São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2008

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"Cholitas" se atualizam para nova encruzilhada histórica

As indígenas urbanas da Bolívia expressam em luta livre tempo de insubmissão

Vestuário com saia "pollera" e xale nasceu no século 18 da fusão da cultura local com tradição espanhola; hoje, tecido vem da China

FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Carmen Rosa, a campeã" e "Julia, a pacenha" espalham sobre a mesa reportagens sobre suas façanhas nos ringues de luta-livre, onde, para frisson de locais e turistas na Bolívia, puxam cabelos, apanham e batem fazendo voar saias e xales. São as "cholitas do ringue".
Julia conta que acabou de gravar em Miami participação num popular programa da TV latina. Carmen está orgulhosa. "Todos estão conhecendo a força das cholitas", diz ela, que mostra à reportagem, em sua casa em La Paz, o corte na cabeça produto da última luta, contra um homem.
Se as cholas, as indígenas andinas urbanas, nasceram do choque entre a Espanha e a cultura andina, as "cholitas do ringue" são o retrato do conflito na Bolívia sob Evo Morales. Elas e suas saias, as polleras, embolam "girl power", moda e política globalizadas, preconceito e promoção do orgulho popular-indígena pelo governo.
O aimará Morales foi o primeiro a levar as mulheres de "pollera" a postos de comando nacional. A quéchua Silvia Lazarte comandou a Assembléia Constituinte. Celima Torrico, ministra da Justiça, usa pollera.
Antes, Carmen e Julia já atuavam em outro front. Vociferam no ringue contra os estereótipos de submissão das cholitas. "É para mostrar que nós mulheres de pollera podemos fazer tudo. É a gente que lava, é a gente que faz a comida. Por que os homens têm de ter vantagem?", diz Ana Polonia Choque, 38, que há sete virou "Carmen Rosa, a campeã".
De pollera, brincos longos e sorriso dourado, Carmen faz rir o marido, Óscar, 48, na única mesa de sua venda de almoços a R$ 2,20 -ainda não dá para viver das lutas, semanais ou ainda mais espaçadas, pelas quais ganha R$ 33 em média.
Oscar não queria que a mulher lutasse, mas foi vencido pelo apelo financeiro. Hoje, ajuda a cachascanista (corruptela em castelhano para "catch as catch can") a treinar. Arma e desarma o ringue usado que eles compraram para se apresentar nas ruas e colégios de La Paz e também viajar pelo país.
Outra decisão de Carmen funcionou como apelo: o nome de lutadora é uma homenagem à sogra, Carmen, que morrera pouco antes. "Ela era pollerera", diz, e se emociona.

Andes-Espanha-China
Pollerera é quem vive de fazer as saias de babados típicas das cholitas, por anos conhecidas por não olhar nos olhos dos interlocutores e fazer serviços domésticos. Há até pouco tempo, eram proibidas de entrar em restaurantes de La Paz.
O impressionante é que nem todo preconceito foi capaz de acabar, até agora, com a moda cholita. Nascida no século 18, ela conseguiu atravessar todo o século 20 e suas mudanças de vestuário feminino.
As mulheres indígenas urbanas -as indígenas "originárias" não usam essas roupas- vestem histórias de conflitos e globalização: a saia, o xale e o sapato estilo toureiro vieram da metrópole espanhola. "Mas o formato do xale vem das princesas incas. Ao contrário do corte europeu, com ponta, o delas é retangular", explica Beatriz Cañedo Patiño, a mais importante estilista da Bolívia. Famosa pelos finos sobretudos de alpaca, ela fez o blazer com motivos indígenas da posse de Morales.
O chapéu-coco é o acessório de origem mais rocambolesca. Há ao menos duas versões de como as mulheres começaram a usá-lo, na década de 30. Cañedo Patiño conta a mais popular: certa vez, um comerciante encomendou chapéus italianos borsalino. Como os homens não queriam os cinzas, o estoque encalhou e ele resolveu vendê-los para mulher. Sucesso na burguesia indígena ligada ao comércio, pegou.
"Agora as cholitas vão comprar tecido na China. Os tecidos são piores, mas mais baratos", diz a estilista. "Fico feliz porque as roupas se renovam a cada estação. Não me espanto mais de a paleta das polleras seguir as cores que eu recebo de Milão." Neste ano, por exemplo, as saias metalizadas seguem em alta.
O visual rococó, que inclui ainda longas tranças, custa caro. Feita com ao menos seis metros de pano, uma boa pollera não sai por menos de R$ 110.
"As senhoritas de vestido nos olham de cima, mas a gente está com roupas muito mais caras que elas", diz Carmen (o termo chola é freqüentemente oposto a senhorita; pollera, a "vestido" ou "calça", a metonímia da mulher ocidentalizada).
As lojas de roupa de cholita convivem com as de vestido. Uma dos principais galerias especializadas está a poucos metros do Ginásio Multifuncional de El Alto, a pobre e indígena cidade-satélite de La Paz. É lá que acontece o principal confronto de cholitas lutadoras, aos domingos, com presença garantida de turistas -tantos os regulares como os políticos, os que vieram ver de perto "o processo de mudança".

