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TRANSIÇÃO AMERICANA
Republicano é acusado de privatizar a educação com a idéia de financiar ensino em escolas particulares
Bush quer verba pública para escola privada
MARCIO AITH
DE WASHINGTON
Talvez nada explique com mais
clareza os dilemas da educação
nos EUA e nos ajude a entender
um pouco mais o resultado das
eleições presidenciais do ano passado do que a lista de alunos da rica escola privada Sidwell Friends,
situada na avenida Wisconsin, na
cidade de Washington.
Foi lá que estudaram o jovem
Albert Gore, filho do candidato
democrata que chamava a si próprio de "campeão da educação
pública" durante a campanha, e
Chelsea Clinton, filha do presidente que passou oito anos na Casa Branca defendendo a qualidade de estabelecimentos públicos
contra os ataques dos interesses
privados. Amy Carter, filha de James Carter (1977-1980), último
presidente democrata dos EUA
antes de Clinton, estudou numa
escola pública e fazia disso uma
bandeira.
Mais do que sugerir uma eventual hipocrisia de Clinton e de Gore, esse fato, embora apenas simbólico, ajuda a ilustrar algo que os
norte-americanos já fizeram
questão de registrar nas pesquisas
de opinião durante a campanha:
há algo de errado com as escolas
públicas norte-americanas, e até
os democratas já perceberam.
A educação superou há anos temas como economia, violência e
emprego como prioridade máxima dos norte-americanos. Durante a campanha, mais de metade dos lugares visitados por Gore
e pelo novo presidente, George
W. Bush, resumiu-se a escolas públicas. Para quem acompanhou a
campanha pela TV, parecia mais
uma escolha para superintendente educacional do que para presidente dos EUA.
Para os 65 milhões de estudantes norte-americanos e seus pais,
a maioria das 177 mil escolas no
país não prepara adequadamente
seus alunos para a complicada era
da informação.
Dados indicam que o nível da
educação pública não caiu no país
nos últimos 20 anos, mas todos
reconhecem que a qualidade do
ensino estagnou. Testes de estudantes ("score tests") em outros
países industrializados mostram
um salto qualitativo no período,
enquanto nos EUA mesmo as melhores escolas públicas permaneceram no mesmo patamar.
Além disso, um fosso foi criado
entre as escolas públicas nos perímetros urbanos, geralmente pobres e violentas, e os estabelecimentos em subúrbios ricos.
Uma migração para escolas privadas e para a educação domiciliar ("home schooling", uma forte
tendência nos EUA) verificou-se
nos últimos anos, e Bush, cujas filhas gêmeas estudaram numa escola pública no Texas (a Austin
High School), logo percebeu que
isso poderia lhe render frutos políticos.
O novo presidente dos EUA foi
eleito defendendo a polêmica
proposta dos vales educacionais
(os "school vouchers"), uma idéia
colocada em prática em poucas
cidades dos EUA.
O sistema permite aos pais
transferir seu filho para escolas
privadas levando com eles o dinheiro que o Estado gastava com
a criança. Para isso, usa-se um cálculo que, basicamente, divide o financiamento público total para
uma determinada escola pelo número de estudantes.
Bush defende ainda que todos
os alunos norte-americanos passem por um "provão" anual para
revelar a qualidade das escolas e
dos professores, algo que não
ocorre nos estabelecimentos mais
pobres, como forma de "proteger" seus alunos. "Professores devem ter responsabilidade. Suas
fraquezas precisam ser expostas.
Se a escola estiver ruim, os pais
devem ter o direito de colocar
seus filhos numa escola privada",
disse Bush na campanha.
Os democratas condenam as
duas propostas, sob o argumento
de que irão piorar ainda mais as
escolas públicas, tirando-lhes
mais recursos, e privatizar a educação.
"Em vez de destruir as escolas
públicas que tiverem problemas,
devemos melhorá-las", disse Gore durante a campanha.
