São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2001

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TRANSIÇÃO AMERICANA

Republicano é acusado de privatizar a educação com a idéia de financiar ensino em escolas particulares

Bush quer verba pública para escola privada

MARCIO AITH
DE WASHINGTON

Talvez nada explique com mais clareza os dilemas da educação nos EUA e nos ajude a entender um pouco mais o resultado das eleições presidenciais do ano passado do que a lista de alunos da rica escola privada Sidwell Friends, situada na avenida Wisconsin, na cidade de Washington.
Foi lá que estudaram o jovem Albert Gore, filho do candidato democrata que chamava a si próprio de "campeão da educação pública" durante a campanha, e Chelsea Clinton, filha do presidente que passou oito anos na Casa Branca defendendo a qualidade de estabelecimentos públicos contra os ataques dos interesses privados. Amy Carter, filha de James Carter (1977-1980), último presidente democrata dos EUA antes de Clinton, estudou numa escola pública e fazia disso uma bandeira.
Mais do que sugerir uma eventual hipocrisia de Clinton e de Gore, esse fato, embora apenas simbólico, ajuda a ilustrar algo que os norte-americanos já fizeram questão de registrar nas pesquisas de opinião durante a campanha: há algo de errado com as escolas públicas norte-americanas, e até os democratas já perceberam.
A educação superou há anos temas como economia, violência e emprego como prioridade máxima dos norte-americanos. Durante a campanha, mais de metade dos lugares visitados por Gore e pelo novo presidente, George W. Bush, resumiu-se a escolas públicas. Para quem acompanhou a campanha pela TV, parecia mais uma escolha para superintendente educacional do que para presidente dos EUA.
Para os 65 milhões de estudantes norte-americanos e seus pais, a maioria das 177 mil escolas no país não prepara adequadamente seus alunos para a complicada era da informação.
Dados indicam que o nível da educação pública não caiu no país nos últimos 20 anos, mas todos reconhecem que a qualidade do ensino estagnou. Testes de estudantes ("score tests") em outros países industrializados mostram um salto qualitativo no período, enquanto nos EUA mesmo as melhores escolas públicas permaneceram no mesmo patamar.
Além disso, um fosso foi criado entre as escolas públicas nos perímetros urbanos, geralmente pobres e violentas, e os estabelecimentos em subúrbios ricos.
Uma migração para escolas privadas e para a educação domiciliar ("home schooling", uma forte tendência nos EUA) verificou-se nos últimos anos, e Bush, cujas filhas gêmeas estudaram numa escola pública no Texas (a Austin High School), logo percebeu que isso poderia lhe render frutos políticos.
O novo presidente dos EUA foi eleito defendendo a polêmica proposta dos vales educacionais (os "school vouchers"), uma idéia colocada em prática em poucas cidades dos EUA.
O sistema permite aos pais transferir seu filho para escolas privadas levando com eles o dinheiro que o Estado gastava com a criança. Para isso, usa-se um cálculo que, basicamente, divide o financiamento público total para uma determinada escola pelo número de estudantes.
Bush defende ainda que todos os alunos norte-americanos passem por um "provão" anual para revelar a qualidade das escolas e dos professores, algo que não ocorre nos estabelecimentos mais pobres, como forma de "proteger" seus alunos. "Professores devem ter responsabilidade. Suas fraquezas precisam ser expostas. Se a escola estiver ruim, os pais devem ter o direito de colocar seus filhos numa escola privada", disse Bush na campanha.
Os democratas condenam as duas propostas, sob o argumento de que irão piorar ainda mais as escolas públicas, tirando-lhes mais recursos, e privatizar a educação.
"Em vez de destruir as escolas públicas que tiverem problemas, devemos melhorá-las", disse Gore durante a campanha.
O tema é paradoxal. Para desespero dos democratas, que dizem proteger os desfavorecidos e as minorias ao condenar o programa, 60% dos negros e 72% dos que ganham menos de US$ 15 mil por ano são favoráveis à idéia dos vales.
Nervosa com a má qualidade das escolas públicas em bairros pobres dos grandes centros urbanos, essa camada da população entusiasmou-se com a proposta, enxergando nela uma maneira de embarcar seus filhos na revolução da informação.
Experiências concretas com a iniciativa, no entanto, são reduzidas, e seus resultados, inconclusivos ou litigiosos.
No ano passado, o juiz federal Solomon Oliver declarou inconstitucional todo o programa de "voucher" da cidade de Cleveland, em Ohio. Oliver entendeu que ele feria a Primeira Emenda da Constituição norte-americana, que prevê a separação entre a Igreja e o Estado. O juiz notou que 96% dos cerca de 4.000 estudantes que optaram pelos vales foram para escolas paroquiais e concluiu que isso é uma "doutrinação religiosa patrocinada pelo governo".
A preocupação do juiz faz sentido sabendo-se que, das 27 mil escolas privadas nos EUA, apenas 6.000 não são ligadas a alguma religião.
Além de Cleveland, apenas a cidade de Milwaukee e alguns municípios da Flórida adotaram o sistema de voucher. Na capital, Washington, um modelo semelhante foi conduzido em algumas escolas, mas os vales foram pagos por empresas privadas, não pelo governo.
Propostas de implementar os vales foram rejeitadas recentemente na Califórnia e em Michigan, e Bush poderá ter problemas para aprová-las num Congresso onde os republicanos detêm uma maioria muito pequena.

Ladeira abaixo
Peter Schrag, um dos maiores críticos dos vales, acredita que o sistema seja "o início de uma ladeira escorregadia na qual os pobres são usados como crianças-propaganda num processo que irá destruir gradualmente a base de todo o sistema público de educação".
Segundo ele, a implementação do programa irá fortalecer as escolas privadas com dinheiro público e enfraquecer as escolas do Estado. Sem dinheiro, o sistema público pioraria ainda mais, e os estudantes que não conseguirem vagas em estabelecimentos privados estariam numa situação de calamidade.
Os defensores do sistema discordam. "Na verdade, os vales só ajudam as escolas públicas, pois, por incrível que pareça, elas ficam com mais recursos e menos crianças depois que seus alunos a abandonam", disse Paul Peterson, da Universidade de Harvard e autor de um livro defendendo o programa de vales.
"O dinheiro dos vales corresponde apenas ao valor que uma unidade da Federação (o Estado) fornece a cada um dos alunos. Os vales não incluem os recursos local e federal para as escolas. Esses recursos permanecem nas escolas e passam a beneficiar um grupo menor de estudantes", afirmou Peterson.
Segundo ele, os vales são a forma mais direta e imediata de resolver a estagnação e o marasmo da educação norte-americana. "Na última década, fizemos carros melhores, TVs de melhor qualidade e moramos em casas maiores. Para onde quer que olhemos, as coisas melhoraram, menos na educação. Não pioramos nas últimas décadas, mas não acompanhamos o avanço verificado nos outros países industrializados."
Em Cleveland, cada voucher pode chegar a US$ 2.200 por estudante ao ano, mais do que o suficiente para pagar os US$ 1.900 de taxas anuais em escolas privadas religiosas como a Saint Vitus, um estabelecimento católico que recebeu a maioria dos alunos que entraram no programa. Não se trata de um preço alto porque, no caso das escolas religiosas, as igrejas fornecem subsídios.
Com o ingresso de alunos com voucher nas mãos, a Saint Vitus passou a ser sustentada por dinheiro público, e foi isso que gerou a batalha jurídica que poderá chegar à Suprema Corte. Até lá, Bush já terá ganhado ou perdido sua batalha para revolucionar a educação nos EUA.


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