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Casaldáliga conta como Ratzinger o interrogou
DA REPORTAGEM LOCAL
D. Pedro Casaldáliga, 77, um
dos expoentes da Teologia da Libertação no Brasil, conheceu o lado mais temido do novo papa.
Em 1986, o bispo brasileiro foi interrogado pelo cardeal Joseph
Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Foi explicar sua ação em defesa
dos pobres, dos negros e dos índios em São Félix do Araguaia.
Casaldáliga diz que Ratzinger,
na época conhecido como "cardeal de ferro", "é um intelectual,
um homem sério, de princípios".
Os interrogatórios foram tensos.
Eis trechos da entrevista.
(FV)
Folha - O novo papa o interrogou?
D. Pedro Casaldáliga - Sim. Os interrogatórios foram com o cardeal Ratzinger e outros dois cardeais.
Folha - Como começou?
Casaldáliga - Eu
me negava a fazer
a visita a Roma
que os bispos devem fazer a cada
cinco anos. Eles
reclamaram. Eu
escrevi uma carta
ao papa, explicando, e com muitas
reivindicações, a
respeito do sacerdócio, da participação da mulher...
Passei por longo
interrogatório.
Folha - O que perguntaram?
Casaldáliga - Sobre a Teologia da
Libertação, sobre
a Missa dos Quilombos, minhas
visitas à Nicarágua, a liturgia...
Folha - Como era
o clima?
Casaldáliga -
Houve momentos
de tensão e alguns momentos de
humor. Devo reconhecer que Ratzinger é um intelectual. É um homem sério, de princípios. É retraído, não tem a projeção midiática
de João Paulo 2º.
Folha - Como foi o comportamento dele? Estava calmo, sereno?
Casaldáliga - Eles perguntam e
esperam a resposta. Retrucam. Eu
me senti com bastante liberdade.
Tive liberdade para falar. Depois,
foi entregue ao papa o dossiê com
todas as acusações. Eu fui chamado para conversar pessoalmente
com o papa durante 15 minutos.
Ele insistiu na unidade da igreja,
reconheceu os problemas sociais
do Brasil, sobretudo da nossa região, rezou pelos perseguidos...
Folha - No interrogatório, houve
algum episódio curioso?
Casaldáliga - Um dos cardeais
sugeriu que eu não falasse com os
jornalistas. Não foi o Ratzinger.
Eu disse que achava oportuno falar. "Se eu não conto o que tem
acontecido aqui, os jornalistas
vão ter que inventar", disse. Como saíram notícias, novamente
fui chamado. O mesmo cardeal
perguntou quanto tempo eu tinha
estado com o papa. Eu respondi:
15 minutos. "Foi tempo perdido",
disse ele. "Porque o sr. falou para
os jornalistas e estão espalhando a
notícia pelo mundo afora." Eu fui
enérgico. Estávamos um pouco
tensos. Eu falei: "A igreja guarda
segredo demais. Depois, os jornais têm que inventar..."
Eu não ia ao Vaticano porque não concordava com o modo como os bispos
eram recebidos. Não havia diálogo. Nós escutávamos, fazíamos uma
foto, e ficava por isso. O que a gente pede é a comunicação
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Folha - O sr. já conhecia o cardeal
Ratzinger?
Casaldáliga - Só por referências.
Sabíamos que era um homem duro, controlador. Como dizem alguns, um "cardeal de ferro".
Folha - Ele levantou a voz, em algum momento?
Casaldáliga - Não. Ele levantava
as palavras...
Folha - Por que o sr. se recusava a
ir ao Vaticano?
Casaldáliga - Porque eu não concordava com o modo como os
bispos eram recebidos. Não havia
diálogo. Nós escutávamos, fazíamos uma foto, e ficava por isso...
O que a gente pede é o intercâmbio, a comunicação.
Folha - Na sua ação, o que mais
incomodou o cardeal Ratzinger?
Casaldáliga - Foram os compromissos sociais, a ida à Nicarágua e
à América Central. Também o fato de inculturar a liturgia. Acharam que a missa dos quilombos
transformava a
missa num grito
de um povo. Eu
retruquei que a
Igreja já havia feito missas para homenagear reis e
príncipes. Muito
mais direito tinha
todo um povo
massacrado. Toda uma cultura
marginalizada.
Celebramos a
missa pela causa
indígena. Podemos celebrar o sofrimento e a esperança do povo negro, dos povos indígenas. Eu falei
para um cardeal
africano, que estava ao lado de
Ratzinger, que ele
poderia entender
a missa dos quilombos.
Folha - Ele concordou com o cardeal Ratzinger ou
com o sr.?
Casaldáliga - Ele era juiz naquele
tribunal. Não foi uma coisa feroz.
Foi tenso, em alguns momentos,
mas houve momentos de humor.
Folha - O sr. lembra de algum comentário bem-humorado do cardeal Ratzinger?
Casaldáliga - Ele me tinha perguntado porque eu falei na Nicarágua. Eu disse que era necessário
revolucionar cada um de nós, revolucionar a igreja, revolucionar
o mundo. Quando terminamos,
eu falei: "Vamos rezar o Pai Nosso". Ele perguntou, com certa ironia: "É para revolucionar a Igreja"? Eu falei: "Também. A igreja
toda tem que mudar".
Folha - Além do "silêncio obsequioso" houve outro constrangimento imposto pela congregação?
Casaldáliga - Quiseram que eu
assinasse uma série de proposições, de compromissos. Me chegou esse documento com papel
timbrado do Vaticano, mas sem
assinatura. Sem que eu dissesse
uma palavra, esse documento foi
publicado. Eu me neguei, então, a
firmar esse documento.
Folha - Qual é a sua esperança?
Casaldáliga - O reino de Deus
continua. Passa bispo, passa papa,
passa príncipe, passa rei. Nós devemos continuar nosso trabalho
com muita esperança, relativizando o que é relativo. E não desanimar por nada.
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