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"Cholitas" se atualizam para nova encruzilhada histórica
As indígenas urbanas da Bolívia expressam em luta livre tempo de insubmissão
Vestuário com saia "pollera" e xale nasceu no século 18 da fusão da cultura local com tradição espanhola; hoje, tecido vem da China
FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Carmen Rosa, a campeã" e
"Julia, a pacenha" espalham sobre a mesa reportagens sobre
suas façanhas nos ringues de
luta-livre, onde, para frisson de
locais e turistas na Bolívia, puxam cabelos, apanham e batem
fazendo voar saias e xales. São
as "cholitas do ringue".
Julia conta que acabou de
gravar em Miami participação
num popular programa da TV
latina. Carmen está orgulhosa.
"Todos estão conhecendo a força das cholitas", diz ela, que
mostra à reportagem, em sua
casa em La Paz, o corte na cabeça produto da última luta, contra um homem.
Se as cholas, as indígenas andinas urbanas, nasceram do
choque entre a Espanha e a cultura andina, as "cholitas do ringue" são o retrato do conflito na
Bolívia sob Evo Morales. Elas e
suas saias, as polleras, embolam "girl power", moda e política globalizadas, preconceito e
promoção do orgulho popular-indígena pelo governo.
O aimará Morales foi o primeiro a levar as mulheres de
"pollera" a postos de comando
nacional. A quéchua Silvia Lazarte comandou a Assembléia
Constituinte. Celima Torrico,
ministra da Justiça, usa pollera.
Antes, Carmen e Julia já
atuavam em outro front. Vociferam no ringue contra os estereótipos de submissão das cholitas. "É para mostrar que nós
mulheres de pollera podemos
fazer tudo. É a gente que lava, é
a gente que faz a comida. Por
que os homens têm de ter vantagem?", diz Ana Polonia Choque, 38, que há sete virou "Carmen Rosa, a campeã".
De pollera, brincos longos e
sorriso dourado, Carmen faz rir
o marido, Óscar, 48, na única
mesa de sua venda de almoços a
R$ 2,20 -ainda não dá para viver das lutas, semanais ou ainda mais espaçadas, pelas quais
ganha R$ 33 em média.
Oscar não queria que a mulher lutasse, mas foi vencido
pelo apelo financeiro. Hoje,
ajuda a cachascanista (corruptela em castelhano para "catch
as catch can") a treinar. Arma e
desarma o ringue usado que
eles compraram para se apresentar nas ruas e colégios de La
Paz e também viajar pelo país.
Outra decisão de Carmen
funcionou como apelo: o nome
de lutadora é uma homenagem
à sogra, Carmen, que morrera
pouco antes. "Ela era pollerera", diz, e se emociona.
Andes-Espanha-China
Pollerera é quem vive de fazer as saias de babados típicas
das cholitas, por anos conhecidas por não olhar nos olhos dos
interlocutores e fazer serviços
domésticos. Há até pouco tempo, eram proibidas de entrar
em restaurantes de La Paz.
O impressionante é que nem
todo preconceito foi capaz de
acabar, até agora, com a moda
cholita. Nascida no século 18,
ela conseguiu atravessar todo o
século 20 e suas mudanças de
vestuário feminino.
As mulheres indígenas urbanas -as indígenas "originárias"
não usam essas roupas- vestem histórias de conflitos e globalização: a saia, o xale e o sapato estilo toureiro vieram da metrópole espanhola. "Mas o formato do xale vem das princesas
incas. Ao contrário do corte europeu, com ponta, o delas é retangular", explica Beatriz Cañedo Patiño, a mais importante
estilista da Bolívia. Famosa pelos finos sobretudos de alpaca,
ela fez o blazer com motivos indígenas da posse de Morales.
O chapéu-coco é o acessório
de origem mais rocambolesca.
Há ao menos duas versões de
como as mulheres começaram
a usá-lo, na década de 30. Cañedo Patiño conta a mais popular:
certa vez, um comerciante encomendou chapéus italianos
borsalino. Como os homens
não queriam os cinzas, o estoque encalhou e ele resolveu
vendê-los para mulher. Sucesso na burguesia indígena ligada
ao comércio, pegou.
"Agora as cholitas vão comprar tecido na China. Os tecidos são piores, mas mais baratos", diz a estilista. "Fico feliz
porque as roupas se renovam a
cada estação. Não me espanto
mais de a paleta das polleras seguir as cores que eu recebo de
Milão." Neste ano, por exemplo, as saias metalizadas seguem em alta.
