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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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DIPLOMACIA

Para Charles Kupchan, legitimidade das Nações Unidas torna a entidade indispensável ao esforço americano no Iraque

Bush não pode desprezar ONU, diz analista

DA REDAÇÃO

O presidente George W. Bush não conseguirá estabilizar a situação no Iraque sem uma nova resolução da ONU. O Iraque está em ruínas, soldados americanos morrem quase diariamente no país e a reconstrução tem um preço elevado demais. Bush precisa desesperadamente de ajuda.
A análise é de Charles A. Kupchan, pesquisador no Council on Foreign Relations e autor de, entre outros, "The End of the American Era: U.S. Foreign Policy and the Geopolitics of the Twenty-First Century" (o fim da era americana: a política externa dos EUA e a geopolítica do século 21).
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha. (MÁRCIO SENNE DE MORAES)
 

Folha - A ONU ficou mais forte ou mais fraca nos últimos 12 meses?
Charles Kupchan -
A organização foi fortalecida e enfraquecida ao mesmo tempo, dependendo do tema tratado. O fato de os EUA terem atacado o Iraque sem uma resolução da ONU minou seu poder e diminuiu seu papel de coordenadora da harmonização dos interesses das grandes potências.
Por outro lado, a ONU ganhou mais visibilidade e publicidade que em qualquer outro momento de sua história recente. Assim, mesmo tendo sido prejudicada pela crise, ela ganhou respeito aos olhos de muitos países, pois conseguiu mostrar que continua sendo um fórum para debates e para o estabelecimento da legitimidade internacional.
O fato de os EUA voltarem à ONU para pedir ajuda, já que precisam de auxílio financeiro e militar no Iraque, é ilustrativo dessa situação. Afinal, Washington sabe que o único modo de convencer a comunidade internacional a contribuir para seus esforços passa pela obtenção de uma nova resolução da ONU. Isso mostra que a entidade continua relevante.

Folha - Aparentemente, contudo, os EUA não pretendem abrir mão de muito poder no Iraque para conseguir a nova resolução. Como o sr. vê essa situação?
Kupchan -
Creio que as diferenças diplomáticas principais venham a ser superadas e que a nova resolução deva ser aprovada em breve. Isso porque Bush não conseguirá estabilizar a situação sem ela. O Iraque está em ruínas, soldados americanos morrem quase diariamente no país e a reconstrução tem um preço elevado demais. Assim, Bush precisa desesperadamente de ajuda.
Ficarei muito surpreso se uma nova resolução não for aprovada logo. Afinal, Bush estará em Nova York para a Assembléia Geral da ONU e encontrará os atores-chave da crise diplomática. Se ele voltar a Washington sem um acordo, isso será visto como um fracasso pessoal dele.

Folha - Como o sr. analisa as divisões atuais entre alguns dos membros mais poderosos da ONU?
Kupchan -
O que observamos atualmente é uma fragmentação do sistema internacional de uma forma inédita nas últimas décadas. Isso ficou mais claro durante a Guerra do Iraque, contudo essa tendência já existia antes do conflito. Uma das principais razões dessa tendência é a separação entre os EUA e uma parte crucial da Europa, visto que esse elo transatlântico tem sido a âncora do sistema internacional desde o final da Segunda Guerra [1939-1945].
Como esse elo está ficando mais frouxo ou talvez até esteja sendo quebrado, a vida em geral fica mais difícil na cena internacional. Na realidade, penso que ficou bem mais fácil para o mundo dizer não aos americanos do que era antes. Afinal, as bases da legitimidade da administração de Bush e o modo como ela vem agindo no Iraque desagradam a boa parte da comunidade internacional e intensificam o grau de questionamento da liderança dos EUA.
Mesmo nos países que apoiaram a guerra, a maioria das pessoas não concordava com a ação de seu governo. A opinião pública global está bastante cética com a atitude americana. O fato de que as supostas armas de destruição em massa iraquianas não foram encontradas agrava a situação. A crescente violência no Iraque e o caos que tomou conta de sua sociedade também só fazem aumentar o ceticismo internacional.

Folha - A médio e longo prazos, que efeitos terá a fragmentação do sistema internacional sobre as relações entre as grandes potências?
Kupchan -
Creio que o mundo será mais dividido e menos previsível. Inevitavelmente, como argumento em meu último livro, haverá um planeta em que existirão inúmeras vozes, vários centros de poder, e isso não é necessariamente algo bem-vindo, pois fará com que a concorrência geopolítica seja agravada.
No entanto também penso que o modo como os EUA expõem seu poder terá um enorme impacto nessa transição. Com isso, se a política externa americana não for considerada essencialmente unilateralista por outros Estados, talvez seja possível gerir essa transição sem grandes sobressaltos.
O problema é que o que ocorre hoje é a pior das hipóteses no que se refere a essa questão. Washington insiste em demonstrar sua supremacia, causando reações negativas até de seus aliados.

Folha - A eleição presidencial americana, que ocorrerá em 2004, é, portanto, crucial?
Kupchan -
Sim. Mas a única coisa boa relacionada ao fiasco americano no Iraque é que ele serviu para enfraquecer os falcões do governo dos EUA. O fracasso expôs as falácias de sua visão estratégica e o quanto ela era inadequada à situação do Iraque.
Com isso, uma coisa é certa: os EUA não invadirão outro país tão cedo. Certamente, a eleição de 2004 é muito importante. Se os democratas vencerem, tudo indica que os EUA voltarão a adotar políticas mais moderadas e multilateralistas. Porém é uma ilusão pensar que voltaremos ao quadro dos anos 90, com Bill Clinton [1993-2001]. O mundo mudou, e os EUA mudaram bastante.


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