negócios passaram para as
mãos do Estado.
Na ocasião, Fidel proferiu
um discurso célebre contra
os proprietários de carrinhos
de cachorro-quente, dizendo
que "95,1% deles eram contrarrevolucionários".
(Os donos dos "perros calientes", que até hoje fazem
um sucesso danado na ilha,
representavam todos os pequenos varejistas.)
Uma semana depois de
anunciadas as demissões,
ninguém sabe ainda quem
será demitido, quais setores
o governo permitirá que passem para o pequeno empreendedor privado, que
apoio será dado a quem perder o emprego. Cuba está na
expectativa.
Mas, seja nos bairros turísticos, como Havana Vieja, seja nas vizinhanças pobres,
como Guanabacoa, San Miguel del Padrón ou o bairro
Operário, passa de mão em
mão uma listagem de 124 atividades, supostamente
aquelas que poderiam virar
"negócios privados".
O governo não confirma
que a lista -já colocada na
internet- seja mesmo a que
vai valer. Entre as atividades
"privatizáveis" consta a de
aguadeiro, engraxate, manicure, borracheiro, cabeleireiro, relojoeiro, faxineira, babá
e lancheiro.
Exilados cubanos em Miami, muitos dos quais fugiram
de Cuba a bordo de balsas,
não deixam por menos:
"Lancheiro, esta sim é uma
atividade econômica com demanda permanente", escreveu Milan López em um blog
direto da Flórida.
BANANAS E ABACATES
Considerada a capital nacional da "santería", como os
cubanos chamam as religiões de origem africana, o
bairro de Guanabacoa (12 km
do centro de Havana) tem
uma concentração notável
de negros nas ruas -muitas
mulheres andam com vestidos brancos e turbantes, sinal da iniciação religiosa.
No bar Orishas (Orixás),
uma mesa comenta as demissões que virão: "Para nós
aqui não muda nada. A gente
já não tem emprego", diz António R., 35, integrante de um
grupo "invisível" para as estatísticas oficiais.
Toda a família dele vive de
vender charutos fora das lojas oficiais do governo cubano. Uma grande indústria de
tabaco "genérico" floresce
na ilha. O produto é vendido
para turistas, sem grandes
preocupações com a discrição ou com a polícia.
Por todo o bairro, veem-se
vendedores de bananas e
abacates -também são desempregados, as novas medidas não os afetam.
Um observador atento dos
movimentos da sociedade
cubana disse à Folha que o
mais provável é que as 500
mil demissões sejam só mais
uma "acomodação" da burocracia do Partido Comunista
a uma situação de fato.
"Já existe uma imensa
quantidade de negócios privados ou semiprivados. Está-se apenas reconhecendo o
que já existe, ao mesmo tempo em que se desonera o Estado de pagar salários para
trabalhadores quase improdutivos."
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