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Paradoxo boliviano faz de conflito a via política
Em dois anos de mandato, Morales não se entendeu com governadores
Interesses divergentes somados à impossibilidade de desprezar a outra parte mantêm país em constante tensão; violência é pontual
DA ENVIADA A LA PAZ
Se Evo Morales pode exibir
recorde de exportação e superávit fiscal após anos de contas
no vermelho, o saldo político é
pobre: o governo não conseguiu
até agora negociar ou neutralizar os opositores entrincheirados no rico leste do país, e o clima de confrontação política
manteve a Bolívia no padrão de
conflito contínuo de baixa intensidade, com rompantes de
violência.
Depois de uma fase aguda da
crise -quando morreram três
pessoas nos embates entre simpatizantes e opositores do governo e a Polícia Nacional no final do ano passado-, 2008 começou com os governadores
oposicionistas, inclusive o do
rico departamento de Santa
Cruz, sentados à mesa com Morales para negociar.
Na última sexta, porém, líderes cruzenhos consideravam
nas TVs o diálogo natimorto,
porque o governo anunciou
que vai cortar parte dos recursos enviados às regiões para financiar um benefício a idosos,
embora diga que a negociação
sobre o tema continua aberta.
A reversão da redução era a
condição dos oposicionistas
para considerar a discussão do
novo texto Constitucional, que
além de considerarem ilegal,
vêem como ameaça ao modelo
de desenvolvimento local.
Resultado: os líderes mais
ferrenhos de Santa Cruz articulavam para esta terça uma reunião com todos os oposicionistas, entre outras coisas, para
coincidir com a leitura do relatório de dois anos de gestão do
presidente Morales em La Paz.
A situação suscitou diagnósticos díspares. Parte dos analistas aposta que o aceno do governo para mudar "pontos conflitivos" do texto constitucional
é um sinal de que haverá uma
saída consensual.
Nos últimos dias, Morales
conseguiu se aproximar do governador oposicionista de Cochabamba e, apesar da grita, a
maior parte dos departamentos enviou constitucionalistas
para a comissão criada pelo governo para revisar a Carta.
Os céticos, porém, vêem incompatibilidades intransponíveis entre a nova Constituição e
os Estatutos Autonômicos, documentos com os quais a chamada "meia-lua" -Santa Cruz
e os departamentos de Tarija,
Pando e Beni- pretende declarar independência administrativa em relação a La Paz e legislar até sobre o regime de terras,
gás e petróleo.
A Constituição prevê autonomias departamentais, mas
também indígenas e regionais
-o que a oposição rejeita.
O governo já anunciou que,
se o diálogo falhar, levará
adiante um referendo revogatório de mandatos do presidente e dos nove governadores com
resultados incertos na solução
da crise.
Abstencionismo violento
"Sempre foi um diálogo de
hipócritas. A aposta do governo
é o referendo, apoiado na fantasia de que vai poder varrer democraticamente do mapa pelo
menos alguns oposicionistas",
diz Fernando Molina, diretor
do semanário "Pulso", voz liberal no país. "Nessa situação, pode ocorrer um abstencionismo
violento. Se os governadores
rejeitam o referendo, seus simpatizantes radicais podem sair
às ruas para impedir a votação."
Já no caso dos oposicionistas
a intenção de dialogar era ganhar tempo e tentar não perder
verba. "Eles queriam um respiro antes do Carnaval. Obviamente, eles sabem que, se quiserem mobilizar alguém no
Carnaval, não vão juntar ninguém. Aqui, como no Brasil, o
Carnaval é mais importante."
Mas o economista George
Gray vê alas moderadas de ambos os lados, que, sim, querem
forjar um pacto. No lado da
oposição, os moderados são os
governadores, que sabem que
não têm dinheiro para declarar
autonomia de fato, já que a arrecadação tributária é centralizada pelo governo nacional.
"Os comitês cívicos [entidades formadas pela elite econômica das regiões] são os mais
duros. Há um desejo de forçar o
governo a convocar eleições
antecipadas", afirma Gray, que
é diretor do relatório do índice
IDH do Pnud (Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento) na Bolívia.
A ala dura pró-governo também já se fez ouvir e promete
protestos se o governo ceder.
Sem pontes
Sob Morales, a política na Bolívia seguiu o ritmo das demonstrações de força. Boicotes
da oposição política e greves de
empresários e dos governos regionais; marchas de simpatizantes do presidente -uma
colcha de movimentos sociais e
sindicatos muitas vezes disposta a defender violentamente interesses setoriais até contra o
governo central.
Morales não conseguiu fazer
pontes duradouras com a região mais rica. Cruzenhos que
integravam o gabinete inicial,
por exemplo, caíram e não foram substituídos. O governo, ao
se pôr contra a demanda histórica da autonomia em 2006,
perdeu a chance de atrair os
mais moderados.
"Morales chegou a ter 80%
de aprovação, mas não soube
usar esse capital político. Preferiu modular o discurso para
agradar seus partidários mais
radicais. Ele tem pânico de ser
considerado traidor", diz Molina. "Acabou perdendo parte do
apoio da classe média, na meia-lua e até em La Paz." Pesquisa
de dezembro mostra a aprovação do presidente em 55%.
Para George Gray, esse gosto
por discursos inflamados é um
problema crônico, que tensiona o país, mas aparentemente
"harmoniza desiguais" -e deixa de resolver questões de fundo. "O conflito é praticamente a
maneira de "concertar" à boliviana", diz. "Se você olha só os
discursos, vai haver etnocídio
na Bolívia. Mas onde está a violência em larga escala? Ela não
chega."
(FLÁVIA MARREIRO)
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