São Paulo, terça-feira, 21 de junho de 2011

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MINHA HISTÓRIA DIPENDRA RATHORE, 22

HOMEM AO MAR

Indiano de 22 anos conta como piratas da Somália que atuam ao sul de Omã, no Oriente Médio, sequestraram seu navio e torturaram a tripulação por quase oito meses até obter 5 milhões de libras de resgate

Martin Hunter/"Guardian"
Dipendra Rathore um ano após o seqüestro

RESUMO
O indiano Dipendra Rathore e mais 21 pessoas ficaram quase oito meses em poder de piratas somalis, que capturaram seu navio durante uma viagem da Índia à Noruega. Rathore narra a abordagem dos piratas, que fugiram após receber resgate de 5 milhões de libras (cerca de R$ 13 milhões), e as torturas a que foi submetido com seus companheiros de viagem. Apesar da experiência, ele diz que não pretende desistir de sua carreira na Marinha mercante.

(...)Depoimento a

DIANA APPLEYARD
DO "GUARDIAN"

Em abril do ano passado, eu estava treinando para me tornar oficial da Marinha mercante em um navio de transporte de produtos químicos, para uma empresa sediada em Mumbai. A embarcação carregava 22 tripulantes -uma mistura de marinheiros profissionais e engenheiros, oriundos da Índia. Com 21 anos, eu era o membro mais jovem da tripulação.
O navio estava navegando da Índia para a Noruega, uma jornada que deveria levar 25 dias. No final da tarde do quarto dia, eu estava de vigia quando um dos outros vigias alertou sobre a aproximação de um barco. Navegávamos cerca de 200 km ao sul de Omã, em águas distantes, e, pelo tamanho e aparência da embarcação, suspeitamos de que se tratasse de piratas.
Imediatamente solicitei ajuda pelo rádio a um navio da Marinha indiana -mas era tarde demais. Em minutos, os piratas nos abordaram e, armados com lança-foguetes e fuzis de assalto Kalashnikov, abriram fogo contra a tripulação. Foi aterrorizante e caótico. Não tivemos escolha a não ser a rendição.
Fomos encaminhados à sala de controle de navegação, no convés principal, e instruídos a deitar no chão. Em inglês precário, os piratas informaram que solicitariam resgate de 15 milhões de libras à empresa para a qual trabalhávamos. Todos estávamos muito assustados.
Ficamos deitados, em silêncio, até o início da manhã seguinte, quando seis outros piratas subiram a bordo e nos informaram que o navio seria levado à Somália.
As condições a bordo do navio eram indescritíveis. Ficamos confinados a um cantinho da sala de controle. As escotilhas foram fechadas, o ar era insuficiente, e o calor era sufocante. As condições higiênicas eram horrendas.
Tínhamos permissão para usar o banheiro, mas não demorou para que a sujeira e o mau cheiro tomassem conta do sanitário. Quase todos nós adoecemos. Recebíamos comida, mas apenas o bastante para sobreviver -refeições básicas, com batatas e cebolas. A cada duas semanas, permitiam que saíssemos ao convés para esticar as pernas.
Os piratas se revezavam para nos manter sob vigilância, com as armas apontadas -não havia chance de tentar escapar. E tampouco havia oportunidade de tentar desenvolver amizade com eles.
Éramos mantidos em estado de terror -constantemente espancados com bastões metálicos. Consegui evitar as piores violências, mas alguns colegas foram espancados com bastões e sofreram choques elétricos na região genital. Mesmo que eu não visse as torturas, os gritos eram audíveis. Continuo a ouvi-los até hoje. Não sei por que não fui mais maltratado -talvez achassem que eu era jovem e insignificante demais.
A cada manhã, eu acordava naquele chão duro de metal imaginando se aquele seria o dia de minha morte. Mas consegui manter a calma. Tornei-me fatalista quanto ao futuro -tudo que eu podia fazer era esperar.
A intervalos de alguns dias, um dos tripulantes era escolhido para se comunicar com a companhia e apelar por nossas vidas. Mas a resposta era que não havia nada que eles pudessem fazer -queriam forçar os sequestradores a reduzir o resgate.
Nos primeiros quatro meses, eles permitiam um telefonema ao mês para nossas famílias, para que elas também pressionassem a empresa. Os telefonemas eram difíceis -eles desligavam assim que trocávamos algumas palavras. Era muito doloroso.
Depois de muitos meses sem pagamento, os piratas prenderam nosso capitão em uma parte diferente do navio, para que acreditássemos que o tinham matado. Queriam que insistíssemos ainda mais. Começamos a perder toda esperança de resgate.
Mas então, ao final de 238 dias, a companhia enfim concordou em pagar 5 milhões de libras de resgate, e um navio alemão foi enviado para nos recolher. Os piratas fugiram em um barco.
A alegria que sentimos quando os alemães nos conduziram ao convés ensolarado, diante do qual mal conseguíamos manter os olhos abertos, foi indescritível. Não chorei -estava quase catatônico_, mas ouvi os soluços de alguns companheiros.
Quando cheguei ao outro navio, me senti renascer. A primeira refeição, o primeiro banho, as primeiras roupas limpas pareceram extraordinários. Seis dias mais tarde, reencontrei minha família. Minha aparência era péssima; eu estava muito magro. Eles choraram ao me ver.
Depois de tanto esforço para controlar meu gênio no navio, fiquei muito zangado assim que voltei para casa. Não me ofereceram terapia. Segui em frente mesmo assim.
A experiência não me levou a abandonar a ideia de trabalhar na Marinha mercante -estou estudando e voltarei ao mar logo que concluir o curso. Não permitirei que os piratas alterem minha escolha de carreira. Eles já me feriram o bastante.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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