O visual rococó, que inclui
ainda longas tranças, custa caro. Feita com ao menos seis
metros de pano, uma boa pollera não sai por menos de R$ 110.
"As senhoritas de vestido nos
olham de cima, mas a gente está
com roupas muito mais caras
que elas", diz Carmen (o termo
chola é freqüentemente oposto
a senhorita; pollera, a "vestido"
ou "calça", a metonímia da mulher ocidentalizada).
As lojas de roupa de cholita
convivem com as de vestido.
Uma dos principais galerias especializadas está a poucos metros do Ginásio Multifuncional
de El Alto, a pobre e indígena
cidade-satélite de La Paz. É lá
que acontece o principal confronto de cholitas lutadoras,
aos domingos, com presença
garantida de turistas -tantos
os regulares como os políticos,
os que vieram ver de perto "o
processo de mudança".
Original e "transformer"
Carmen e Julia estrearam no
ginásio em 2001. Um ano antes,
o palco tradicional da luta livre
no país -como todos, fabricador de heróis farsescos e truculentos- via seu público rarear.
O veteraníssimo Juan Mamani,
"El Gitano", resolveu apelar para as cholitas. Num domingo
qualquer, convocou-as para
treinar, no microfone.
Carmen estava no arquibancada neste dia. Julia, cujo nome
é Maria dos Remédios Condori,
soube do chamado e levou o peso da família -o pai lutou nos
anos 80 como "Abutre"; o irmão era o "Histeria".
As pioneiras viraram atração
principal, com golpes tão coreografados como violentos.
Clássico de briga de mulher, os
cabelos -no caso delas, as tranças- eram alvo preferencial.
Depois do sucesso, a primeira viagem (ao Peru, quando
suas polleras roçaram pela primeira vez no mar). Tempos depois, veio a briga com "El Gitano" por dinheiro, explicam
elas. O ex-empresário conta
outra história: "Saíram porque
são preguiçosas, não querem
treinar, estão ficando velhas".
Enquanto Carmen tem seu
ringue próprio com as colegas e
faz apresentações com poucos
turistas, "El Gitano" segue no
Multifuncional, ligado agora a
uma empresa que transporta
os estrangeiros e, eventualmente, cobra por entrevistas.
Em El Alto, as lutas, sob novo
boom midiático, viraram um
bom bico para moças. Várias, já
"de vestido", compraram sua
primeira pollera e apliques de
tranças para subir ao ringue.
São as "transformers". "Tem
gente que veste pollera até pra
ganhar cargo no governo", alfineta Carmen.
Pollera, modos de usar
Não é só o ringue que vive a
controvérsia cholita "original"
versus "transformer". Para disputar o Miss Cholita 2007, Mariela Mollinedo alongou artificialmente as tranças. Ganhou,
mas foi desmascarada. Era
"transformer". Muita polêmica
e a justificativa de Mariela depois (disse ter cortado a trança
para ir à Argentina, temendo
discriminação), ela foi readmitida no posto.
Carmen e Julia e outras mulheres ouvidas pela reportagem
sabem que Mariela não é caso
isolado. Pouquíssimas moças
com menos de 30 anos usam
pollera. As duas lutadoras têm
filhas e nenhuma usa. "Ela tem
19 anos agora. Não quis usar. Só
usa na morenada [o carnaval]",
diz Carmen, sem tom de reprovação. Por outro lado, há as
mães que reclamam do preço e
há as que falam que querem
que suas filhas freqüentem a
universidade.
Apesar do lema do vice-presidente sociólogo, Álvaro García Línera, na posse, em 2006
-"queremos um Estado em
que a saia e a pollera sejam a
mesma coisa"-, desfazer, na
prática, o binômio chola/falta
de instrução ainda é um caminho longo. E talvez dependa cada vez menos do vestuário.
"Minha mãe é de pollera porque veio do campo. Eu já nasci
aqui. Mas eu tenho orgulho do
meu sobrenome aimará e fico
feliz porque elas estão olhando
para cima. Se não têm instrução, não é culpa delas", diz Ana
Manani, estudante de Turismo
da Universidade Mayor de San
Andrés, em La Paz.
Esta pode ser a geração de
mais orgulho das polleras, e
também a última a vê-las no cotidiano das ruas.
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