São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2000


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VIZINHO EM CRISE
Geração que nunca viu a Colômbia em paz é maioria entre os recrutas; maior parte do salário dos menores vai para os pais
Farc treinam adolescentes para a guerra

THOMAS TRAUMANN
ENVIADO ESPECIAL À COLÔMBIA

São 4h25 e ainda está escuro na selva amazônica quando começa o dia dos guerrilheiros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Um apito, que depois será usado nos jogos de vôlei, é o despertador dos 30 garotos e garotas com idade entre 14 e 19 anos que estão no acampamento a 500 m do quartel-general das Farc, em um vilarejo de San Vicente del Caguán (sudoeste da Colômbia). Todos, incluindo o comandante, nasceram depois da criação das Farc, em 1964. São de uma geração que nunca viu a Colômbia sem guerra.
Os guerrilheiros-adolescentes se levantam com o rifle carregado, pendurado no ombro e destravado -pronto para atirar. É um procedimento obrigatório.
Um dos maiores movimentos guerrilheiros do planeta, as Farc controlam mais de um terço do território da Colômbia. Para o conflito com o governo, que deve se iniciar nas próximas semanas, pretendem aumentar a sua tropa de 15 mil para 20 mil. Quase todos os novos recrutas serão adolescentes. O confronto com o Exército vai ocorrer na fronteira com o Equador, território controlado pelas Farc. É lá que o governo vai começar as operações do "Plano Colômbia", projeto apoiado pelos EUA para combater o tráfico.
A proximidade com o quartel-general permite aos jovens recrutas das Farc confortos impossíveis aos demais acampamentos guerrilheiros, como o banho de ducha e um gerador para o aparelho de TV de 14 polegadas. Na selva, os banhos são coletivos.
Menos de cinco minutos depois do apito de despertar, os recrutas estão em formação de sentido na clareira que fica à margem do acampamento. Com o mesmo uniforme de camuflagem com que dormiram e usando botas de borracha, fazem exercícios de alongamento e começam a correr. No total, passam cinco horas do dia correndo e fazendo ginástica.
Segundo o "Manual de Exercícios Guerrilheiros", o recruta não deve ir a combate com menos de seis meses de treinamento. Embora o regime no local seja militar, o clima entre recrutas lembra o de uma aula de educação física.
O clima de camaradagem é incentivado."Já fui salvo por camaradas que, na hora, trocaram o pente do fuzil mais rápido do que eu", contou Sandoval, 16. Irmão de guerrilheiro, Sandoval deixou os pais aos 13 anos para se juntar aos rebeldes. "As Farc são o braço armado contra a miséria."
No seu caso é a pura verdade. Os seus pais estão desempregados e sobrevivem com o que recebem do salário dos filhos guerrilheiros.
Com uma taxa de desemprego de 20,4%, a Colômbia não oferece oportunidades para os jovens pobres da zona rural, a base das Farc. Um guerrilheiro ganha inicialmente cerca de R$ 400 mensais -mais de duas vezes o salário mínimo. No caso dos menores de idade, as Farc repassam a maior parte do salário aos pais.
Sem ter passado do primeiro grau, Sandoval acha que é melhor com um rifle na mão do que aprendendo aritmética na escola. "Acerto o que você quiser a 400 metros de distância", gabou-se.
"O principal é aprender a ter calma, saber obedecer ao comando na hora de atacar. Daí a gente pega o inimigo de surpresa e sai vivo", explicou José Carlos, 19.
Cada guerrilheiro carrega no mínimo cinco armas: um fuzil com capacidade mínima de vinte tiros, uma pistola automática com seis tiros, faca e duas granadas. A granada é a arma favorita dos novatos por permitir ataques sem confronto direto. "Você destrava e conta: um, dois. Daí você joga e se abaixa. Ao contar seis, ela explode", ensinou Alberto, 18.
Nas Farc vigora um espírito de igualitarismo. Com a exceção da cúpula, todos os guerrilheiros lavam suas roupas, montam as barracas e treinam diariamente. Dormem sobre tábuas ou no chão.
A dieta é repetitiva. Pela manhã, depois dos primeiros exercícios, os rebeldes tomam café doce com panqueca de trigo. Antes das 7h, tomam uma sopa de repolho com ovo. No almoço, feijão com carne de charque -prato que pode ser repetido no jantar ou substituído por macarrão com molho de tomate. Não há verduras e, para sobremesa, há bananas ou laranjas.
Estimativas do Exército apontam que as Farc gastam quase US$ 150 milhões por ano para manter sua estrutura. O dinheiro vem dos sequestros e "impostos" cobrados dos produtores de coca.


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