UOL


São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

HISTÓRIAS BAGDALIS

Povo foi atingido duplamente: pelo regime de Saddam e pela invasão anglo-americana

Notícias de outra guerra particular

Juca Varella/ Folha Imagem
O casal homosexual Firas Majeed, 25 (à esq.), e Ammar Abd-Alkadr, 35, na capital iraquiana; durante o regime de Saddam Hussein, homosexualismo era proibido


SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

Das quatro semanas que já dura a guerra do Iraque, a equipe da Folha passou três em Bagdá, desde o primeiro dia do conflito e até o final desta semana, quando o caos que tomou a cidade na forma de saques e de falta de autoridade e infra-estrutura dava sinais de começar a desaparecer.
No período, coletou algumas histórias de bagdalis que, de uma maneira ou de outra, foram diretamente atingidos primeiro pela ditadura de Saddam Hussein e depois pela invasão anglo-americana. São alguns casos significativos do principal atingido por um conflito que não tinha de acontecer e está muito longe de terminar: o povo iraquiano.

Camisa tirada do armário
Ammar Abd-Alkadr veste calça jeans e uma camisa pólo preta com os dizeres "Orlando, Flórida", enfeitada por um golfinho. "Você não sabe quanto tempo eu esperei para poder tirar esta camisa do fundo do armário", diz ele, excitado, à Folha.
Não foi a única coisa que saiu do armário na casa dele nos últimos dias. O bagdali Ammar, 35, é gay, e era gay durante o regime de Saddam Hussein, que proibia o homossexualismo e tratava os homossexuais como criminosos.
Desde a queda do governo, ele resolveu assumir, mesmo que sob os olhares de reprovação de um povo em sua maioria muçulmano que também condena o sexo alternativo. "Tudo bem, eu posso conviver com olhares de reprovação, é bem diferente de ser preso e torturado", afirma ele, de mãos dadas com o namorado, Firas, dez anos mais novo.
Enquanto a cidade parecia ter sobrevivido a um ataque nuclear na semana passada, os dois resolveram passear para comemorar sua recém-conquistada liberdade. "Não se impressione, nem todos nós somos selvagens", dizia ele a cada vez que seu carro passava por uma sede de ministério saqueada e queimada. "É uma minoria que está fazendo isso, e uma minoria muito bem instruída por alguém."
Ammar trabalhava como designer de circuitos no Ministério da Comunicação, que não existe mais. Vive em Bagdá com duas tias e dois primos em um bairro de classe média -seus pais não aguentaram o que ele chama de "enlouquecimento progressivo de Saddam Hussein" e resolveram se refugiar no Reino Unido depois da Guerra do Golfo (1991).
Ele conheceu Firas numa das atuais ruínas da capital, com a diferença de que esse prédio em particular foi destruído muito antes de começada a guerra.
Trata-se do Cinema Babel, na rua Sadoon, tradicional reduto gay da capital, fechado com grande estardalhaço há alguns anos pelos homens de Saddam Hussein. Desde então e até a semana passada, os dois namoravam escondidos em casa -casa, aliás, que agora é protegida de saques por um fuzil russo Kalashnikov, comprado pela dupla para se proteger. "Nossa primeira arma", diz Firas, mais tímido.
Ammar é um dos poucos bagdalis que vivem um caso de amor com os marines norte-americanos. A cada posto de checagem que passa, ele acena para os soldados e grita, com prazer, quando é correspondido.
Ao ser admitido por uma barreira militar com os repórteres da Folha, foi saudado por um sargento. "Ele falou comigo! Ele falou comigo!", comemorou. "Você sabe, nem todo mundo aqui ama os norte-americanos, mas quase todos amamos o "american way of life'", confessa.
E por que, na opinião dele, o povo iraquiano aguentou quase três décadas da ditadura de Saddam Hussein? "Acho que esse homem era um mágico, enfeitiçava as pessoas, como aquele outro mágico famoso de que todo mundo está falando agora, sabe?" Harry Potter? "Esse mesmo! Mal posso esperar para assistir..."

