São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Nuremberg foi justo com nazistas, diz historiador



Os Aliados estavam tentados a executar os réus sem nenhum tipo de apelação. Deve-se ao julgamento o fato de isso não ter acontecido

DO EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Se dependesse de Winston Churchill, os principais líderes nazistas teriam sido todos fuzilados, sem muita discussão, no minuto seguinte à rendição alemã na Segunda Guerra (1939-45). Mas, como não cabia ao premie britânico decidir sozinho a sorte dos derrotados, vingou a idéia do chanceler soviético, Vyacheslav Molotov, de instalar um tribunal internacional -logo Molotov, que integrava um governo cujo ditador, Josef Stálin, chegou a sugerir a execução sumária de 50 mil nazistas (e Franklin Roosevelt, presidente americano, respondeu que 49 mil bastavam).
Como se nota, a situação dos nazistas ao final da guerra não era nada boa, para onde quer que se olhasse. Assim, na opinião do historiador Robert Gellately, organizador do livro "As Entrevistas de Nuremberg", o julgamento dos chefes do Terceiro Reich, a despeito das imensas pressões decorrentes das atrocidades cometidas na guerra, foi o mais justo possível naquelas circunstâncias.
"Os Aliados estavam tentados a executar os réus sem nenhum tipo de apelação. Deve-se ao julgamento o fato de isso não ter acontecido", disse Gellately à Folha.
Na entrevista, ele critica a demonização dos nazistas ("não foram "demônios" que cometeram esses crimes indizíveis, mas seres humanos") e diz que é justamente sua humanidade que torna seus crimes mais complexos. Leia a seguir a entrevista de Gellately, que é especialista em Holocausto e história alemã e russa na Universidade Estadual da Flórida. (MG)

Folha - Em depoimento a Leon Goldensohn, Hans Frank, ex-administrador nazista da Polônia, diz que mesmo Hitler, ou particularmente ele, merecia ser ouvido no tribunal. O que Hitler teria dito em sua defesa se tivesse a chance?
Robert Gellately -
Acho que certamente Hitler, como um anti-semita de corpo e alma, teria culpado os judeus por tudo, como ele fez durante o Terceiro Reich. Ele também culpava os judeus pelo bolchevismo, pela Revolução Russa e pelo comunismo no mundo. Ele era um crente fervoroso da tese da "conspiração judaica internacional". Hitler talvez tivesse tentado ressaltar os crimes do comunismo e dizer que buscou salvar a Europa e o mundo do comunismo e dos judeus. Ele jamais teria aprendido algo com seus erros nem teria visto equívocos em sua "filosofia".

Folha - Na introdução do livro, o sr. mostra que uma das principais preocupações dos Aliados era que o julgamento de Nuremberg fosse o mais confiável possível. Nuremberg foi um julgamento justo?
Gellately -
Acho que o julgamento foi tão justo quanto qualquer um poderia esperar naquela época. Nem todos os acusados foram considerados culpados e nem todos os considerados culpados foram sentenciados à morte. Não foi um "julgamento-show". Um "julgamento-show" era o que acontecia na URSS dos anos 30. Os acusados eram torturados e iam para a corte para implorar por perdão, mas a expectativa geral era que eles seriam executados -e eles eram. Em Nuremberg, ninguém foi torturado e, uma vez que americanos e britânicos concordaram em realizar os julgamentos, eles também disseram que seria possível a alguns dos réus serem considerados inocentes -coisa inimaginável para os juízes stalinistas.
Sempre é possível aperfeiçoar um julgamento, e o de Nuremberg não é exceção. Dados o clima emocional da época e o fato de que foram descobertos os assassinatos em massa e todas as atrocidades sem precedentes que foram cometidas, acho que temos de concluir que o julgamento foi tão bom quanto possível naquelas circunstâncias. Os Aliados estavam tentados a executar os réus sem nenhum tipo de apelação. Deve-se ao julgamento o fato de isso não ter acontecido.

Folha - No livro, Hermann Goering, o número dois de Hitler, se irrita com as perguntas que Goldensohn lhe faz sobre sua infância. Ele responde que não entende qual a importância que sua infância pode ter tido em sua vida adulta. O sr. acha que o comportamento dos nazistas, ao menos dos líderes, pode ser explicado, entre outras coisas, por uma infância problemática?
Gellately -
O que é interessante é que não há uma explicação "fácil" para o que os nazistas fizeram. Um dos acusados [Rudolph Hess, o número três na hierarquia nazista] não tinha condições de ser julgado, mas o resto era normal e são. Nem os principais acusados nem aqueles que testemunharam no tribunal parecem ter tido os "óbvios" problemas de infância ou com os pais. Muitos eram bem-educados e inteligentes. Nenhum, dos que eu saiba, sofreu maus-tratos ou foi espancado pelos pais. Quando os ouvimos contando suas próprias histórias, é perturbador, exatamente porque não há respostas "óbvias".

