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DIPLOMACIA
Para Charles Kupchan, legitimidade das Nações Unidas torna a entidade indispensável ao esforço americano no Iraque
Bush não pode desprezar ONU, diz analista
DA REDAÇÃO
O presidente George W. Bush
não conseguirá estabilizar a situação no Iraque sem uma nova resolução da ONU. O Iraque está
em ruínas, soldados americanos
morrem quase diariamente no
país e a reconstrução tem um preço elevado demais. Bush precisa
desesperadamente de ajuda.
A análise é de Charles A. Kupchan, pesquisador no Council on
Foreign Relations e autor de, entre outros, "The End of the American Era: U.S. Foreign Policy and
the Geopolitics of the Twenty-First Century" (o fim da era americana: a política externa dos EUA
e a geopolítica do século 21).
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
(MÁRCIO SENNE DE MORAES)
Folha - A ONU ficou mais forte ou
mais fraca nos últimos 12 meses?
Charles Kupchan - A organização
foi fortalecida e enfraquecida ao
mesmo tempo, dependendo do
tema tratado. O fato de os EUA terem atacado o Iraque sem uma resolução da ONU minou seu poder
e diminuiu seu papel de coordenadora da harmonização dos interesses das grandes potências.
Por outro lado, a ONU ganhou
mais visibilidade e publicidade
que em qualquer outro momento
de sua história recente. Assim,
mesmo tendo sido prejudicada
pela crise, ela ganhou respeito aos
olhos de muitos países, pois conseguiu mostrar que continua sendo um fórum para debates e para
o estabelecimento da legitimidade internacional.
O fato de os EUA voltarem à
ONU para pedir ajuda, já que precisam de auxílio financeiro e militar no Iraque, é ilustrativo dessa
situação. Afinal, Washington sabe
que o único modo de convencer a
comunidade internacional a contribuir para seus esforços passa
pela obtenção de uma nova resolução da ONU. Isso mostra que a
entidade continua relevante.
Folha - Aparentemente, contudo,
os EUA não pretendem abrir mão
de muito poder no Iraque para conseguir a nova resolução. Como o sr.
vê essa situação?
Kupchan - Creio que as diferenças diplomáticas principais venham a ser superadas e que a nova resolução deva ser aprovada
em breve. Isso porque Bush não
conseguirá estabilizar a situação
sem ela. O Iraque está em ruínas,
soldados americanos morrem
quase diariamente no país e a reconstrução tem um preço elevado
demais. Assim, Bush precisa desesperadamente de ajuda.
Ficarei muito surpreso se uma
nova resolução não for aprovada
logo. Afinal, Bush estará em Nova
York para a Assembléia Geral da
ONU e encontrará os atores-chave da crise diplomática. Se ele voltar a Washington sem um acordo,
isso será visto como um fracasso
pessoal dele.
Folha - Como o sr. analisa as divisões atuais entre alguns dos membros mais poderosos da ONU?
Kupchan - O que observamos
atualmente é uma fragmentação
do sistema internacional de uma
forma inédita nas últimas décadas. Isso ficou mais claro durante
a Guerra do Iraque, contudo essa
tendência já existia antes do conflito. Uma das principais razões
dessa tendência é a separação entre os EUA e uma parte crucial da
Europa, visto que esse elo transatlântico tem sido a âncora do sistema internacional desde o final
da Segunda Guerra [1939-1945].
Como esse elo está ficando mais
frouxo ou talvez até esteja sendo
quebrado, a vida em geral fica
mais difícil na cena internacional.
Na realidade, penso que ficou
bem mais fácil para o mundo dizer não aos americanos do que era
antes. Afinal, as bases da legitimidade da administração de Bush e
o modo como ela vem agindo no
Iraque desagradam a boa parte da
comunidade internacional e intensificam o grau de questionamento da liderança dos EUA.
Mesmo nos países que apoiaram a guerra, a maioria das pessoas não concordava com a ação
de seu governo. A opinião pública
global está bastante cética com a
atitude americana. O fato de que
as supostas armas de destruição
em massa iraquianas não foram
encontradas agrava a situação. A
crescente violência no Iraque e o
caos que tomou conta de sua sociedade também só fazem aumentar o ceticismo internacional.
Folha - A médio e longo prazos,
que efeitos terá a fragmentação do
sistema internacional sobre as relações entre as grandes potências?
Kupchan - Creio que o mundo
será mais dividido e menos previsível. Inevitavelmente, como argumento em meu último livro,
haverá um planeta em que existirão inúmeras vozes, vários centros de poder, e isso não é necessariamente algo bem-vindo, pois
fará com que a concorrência geopolítica seja agravada.
No entanto também penso que
o modo como os EUA expõem
seu poder terá um enorme impacto nessa transição. Com isso, se a
política externa americana não
for considerada essencialmente
unilateralista por outros Estados,
talvez seja possível gerir essa transição sem grandes sobressaltos.
O problema é que o que ocorre
hoje é a pior das hipóteses no que
se refere a essa questão. Washington insiste em demonstrar sua supremacia, causando reações negativas até de seus aliados.
Folha - A eleição presidencial
americana, que ocorrerá em 2004,
é, portanto, crucial?
Kupchan - Sim. Mas a única coisa
boa relacionada ao fiasco americano no Iraque é que ele serviu
para enfraquecer os falcões do governo dos EUA. O fracasso expôs
as falácias de sua visão estratégica
e o quanto ela era inadequada à situação do Iraque.
Com isso, uma coisa é certa: os
EUA não invadirão outro país tão
cedo. Certamente, a eleição de
2004 é muito importante. Se os
democratas vencerem, tudo indica que os EUA voltarão a adotar
políticas mais moderadas e multilateralistas. Porém é uma ilusão
pensar que voltaremos ao quadro
dos anos 90, com Bill Clinton
[1993-2001]. O mundo mudou, e
os EUA mudaram bastante.
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