Tudo por um telefonema
Radwan tem um recado para a mãe, Mainsun, no Reino Unido. Pede que a avise que seu filho está bem, assim como o irmão, Vassim, e a sobrinha, Amanda. Huda Kadhim manda avisar a família no Canadá que está vivo. Kahtan pede que o pai em Dubai fique tranquilo: todos sobreviveram ao bombardeio da coalizão.
Como as pessoas acima, milhares de bagdalis procuram quem tenha um telefone por satélite para dar notícias a familiares e amigos que vivem no exterior.
Os 5 milhões de habitantes da capital iraquiana estão isolados do resto do mundo desde a véspera do início desta guerra, quando o então ditador Saddam Hussein mandou bloquear o serviço de ligações interurbanas, para evitar que "segredos militares fossem revelados por espiões".
Desde então, as milhares de bombas deram conta do resto: todas as principais centrais telefônicas da cidade foram atingidas, deixando muda a capital. O resultado é que há pessoas que não falam com a família há mais de um mês, daí a busca pelos telefones por satélite, que independem do sistema local.
O assédio pode se dar em qualquer lugar que eles saibam ser frequentados pelos ocidentais, sejam jornalistas, militares ou trabalhadores de organizações humanitárias. Restaurantes, portas dos prédios públicos saqueados mais famosos, postos de controle de marines e principalmente o entorno do hotel Palestine.
Ali, pais de família levam suas crianças para sensibilizar o dono do aparelho; mães oferecem o orçamento mensal em troca de uma ligação; meninas bonitas prometem beijos por apenas um minuto de conversa com o namorado que mora fora; e há até quem tente trocar serviços, como um dia trabalhando como motorista, pela possibilidade de avisar alguém que continua vivo.
O hotel Palestine, aliás, a cada dia ganha mais o status que ao final da Segunda Guerra Mundial foi do hotel Ritz, em Paris, ou do hotel Continental, no final dos anos 60 em Saigon, no Vietnã, ou mesmo do infame Al Rasheed, na Guerra do Golfo: é onde tudo acontece e onde todos querem estar, para conseguir favores, empregos ou fazer pedidos, para conseguir informações, protestar ou xingar o governo (no caso, o americano, o único disponível).
Enquanto o comando militar norte-americano se reúne no Palácio Republicano -um dos maiores feitos por Saddam Hussein em seu auge, o primeiro a ser tomado pelas forças invasoras e um dos únicos protegidos dos saques, com suas mais de cem portas de pesadas folhas de ouro-, o "Poder Executivo" dá expediente no Palestine. O povo sabe disso. Tanto que, tão logo clareia, as primeiras filas em torno do arame farpado que hoje em dia o cerca vão se formando.
O campeão dos pedidos continua sendo o telefonema. Nos últimos dias, com uma variante: na lista dos pedintes entraram também os marines. Alguns estão longe de casa há mais de seis meses, e internet e satélite, dizem, são privilégio apenas dos oficiais. "Nós ainda temos de nos virar com a carta", afirma o soldado Sean Mordechai, para então pedir: "Você me deixaria ligar para minha namorada, no Kansas?". Em troca do quê? "Liberá-lo das revistas na entrada do hotel."

E a próxima geração?
É também no Palestine que se reuniu parte da classe média assustada com os saques e que tinha dinheiro para hospedar a família no único lugar 100% seguro da cidade. Não é raro ver pelos corredores crianças brincando entre grupos de marines e equipes de TV. Como o lugar atraiu também os menores abandonados, há um curioso encontro de classes aí, em que as duas pontas da sociedade brincam juntas, sob o olhar atento da guarda.
O único dado a uni-los é: ninguém está indo à escola. Assim como todos os outros serviços públicos, também as aulas foram interrompidas desde a queda do regime. A paralisação mobilizou entidades do mundo inteiro, e as primeiras propostas de mudança do sistema educacional iraquiano começaram a inundar Bagdá.
O problema é que o governo norte-americano, por meio da Usaid, a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional, decidiu unilateralmente quem cuidará da reforma.
Será a Creative Associates International, que foi agraciada com um contrato de US$ 63 milhões. Sua missão será reestruturar todo o primeiro e segundo graus, num primeiro momento focando apenas em matemática e ciência, evitando matérias que causarão mais polêmica, como história -que deverá ser "limpa" de todas as referências elogiosas a Saddam e ao partido Baath que dominam os livros escolares oficiais hoje em dia.
Terá ainda de retreinar os professores e reestocar as escolas, que ainda sofrem os efeitos do embargo econômico imposto pela ONU desde o começo da década passada, que teve como uma das consequências diretas, por exemplo, a falta de papel nas salas de aula. O prazo dado para que todas as crianças iraquianas voltem às classes é 1º de outubro.
Até lá, todas continuarão em casa. Ou nas ruas, como é o caso de uma das figuras mais conhecidas dos jornalistas em Bagdá. Trata-se do engraxate Ahmed, de oito anos. Ele dava plantão na rua ao lado da sede do Ministério da Informação, onde aprendeu de algum ocidental menos ético palavrões em inglês -e se deliciava em usá-los, aliados à palavra George W. Bush, tais como "F... Bush, asshole, godammit!".
Agora, fez amizade com os marines, que lhe dão US$ 1 a cada vez que diz: "Down, Saddam, down". Ahmed deixou a escola ainda no equivalente ao jardim da infância. Quando e se voltar, em outubro, talvez seja para uma educação em que não tenha de repetir mais slogans para agradar a nenhum dos lados.

Texto Anterior: Saddam deixou vazio estatístico
Próximo Texto: Murdoch vence guerra na mídia
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.