Folha - Falando do lado psicológico do Terceiro Reich, alguns críticos reagiram raivosamente contra a "humanização" de Hitler no polêmico filme alemão "A Queda!". O sr. concorda com eles? Hitler deve ser considerado um "monstro"?
Gellately -
Eu sou contra a demonização, porque demônios não são humanos. Não foram "demônios" que cometeram esses crimes indizíveis, mas seres humanos. Entendo que algumas pessoas pensem de modo diferente e desejem relegar todos os nazistas a uma outra esfera, além da humana, uma esfera de caráter teológico. Eles parecem certos de que precisamos nos manter chocados e envoltos em mistério sobre os desígnios dos nazistas. Infelizmente, o choque passa muito rapidamente, como podemos ver com os neonazistas ao redor do mundo. Eu acho que é melhor buscar explicações históricas e humanas para o que aconteceu na Alemanha nazista. Isso é o que eu estou tentando fazer. Desmistificação é uma meta educativa importante, na minha modesta opinião.

Folha - Goering, no livro, defende as decisões militares de Hitler, a despeito dos críticos, dentro da Alemanha, que o culparam pela derrota na URSS. Ele estava certo?
Gellately -
Goering podia estar correto, mas certamente as estratégias políticas e militares de Hitler eram ativamente apoiadas por muitos, inclusive os velhos conservadores do estafe militar alemão. Eles pressionaram para que o Exército fosse para Moscou, no momento em que a oposição deles a esse plano certamente teria tido um impacto nas decisões. Algumas das alternativas que os líderes militares alemães sugeriram teriam sido tão ruins ou até piores -por exemplo, avançar em linha reta para Moscou e ignorar Leningrado [no norte], assim como o sul da Rússia. Isso teria deixado as forças alemãs ainda mais expostas ao contra-ataque.
O objetivo geral de tomar a URSS como forma de tirar o Reino Unido da guerra, ao liquidar seu último aliado no continente, foi idéia de Hitler e acabou falhando pela simples razão de que à Alemanha faltaram os recursos necessários para realizar a "blitzkriege" [guerra-relâmpago] contra a vasta URSS.

Folha - Goering diz também que não era anti-semita quando se tornou nazista e que estava mais interessado no que o partido de Hitler estava oferecendo em termos políticos. A despeito do fato de que Goering provavelmente estava mentindo, qual foi a importância do anti-semitismo na ascensão de Hitler? A Alemanha era um país essencialmente anti-semita, como diz Daniel Jonah Goldhagen, historiador de Harvard, em "Os Carrascos Voluntários de Hitler"?
Gellately -
O anti-semitismo era o alfa e o ômega do nacional-socialismo. Ponto. Historiadores que desconsideram isso não estão fazendo sua pesquisa como deviam. Por outro lado, nem todos os alemães compartilhavam do anti-semitismo de Hitler, razão pela qual Goldhagen está errado. Isso explica também por que os nazistas agiram gradativamente contra os judeus quando chegaram ao poder.

Folha - Muitas autoridades nazistas dizem no livro que um ministro não sabia o que os outros estavam fazendo. O sr. acredita nisso? É realmente possível que um Estado gigantesco como o Terceiro Reich pudesse ser governado dessa maneira? Não soa como uma má desculpa, como a famosa "estávamos apenas obedecendo a ordens"?
Gellately -
Em qualquer sistema político, a mão direita geralmente não sabe o que a esquerda está fazendo. Neste caso específico, os acusados sabiam muito mais do que declararam saber. Isso serve especialmente para Albert Speer [arquiteto e depois ministro de armamentos de Hitler], o homem que admitiu, seletivamente, ser "culpado", mas conveniente e desonestamente afirmou que não sabia sobre o que estava acontecendo com os judeus.
Hitler criou o que eu chamo, em meu livro "Backing Hitler: Consent and Coercion in Nazi Germany" [apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista], de uma ditadura consensual. Ele deu enorme liberdade para que seus homens agissem. Hitler queria assessores que fossem tão radicais quanto ele, mas também queria que eles tomassem 95 em cada 100 decisões. Assim, o sistema nazista era ineficiente, mas era também dinâmico e muito difícil de ser derrotado.


Texto Anterior: Nazistas no divã
Próximo Texto: Iraque sob tutela: Paz iraquiana jaz no petróleo, diz analista
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.