O tema é paradoxal. Para desespero dos democratas, que dizem
proteger os desfavorecidos e as
minorias ao condenar o programa, 60% dos negros e 72% dos
que ganham menos de US$ 15 mil
por ano são favoráveis à idéia dos
vales.
Nervosa com a má qualidade
das escolas públicas em bairros
pobres dos grandes centros urbanos, essa camada da população
entusiasmou-se com a proposta,
enxergando nela uma maneira de
embarcar seus filhos na revolução
da informação.
Experiências concretas com a
iniciativa, no entanto, são reduzidas, e seus resultados, inconclusivos ou litigiosos.
No ano passado, o juiz federal
Solomon Oliver declarou inconstitucional todo o programa de
"voucher" da cidade de Cleveland, em Ohio. Oliver entendeu
que ele feria a Primeira Emenda
da Constituição norte-americana,
que prevê a separação entre a
Igreja e o Estado. O juiz notou que
96% dos cerca de 4.000 estudantes
que optaram pelos vales foram
para escolas paroquiais e concluiu
que isso é uma "doutrinação religiosa patrocinada pelo governo".
A preocupação do juiz faz sentido sabendo-se que, das 27 mil escolas privadas nos EUA, apenas
6.000 não são ligadas a alguma religião.
Além de Cleveland, apenas a cidade de Milwaukee e alguns municípios da Flórida adotaram o
sistema de voucher. Na capital,
Washington, um modelo semelhante foi conduzido em algumas
escolas, mas os vales foram pagos
por empresas privadas, não pelo
governo.
Propostas de implementar os
vales foram rejeitadas recentemente na Califórnia e em Michigan, e Bush poderá ter problemas
para aprová-las num Congresso
onde os republicanos detêm uma
maioria muito pequena.
Ladeira abaixo
Peter Schrag, um dos maiores
críticos dos vales, acredita que o
sistema seja "o início de uma ladeira escorregadia na qual os pobres são usados como crianças-propaganda num processo que
irá destruir gradualmente a base
de todo o sistema público de educação".
Segundo ele, a implementação
do programa irá fortalecer as escolas privadas com dinheiro público e enfraquecer as escolas do
Estado. Sem dinheiro, o sistema
público pioraria ainda mais, e os
estudantes que não conseguirem
vagas em estabelecimentos privados estariam numa situação de
calamidade.
Os defensores do sistema discordam. "Na verdade, os vales só
ajudam as escolas públicas, pois,
por incrível que pareça, elas ficam
com mais recursos e menos crianças depois que seus alunos a
abandonam", disse Paul Peterson, da Universidade de Harvard
e autor de um livro defendendo o
programa de vales.
"O dinheiro dos vales corresponde apenas ao valor que uma
unidade da Federação (o Estado)
fornece a cada um dos alunos. Os
vales não incluem os recursos local e federal para as escolas. Esses
recursos permanecem nas escolas
e passam a beneficiar um grupo
menor de estudantes", afirmou
Peterson.
Segundo ele, os vales são a forma mais direta e imediata de resolver a estagnação e o marasmo
da educação norte-americana.
"Na última década, fizemos carros melhores, TVs de melhor qualidade e moramos em casas maiores. Para onde quer que olhemos,
as coisas melhoraram, menos na
educação. Não pioramos nas últimas décadas, mas não acompanhamos o avanço verificado nos
outros países industrializados."
Em Cleveland, cada voucher
pode chegar a US$ 2.200 por estudante ao ano, mais do que o suficiente para pagar os US$ 1.900 de
taxas anuais em escolas privadas
religiosas como a Saint Vitus, um
estabelecimento católico que recebeu a maioria dos alunos que
entraram no programa. Não se
trata de um preço alto porque, no
caso das escolas religiosas, as igrejas fornecem subsídios.
Com o ingresso de alunos com
voucher nas mãos, a Saint Vitus
passou a ser sustentada por dinheiro público, e foi isso que gerou a batalha jurídica que poderá
chegar à Suprema Corte. Até lá,
Bush já terá ganhado ou perdido
sua batalha para revolucionar a
educação nos EUA.
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