São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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Paradoxo boliviano faz de conflito a via política

Em dois anos de mandato, Morales não se entendeu com governadores

Interesses divergentes somados à impossibilidade de desprezar a outra parte mantêm país em constante tensão; violência é pontual

DA ENVIADA A LA PAZ

Se Evo Morales pode exibir recorde de exportação e superávit fiscal após anos de contas no vermelho, o saldo político é pobre: o governo não conseguiu até agora negociar ou neutralizar os opositores entrincheirados no rico leste do país, e o clima de confrontação política manteve a Bolívia no padrão de conflito contínuo de baixa intensidade, com rompantes de violência.
Depois de uma fase aguda da crise -quando morreram três pessoas nos embates entre simpatizantes e opositores do governo e a Polícia Nacional no final do ano passado-, 2008 começou com os governadores oposicionistas, inclusive o do rico departamento de Santa Cruz, sentados à mesa com Morales para negociar.
Na última sexta, porém, líderes cruzenhos consideravam nas TVs o diálogo natimorto, porque o governo anunciou que vai cortar parte dos recursos enviados às regiões para financiar um benefício a idosos, embora diga que a negociação sobre o tema continua aberta.
A reversão da redução era a condição dos oposicionistas para considerar a discussão do novo texto Constitucional, que além de considerarem ilegal, vêem como ameaça ao modelo de desenvolvimento local.
Resultado: os líderes mais ferrenhos de Santa Cruz articulavam para esta terça uma reunião com todos os oposicionistas, entre outras coisas, para coincidir com a leitura do relatório de dois anos de gestão do presidente Morales em La Paz.
A situação suscitou diagnósticos díspares. Parte dos analistas aposta que o aceno do governo para mudar "pontos conflitivos" do texto constitucional é um sinal de que haverá uma saída consensual.
Nos últimos dias, Morales conseguiu se aproximar do governador oposicionista de Cochabamba e, apesar da grita, a maior parte dos departamentos enviou constitucionalistas para a comissão criada pelo governo para revisar a Carta.
Os céticos, porém, vêem incompatibilidades intransponíveis entre a nova Constituição e os Estatutos Autonômicos, documentos com os quais a chamada "meia-lua" -Santa Cruz e os departamentos de Tarija, Pando e Beni- pretende declarar independência administrativa em relação a La Paz e legislar até sobre o regime de terras, gás e petróleo.
A Constituição prevê autonomias departamentais, mas também indígenas e regionais -o que a oposição rejeita.
O governo já anunciou que, se o diálogo falhar, levará adiante um referendo revogatório de mandatos do presidente e dos nove governadores com resultados incertos na solução da crise.

Abstencionismo violento
"Sempre foi um diálogo de hipócritas. A aposta do governo é o referendo, apoiado na fantasia de que vai poder varrer democraticamente do mapa pelo menos alguns oposicionistas", diz Fernando Molina, diretor do semanário "Pulso", voz liberal no país. "Nessa situação, pode ocorrer um abstencionismo violento. Se os governadores rejeitam o referendo, seus simpatizantes radicais podem sair às ruas para impedir a votação."
Já no caso dos oposicionistas a intenção de dialogar era ganhar tempo e tentar não perder verba. "Eles queriam um respiro antes do Carnaval. Obviamente, eles sabem que, se quiserem mobilizar alguém no Carnaval, não vão juntar ninguém. Aqui, como no Brasil, o Carnaval é mais importante."
Mas o economista George Gray vê alas moderadas de ambos os lados, que, sim, querem forjar um pacto. No lado da oposição, os moderados são os governadores, que sabem que não têm dinheiro para declarar autonomia de fato, já que a arrecadação tributária é centralizada pelo governo nacional.
"Os comitês cívicos [entidades formadas pela elite econômica das regiões] são os mais duros. Há um desejo de forçar o governo a convocar eleições antecipadas", afirma Gray, que é diretor do relatório do índice IDH do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) na Bolívia.
A ala dura pró-governo também já se fez ouvir e promete protestos se o governo ceder.

Sem pontes
Sob Morales, a política na Bolívia seguiu o ritmo das demonstrações de força. Boicotes da oposição política e greves de empresários e dos governos regionais; marchas de simpatizantes do presidente -uma colcha de movimentos sociais e sindicatos muitas vezes disposta a defender violentamente interesses setoriais até contra o governo central.
Morales não conseguiu fazer pontes duradouras com a região mais rica. Cruzenhos que integravam o gabinete inicial, por exemplo, caíram e não foram substituídos. O governo, ao se pôr contra a demanda histórica da autonomia em 2006, perdeu a chance de atrair os mais moderados.
"Morales chegou a ter 80% de aprovação, mas não soube usar esse capital político. Preferiu modular o discurso para agradar seus partidários mais radicais. Ele tem pânico de ser considerado traidor", diz Molina. "Acabou perdendo parte do apoio da classe média, na meia-lua e até em La Paz." Pesquisa de dezembro mostra a aprovação do presidente em 55%.
Para George Gray, esse gosto por discursos inflamados é um problema crônico, que tensiona o país, mas aparentemente "harmoniza desiguais" -e deixa de resolver questões de fundo. "O conflito é praticamente a maneira de "concertar" à boliviana", diz. "Se você olha só os discursos, vai haver etnocídio na Bolívia. Mas onde está a violência em larga escala? Ela não chega." (FLÁVIA MARREIRO)

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