Original e "transformer"
Carmen e Julia estrearam no ginásio em 2001. Um ano antes, o palco tradicional da luta livre no país -como todos, fabricador de heróis farsescos e truculentos- via seu público rarear. O veteraníssimo Juan Mamani, "El Gitano", resolveu apelar para as cholitas. Num domingo qualquer, convocou-as para treinar, no microfone.
Carmen estava no arquibancada neste dia. Julia, cujo nome é Maria dos Remédios Condori, soube do chamado e levou o peso da família -o pai lutou nos anos 80 como "Abutre"; o irmão era o "Histeria".
As pioneiras viraram atração principal, com golpes tão coreografados como violentos. Clássico de briga de mulher, os cabelos -no caso delas, as tranças- eram alvo preferencial.
Depois do sucesso, a primeira viagem (ao Peru, quando suas polleras roçaram pela primeira vez no mar). Tempos depois, veio a briga com "El Gitano" por dinheiro, explicam elas. O ex-empresário conta outra história: "Saíram porque são preguiçosas, não querem treinar, estão ficando velhas".
Enquanto Carmen tem seu ringue próprio com as colegas e faz apresentações com poucos turistas, "El Gitano" segue no Multifuncional, ligado agora a uma empresa que transporta os estrangeiros e, eventualmente, cobra por entrevistas.
Em El Alto, as lutas, sob novo boom midiático, viraram um bom bico para moças. Várias, já "de vestido", compraram sua primeira pollera e apliques de tranças para subir ao ringue. São as "transformers". "Tem gente que veste pollera até pra ganhar cargo no governo", alfineta Carmen.

Pollera, modos de usar
Não é só o ringue que vive a controvérsia cholita "original" versus "transformer". Para disputar o Miss Cholita 2007, Mariela Mollinedo alongou artificialmente as tranças. Ganhou, mas foi desmascarada. Era "transformer". Muita polêmica e a justificativa de Mariela depois (disse ter cortado a trança para ir à Argentina, temendo discriminação), ela foi readmitida no posto.
Carmen e Julia e outras mulheres ouvidas pela reportagem sabem que Mariela não é caso isolado. Pouquíssimas moças com menos de 30 anos usam pollera. As duas lutadoras têm filhas e nenhuma usa. "Ela tem 19 anos agora. Não quis usar. Só usa na morenada [o carnaval]", diz Carmen, sem tom de reprovação. Por outro lado, há as mães que reclamam do preço e há as que falam que querem que suas filhas freqüentem a universidade.
Apesar do lema do vice-presidente sociólogo, Álvaro García Línera, na posse, em 2006 -"queremos um Estado em que a saia e a pollera sejam a mesma coisa"-, desfazer, na prática, o binômio chola/falta de instrução ainda é um caminho longo. E talvez dependa cada vez menos do vestuário.
"Minha mãe é de pollera porque veio do campo. Eu já nasci aqui. Mas eu tenho orgulho do meu sobrenome aimará e fico feliz porque elas estão olhando para cima. Se não têm instrução, não é culpa delas", diz Ana Manani, estudante de Turismo da Universidade Mayor de San Andrés, em La Paz.
Esta pode ser a geração de mais orgulho das polleras, e também a última a vê-las no cotidiano das ruas.


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