São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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ORIENTE MÉDIO

Na região, cerca de 1,3 milhão de pessoas vivem assoladas por desemprego, falta de infra-estrutura e violência

Palestinos são prisioneiros na pobre Gaza

Elizabeth Dalziel/Associated Press
Criança palestina brinca diante de casa com grafites que retratam conflito com Israel no campo de refugiados de Beach, em Gaza


IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL À FAIXA DE GAZA

A entrada na Faixa de Gaza, a partir do posto de fronteira de Erez, dá ao visitante uma noção clara de por que esse pedaço de terra de 360 km2 está no centro das dificuldades para a formação de um Estado palestino e o estabelecimento de uma paz com Israel. É a entrada de uma prisão.
Quem já visitou cadeias de segurança máxima não estranharia o longo corredor marcado por barreiras e revistas que leva, num processo de 45 minutos em dias sem fila, a Gaza. O arame farpado abundante, os holofotes e ordens dadas por alto-falantes acrescentam a desconfortável lembrança de um campo de concentração.
De certa forma, tal controle em Erez resume o impasse israelo-palestino. Gaza é uma terra miserável, tem uma população asfixiada economicamente. Israel, por sua vez, vê sair da barriga desse monstro gente disposta a tudo -inclusive a se explodir dentro de Erez, como ocorreu há seis meses, levando aos extremos de segurança aplicados.
Para um observador externo, é difícil saber onde está o ovo, onde está a galinha. Pode-se ter simpatia por um lado ou por outro, mas o que não escapa de um comentário mais preciso é a condição de vida do 1,3 milhão de palestinos que moram na faixa de Gaza e o ciclo de violência decorrente.
"Cheguei em 1953, expulso de minha vila, Dermak, pelos israelenses. Desde então, só vi as coisas piorarem. Não sei se hoje conseguiria criar meus oito filhos", diz Muhammad Burai, 84. Dono de uma loja que vende de fita adesiva a gasolina a poucos metros da praça onde a primeira Intifada (1987) começou, Burai foi um dos primeiros moradores de Jabalya.
Hoje, Jabalya é o maior campo de refugiados de Gaza, com 110 mil habitantes segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), que o administra em conjunto com a ANP (Autoridade Nacional Palestina). Suas tendas iniciais viraram casas de alvenaria ao estilo da periferia pobre das grandes cidades brasileiras.
Em cada esquina, cartazes ao estilo daqueles que eram pintados a mão nos cinemas antigamente. Só que em vez de astros hollywoodianos, os chamados mártires. Militantes anti-Israel mortos, ou em combate ou se explodindo, eles são venerados e inspiram subgrupos de agremiações como o Hamas ou o Jihad Islâmico.
Esses subgrupos, ou células, acabam ocupando as funções de segurança pública nas áreas mais miseráveis. "Apenas estamos cuidando para que as coisas não saiam do controle", disse Radeh, um rapaz aparentando 20 e poucos anos que não diz o sobrenome. Diz que é filiado ao Hamas, mas que age por conta própria.
Ostentando uma pistola 45 na cintura e um fuzil Kalashnikov encostado contra a parede de seu "escritório", uma pequena biboca, ele não acredita que haverá paz durante o processo eleitoral palestino. Se tem razão é motivo de discussão, mas os dois tiroteios que a Folha ouviu enquanto conversava com ele não colaboraram para uma boa impressão.
"O nosso problema é que não temos emprego, Israel não nos deixa viver", disse Radeh. Independentemente do julgamento de mérito, o fato é objetivo: Gaza é uma prisão da qual poucos saem para ganhar a vida e na qual as oportunidades são escassas.
Israel culpa a segunda intifada (2000) e os ataques terroristas que a seguiram pelas restrições impostas. Antes, cerca de 125 mil pessoas de toda a faixa de Gaza trabalhavam em Israel, segundo a ONU. Agora, são apenas 25 mil. Somente na cidade de Gaza são 80 mil os que perderam empregos.
