São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2010

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Havana recebe as reformas dos Castro com ira e desalento

Uma semana após anúncio das demissões, ninguém sabe qual apoio será dado aos que perderem emprego

Na cidade, são comuns os casos de servidores do Estado que faturam muito mais cobrando por serviços "por fora"

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA (CUBA)

Roberto G., 54, trabalha em uma relojoaria estatal vizinha a um dos melhores e maiores hotéis de Havana.
Especialista em marcas de luxo, como Breitling, Bulgari, Cartier e Jaeger-LeCoultre, ele se acostumou a receber do governo o salário mensal equivalente a 17 pesos conversíveis (cerca de R$ 32,65), ao mesmo tempo em que embolsa quase tudo o que recebe dos seus clientes endinheirados.
Taxistas que trabalham em um ponto próximo dizem que o "por fora" de Roberto pode superar em 10 vezes o que ele ganha "por dentro".
Roberto está revoltado com a decisão do governo cubano de demitir meio milhão de funcionários públicos, quase 10% da população economicamente ativa.
Sabe que é um dos fortes candidatos a estar na rua até o fim do primeiro trimestre de 2011 -este é o prazo dado para a realização dos cortes.
"É incrível que o Estado cubano seja hoje o recriador do exército industrial de reserva", diz o homem, evocando um dos conceitos mais caros do marxismo, para o qual o tal "exército industrial de reserva" seria uma forma de o capitalismo rebaixar o valor do trabalho.
Mas é gente como o relojoeiro Roberto que faz com que muitos cubanos vejam nas demissões uma medida quase inevitável.
"Como é possível que o Estado continue pagando salários a quem não lhe dá nada em troca?", pergunta o professor de inglês Alejandro N..
Refere-se à imensa economia informal que se criou desde os anos 90, quando o país teve de se abrir para o turismo, depois do desabamento da União Soviética.
A loja em que Roberto trabalha como relojoeiro é oficial. Como um patrão descuidado, entretanto, o Estado deixa que o empregado se aproprie dos rendimentos. "É assim que funcionam também os táxis da Cubataxi, de propriedade do Estado", afirma Thomaz A..
O sujeito recebe um fixo por mês (19 pesos conversíveis). Mas basta o telefonema de um turista para que ele se aproprie do veículo.
Aí, sem que o governo tenha qualquer possibilidade de controle (não há taxímetro ou GPS, por exemplo), cobra do turista uma base de 25 pesos conversíveis por hora.
"Vai direto para o bolso dele. É o melhor negócio do mundo. Sem investir um tostão, sem pagar aluguel ou manutenção, o cara embolsa em uma hora mais do que recebe em um mês do governo. É roubo. É desaforo", diz Thomaz.

"DESALENTO"
A maioria dos entrevistados pela Folha em Havana diz estar "desalentada". "Não é tristeza, não é revolta. É desalento mesmo. Parece que, em vez de corrigir os problemas, o Estado se verga a eles", disse Hector, revolucionário de primeira hora.
Ele se lembra de quando, em 1968, Fidel Castro nacionalizou todo o setor de varejo da ilha. Em nome da chamada "Grande Ofensiva Revolucionária", 58.012 pequenos negócios passaram para as mãos do Estado.
Na ocasião, Fidel proferiu um discurso célebre contra os proprietários de carrinhos de cachorro-quente, dizendo que "95,1% deles eram contrarrevolucionários".
(Os donos dos "perros calientes", que até hoje fazem um sucesso danado na ilha, representavam todos os pequenos varejistas.)
Uma semana depois de anunciadas as demissões, ninguém sabe ainda quem será demitido, quais setores o governo permitirá que passem para o pequeno empreendedor privado, que apoio será dado a quem perder o emprego. Cuba está na expectativa.
Mas, seja nos bairros turísticos, como Havana Vieja, seja nas vizinhanças pobres, como Guanabacoa, San Miguel del Padrón ou o bairro Operário, passa de mão em mão uma listagem de 124 atividades, supostamente aquelas que poderiam virar "negócios privados".
O governo não confirma que a lista -já colocada na internet- seja mesmo a que vai valer. Entre as atividades "privatizáveis" consta a de aguadeiro, engraxate, manicure, borracheiro, cabeleireiro, relojoeiro, faxineira, babá e lancheiro.
Exilados cubanos em Miami, muitos dos quais fugiram de Cuba a bordo de balsas, não deixam por menos: "Lancheiro, esta sim é uma atividade econômica com demanda permanente", escreveu Milan López em um blog direto da Flórida.

BANANAS E ABACATES
Considerada a capital nacional da "santería", como os cubanos chamam as religiões de origem africana, o bairro de Guanabacoa (12 km do centro de Havana) tem uma concentração notável de negros nas ruas -muitas mulheres andam com vestidos brancos e turbantes, sinal da iniciação religiosa.
No bar Orishas (Orixás), uma mesa comenta as demissões que virão: "Para nós aqui não muda nada. A gente já não tem emprego", diz António R., 35, integrante de um grupo "invisível" para as estatísticas oficiais.
Toda a família dele vive de vender charutos fora das lojas oficiais do governo cubano. Uma grande indústria de tabaco "genérico" floresce na ilha. O produto é vendido para turistas, sem grandes preocupações com a discrição ou com a polícia.
Por todo o bairro, veem-se vendedores de bananas e abacates -também são desempregados, as novas medidas não os afetam.
Um observador atento dos movimentos da sociedade cubana disse à Folha que o mais provável é que as 500 mil demissões sejam só mais uma "acomodação" da burocracia do Partido Comunista a uma situação de fato.
"Já existe uma imensa quantidade de negócios privados ou semiprivados. Está-se apenas reconhecendo o que já existe, ao mesmo tempo em que se desonera o Estado de pagar salários para trabalhadores quase improdutivos."


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