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CAMPO DE BATALHA
Corrupção é marca da Aliança do Norte
KENNEDY ALENCAR
ENVIADO ESPECIAL A JABAL-SARAJ
O comandante Haji Qahar é o
homem-chave em Jabal-Saraj.
Cerca de um 1,60 m, careca com o
resto do cabelo raspado baixinho,
é o arquétipo do malandro afegão
bem relacionado. Tudo o que jornalistas precisam fazer tem de
passar por ele, desde as autorizações iniciais para visitar as linhas
de combate a um colchonete fétido para dormir no chão.
Haji é um dos assistentes do ministro das Relações Exteriores da
Aliança do Norte, Abdullah Abdullah. A ONU só reconhece o governo do presidente Burhanuddin Rabbani, derrubado pelo Taleban em 96. A Aliança do Norte é
o braço-armado desse governo.
O método de trabalho de Haji é
amostra de como a corrupção tomou conta do Afeganistão. E
exemplifica a lógica tribal que impera no país. Sua primeira providência ao receber a Folha é pressionar o tradutor e o motorista
contratados em Faizabad, a abandonar o trabalho.
"Minha mãe mandou um recado para eu voltar", justifica-se o
tradutor Said Omaid, que ficou
cinco dias com a Folha e não teve
como se comunicar com a família. A mensagem é clara. Só os
protegidos de Haji em Jabal-Saraj,
que fica na Província de Parwan,
podem trabalhar com jornalistas.
Ele arruma a mão-de-obra, o carro e fixa o preço. Claro que receberá uma gorda comissão.
Hagi quer cobrar US$ 500 por
uma viagem de helicóptero a Dushambe, mesmo quando confrontado com um bilhete de ida e volta
emitido pela embaixada da própria Aliança do Norte no Tadjiquistão. "Esse papel vale para voltar só de Faizabad, longe daqui,
meu amigo. Vamos ver se posso
fazer algo por você."
O comandante Haji, que gosta
de andar com escoltas num jipe
azul, "resolve" problemas de todos os tipos. Alugou a casa do Ministério das Relações Exteriores
para a CNN. Seus funcionários
despacham agora num escritório
improvisado perto das casas de
hospedagem dos jornalistas.
Por US$ 100, ele acha alguém
que providencia uma garrafa de
vinho tinto medoc Chateau Bellegrave, 1994. Em Dushambe, a
mesma mercadoria sai por US$
25. Outras transações assim, envolvendo de comida a filme fotográfico, sempre a preços exorbitantes, fazem parte da rotina de
Haji. "Minha função é ajudar os
jornalistas a fazer um bom trabalho", diz, abrindo um sorrindo
que se pretende amigável.
Futuro promissor
Provoca arrepios imaginar um
novo governo afegão composto
por Hajis. Esse tipo de rebelde
certamente é uma das causas que
levam os EUA a serem cautelosos
em relação à Aliança do Norte,
uma espécie de Taleban light.
Depois de 11 dias no Afeganistão, percebe-se que, sem apoio aéreo americano, será difícil os rebeldes tomarem Cabul. É mais
provável que eles cheguem à cidade por um colapso do Taleban,
castigado pelos bombardeios, do
que por iniciativa própria.
Os EUA estão interessados numa solução para o Afeganistão
que não desagrade o Paquistão,
inimigo antigo da Aliança do
Norte, tida como aliada da Índia.
Paquistaneses e indianos são rivais -disputam a Caxemira.
Logo, caças americanos acertarem posições do Taleban perto
dos rebeldes no norte do país, na
região de Mazar-e-Sharif, é uma
coisa. O local é o das etnias da
Aliança do Norte, como a tadjique
e a uzbeque. A aliança controlar
todo o norte pode ser interessante
para Washington, porque ajuda a
pôr pressão sobre o Taleban.
Já Cabul, de maioria pashtu, a
etnia preponderante entre oS talebans, pode ser outra história. Daí
o esforço americano para chegar a
um acordo que contemple todas
as etnias num eventual novo governo. Essa fórmula seria bem vista pelo Paquistão, que abandonou
o Taleban e se aliou aos EUA.
A cautela americana desagrada
Haji. "Os americanos deveriam
nos ajudar mais, bombardeando
o Taleban em Bagram e Sarak-e-Kona", diz ele, referindo-se às
frentes de batalha próximas à capital, nas quais rebeldes e o Taleban têm trocado fogo.
Os EUA, porém, sabem das desavenças dentro da própria aliança, sufocadas temporariamente
devido ao inimigo comum.
Para se ter uma idéia dessa confusão:
O tadjique Ahmad Shah Massoud, o supremo comandante rebelde morto dois dias antes dos
atentados a NY, deu boas-vindas
ao Taleban em 1994. Em 1996,
quando a milícia religiosa escanteou o governo Rabbani, do qual
Massoud era ministro da Defesa,
ele se aliou ao antigo inimigo uzbeque Rashid Dostum.
Massoud e Dostum foram adversários durante a ocupação soviética (1979-1989). Massoud enfrentou os russos. Dostum lutou
ao lado de Moscou e até imprimiu
notas de afegani que ainda circulam no norte do país. O afegani de
Dostum e dos russos vale a metade do afegani usado no Vale do
Panshir e no resto do país. Esse é
impresso pela ONU. O Taleban
usa os dois tipos da moeda.
Para tornar mais difícil ainda
um explícito apoio militar americano aos rebeldes, deve-se ter em
mente que eles não formam um
exército regular. O número de soldados é muito menor do que o
alardeado. Seus comandantes falam em 25 mil na região de Jabal-Saraj. Devem ter, bem treinados,
apenas uns 6.000.
Ao todo, a Aliança do Norte
possui 14 mil soldados. As duas
principais linhas de frente são a de
Jabal-Saraj, que fica perto de Cabul, e a de Mazar-e-Sarif, a cidade
mais importante do norte do país.
O grosso das forças da Aliança do Norte (e do Taleban) é formada
por homens com fuzis em cima de
picapes. A imagem fomenta o mito do guerreiro afegão, mas revela
fragilidade militar.
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