São Paulo, sábado, 20 de outubro de 2007

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Dilema turco

LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO

É mais ou menos como puxar a base de um castelo de cartas montado muito desajeitadamente diante de um ventilador: uma invasão turca do norte do Iraque mandaria pelos ares de vez os planos "estabilizadores" dos EUA, ao inserir um novo conflito -a luta contra os curdos- na única região relativamente funcional do país.
Ainda assim, a Turquia tem mais a perder com uma operação militar em larga escala no país vizinho do que o próprio Iraque ou os americanos.
O separatismo curdo é tema caro a Ancara, e os confrontos entre as milícia do PKK (partido dos Trabalhadores do Curdistão) e as Forças Armadas têm um rastro de 30 mil cadáveres de 1984 para cá.
A relação dos secessionistas com o Iraque não surgiu com a ocupação americana -Saddam Hussein já fora obrigado pela ONU a aumentar a autonomia da região curda nos anos 90, após promover ali um massacre que deixou 100 mil mortos em 1988. Aos olhos trucos, no entanto, o problema se tornou premente, pois o Curdistão iraquiano está sobre boa parte do petróleo do país vizinho.
Um vazio de poder em Bagdá resultante da Guerra do Iraque poderia aumentar não só a força política dos curdos iraquianos mas também seu poder de financiamento em uma eventual campanha regional por um Estado curdo. (De fato, do lado iraquiano da fronteira, os separatistas que vivem no sudeste da Turquia encontram mais apoio logístico, armas e dinheiro para seguir com suas ações.)
Incursões esporádicas e bombardeios eventuais na área fronteiriça já ocorrem há meses. O que Ancara tem a perder se ampliar suas operações do lado de lá da fronteira?
A possibilidade de entrar para a União Européia e a aliança com os EUA, para começar.
Em relação a Washington, a situação seria no mínimo bizarra: EUA e Turquia são aliados militares desde os anos 50, e ambos são membros da Otan, a aliança militar ocidental. Uma invasão turca colocaria dois Exércitos irmãos em confronto, já que são os americanos que respondem hoje pelo Iraque.
Há ainda o risco de ter cortado um canal econômico. O jogo de pressão financeira tem antecedentes -quando o Parlamento turco contrariou o gabinete e vetou aos EUA, em 2003, o uso das bases militares do país, abrindo somente o espaço aéreo, Washington suspendeu a oferta de US$ 8,5 bilhões em crédito ao país islâmico. Um novo golpe na estratégia americana não deve ser recebido com mais generosidade.
Já quanto a Bruxelas, Ancara pode prover de argumentos aqueles que se opõe à sua entrada na União Européia. A questão da repressão aos curdos é apresentada como um dos principais entraves à adesão do país ao bloco, meta que o governo do premiê Recep Tayyp Erdogan acalenta com fervor.
Pode ser o jogo retórico político, mas é fato que, há muito pouco tempo, os 15 milhões de curdos que vivem na Turquia (mais de 20% da população do país e mais da metade dos curdos do mundo) não tinham permissão para usar sua língua ou manifestar sua cultura publicamente, e a cicatriz dessa repressão ainda é profunda.
No outro prato da balança -o doméstico- pesa a necessidade do governo de Erdogan de fazer concessões aos militares.
A Turquia tem histórico recente de governos derrubados pelas Forças Armadas, autocoroadas guardiãs do secularismo no país. E um governo islâmico, ainda que moderado, como é o caso deste, é especialmente vulnerável a tal pressão. Aprovar uma ação militar é uma forma de satisfazer esse estrato tão importante no organograma político turco. Levá-la a cabo são outros quinhentos.
Na falta de bola de cristal, há o histórico. Em outubro de 2003, o Parlamento turco também sancionara uma operação militar no Iraque, permitindo o envio de 10 mil soldados. Afora incursões limitadas, nenhuma ação robusta chegou a ocorrer.
Os EUA desta vez foram além dos usuais pedidos de contenção e desistiram de votar no Congresso uma moção que rotularia de genocídio o massacre de 1,5 milhão de armênios pelos turcos na Primeira Guerra (1914-18), cuja aprovação por uma comissão parlamentar fez ferver os ânimos em Ancara.
Cabe agora à Turquia pesar que fardo lhe é maior.


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