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Dilema turco
LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO
É mais ou menos como puxar
a base de um castelo de cartas
montado muito desajeitadamente diante de um ventilador:
uma invasão turca do norte do
Iraque mandaria pelos ares de
vez os planos "estabilizadores"
dos EUA, ao inserir um novo
conflito -a luta contra os curdos- na única região relativamente funcional do país.
Ainda assim, a Turquia tem
mais a perder com uma operação militar em larga escala no
país vizinho do que o próprio
Iraque ou os americanos.
O separatismo curdo é tema
caro a Ancara, e os confrontos
entre as milícia do PKK (partido dos Trabalhadores do Curdistão) e as Forças Armadas
têm um rastro de 30 mil cadáveres de 1984 para cá.
A relação dos secessionistas
com o Iraque não surgiu com a
ocupação americana -Saddam
Hussein já fora obrigado pela
ONU a aumentar a autonomia
da região curda nos anos 90,
após promover ali um massacre que deixou 100 mil mortos
em 1988. Aos olhos trucos, no
entanto, o problema se tornou
premente, pois o Curdistão iraquiano está sobre boa parte do
petróleo do país vizinho.
Um vazio de poder em Bagdá
resultante da Guerra do Iraque
poderia aumentar não só a força política dos curdos iraquianos mas também seu poder de
financiamento em uma eventual campanha regional por um
Estado curdo. (De fato, do lado
iraquiano da fronteira, os separatistas que vivem no sudeste
da Turquia encontram mais
apoio logístico, armas e dinheiro para seguir com suas ações.)
Incursões esporádicas e
bombardeios eventuais na área
fronteiriça já ocorrem há meses. O que Ancara tem a perder
se ampliar suas operações do
lado de lá da fronteira?
A possibilidade de entrar para a União Européia e a aliança
com os EUA, para começar.
Em relação a Washington, a
situação seria no mínimo bizarra: EUA e Turquia são aliados
militares desde os anos 50, e
ambos são membros da Otan, a
aliança militar ocidental. Uma
invasão turca colocaria dois
Exércitos irmãos em confronto, já que são os americanos que
respondem hoje pelo Iraque.
Há ainda o risco de ter cortado um canal econômico. O jogo
de pressão financeira tem antecedentes -quando o Parlamento turco contrariou o gabinete e vetou aos EUA, em 2003,
o uso das bases militares do
país, abrindo somente o espaço
aéreo, Washington suspendeu
a oferta de US$ 8,5 bilhões em
crédito ao país islâmico. Um
novo golpe na estratégia americana não deve ser recebido com
mais generosidade.
Já quanto a Bruxelas, Ancara
pode prover de argumentos
aqueles que se opõe à sua entrada na União Européia. A questão da repressão aos curdos é
apresentada como um dos
principais entraves à adesão do
país ao bloco, meta que o governo do premiê Recep Tayyp Erdogan acalenta com fervor.
Pode ser o jogo retórico político, mas é fato que, há muito
pouco tempo, os 15 milhões de
curdos que vivem na Turquia
(mais de 20% da população do
país e mais da metade dos curdos do mundo) não tinham permissão para usar sua língua ou
manifestar sua cultura publicamente, e a cicatriz dessa repressão ainda é profunda.
No outro prato da balança -o
doméstico- pesa a necessidade
do governo de Erdogan de fazer
concessões aos militares.
A Turquia tem histórico recente de governos derrubados
pelas Forças Armadas, autocoroadas guardiãs do secularismo
no país. E um governo islâmico,
ainda que moderado, como é o
caso deste, é especialmente
vulnerável a tal pressão. Aprovar uma ação militar é uma forma de satisfazer esse estrato
tão importante no organograma político turco. Levá-la a cabo são outros quinhentos.
Na falta de bola de cristal, há
o histórico. Em outubro de
2003, o Parlamento turco também sancionara uma operação
militar no Iraque, permitindo o
envio de 10 mil soldados. Afora
incursões limitadas, nenhuma
ação robusta chegou a ocorrer.
Os EUA desta vez foram além
dos usuais pedidos de contenção e desistiram de votar no
Congresso uma moção que rotularia de genocídio o massacre
de 1,5 milhão de armênios pelos
turcos na Primeira Guerra
(1914-18), cuja aprovação por
uma comissão parlamentar fez
ferver os ânimos em Ancara.
Cabe agora à Turquia pesar
que fardo lhe é maior.
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