Gente como Mahmoud Nagib, 50. Ele mora no outro campo de refugiados que virou bairro de Gaza Beach -que tem esse nome, "praia" em inglês, por ficar a beira-mar. "Eu trabalhava com construção perto de Ashkelon [maior cidade israelense ao norte de Gaza], mas não deu para continuar. Comecei a faltar sucessivamente e meu patrão, que é árabe, me demitiu", disse.
Em Beach moram 76 mil pessoas. Como em Jabalya, as casas de alvenaria lembram as de favelas que viram bairros. A sujeira é extrema, já que a ONU só consegue fazer a coleta de lixo duas vezes por semana, e o cheiro de excremento dos onipresentes jumentos e cabras se une ao de urina humana e de maresia.
Nagib voltou-se para a ANP para tentar melhorar de vida. Ganha cerca de US$ 150 por mês como professor primário, aproximadamente quatro vezes menos do que ganhava antes. É relativamente um sortudo, contudo.
Segundo o Banco Mundial, 50% dos palestinos de Gaza estão desempregados. É o caso de um primo de Nagib, Ahmed Zakut, 48. Nascido em Jabalya, filho de um refugiado da região de Jaffa [hoje território de Israel], Zakut trabalhava em Jerusalém Oriental todos os dias. A viagem leva cerca de 1h15 pelas bem-cuidadas rodovias israelenses.
"Tinha uma loja com meu primo lá desde 1995. Vendíamos tintas e produtos químicos. Deu bem certo, e abri uma aqui em Gaza, onde coloquei meu irmão para trabalhar. Mas com o fechamento das fronteiras tive que parar de ir para Jerusalém. E por falta de dinheiro aqui dentro, ninguém mais comprava nada. Fali e estou vivendo de ajuda da família há dois anos", disse.
Família grande, diga-se de passagem. Zakut tem nove irmãos e irmãs. Fez cinco filhos com sua mulher, que morreu no começo do ano de câncer, e eles têm entre 7 e 25 anos. A palestina de Gaza tem em média 6 filhos, e a taxa de crescimento populacional foi de 3,83% segundo a ONU em 2003. A mortalidade infantil é altíssima: 23,54 por mil nascidos.
Nisso a Cisjordânia, longe de ser algum tipo de paraíso na terra, mostra índices mais civilizados. A fertilidade por mulher fica na casa dos 4,5 filhos e a mortalidade, em 4 óbitos por mil nascimentos.
E a bomba populacional de Gaza vai sendo armada. Segundo a ONU, 49% dos habitantes têm entre 0 e 14 anos, contra 48% entre 15 e 65 anos, o grosso na faixa de 20 a 30. Os idosos acima de 65 anos são apenas 2,7% e incluem o pai de Nagib, Mustafa Nagib, 81.
Nascido onde hoje fica Ashkelon, Nabig veio para uma Gaza ainda com forte influência britânica em 1950. "Levamos uma vida dura naquele tempo, meus filhos também sofreram e acho que meus netos também irão passar por isso", disse.
Saindo dos campos e indo para o centro da cidade, a imagem não melhora muito. Ainda que haja alguns bons apartamentos, geralmente casa dos oficiais mais altos da ANP, a pobreza é extremamente visível. Pastores de cabras disputam espaço com as antigas Mercedes-Benz táxi e alguns carros novos -geralmente de autoridades ou serviços de segurança.
Na segunda-feira passada, quando a Folha esteve no centro de Gaza, patrulhas com camionetes japonesas e coreanas zero-quilômetro lotadas de soldados armados com fuzis eram constantes. A preocupação era evitar que o tiroteio na presença do homem-forte da política palestina, Mahmoud Abbas, o Abu Mazen, se tornasse uma constante.
Uma reunião para apaziguar o Hamas e o Jihad Islâmico, entre outros, foi convocada. "Veja, nosso problema está a nossa volta. Não queremos atacar, mas temos que atacar Israel se formos agredidos", disse à Folha o porta-voz do Hamas Sami Abu Zohri.
Ele aponta os lugares-comuns -desemprego, falta de oportunidades aos jovens, a presença de apenas 5.000 colonos judeus em 70% das terras locais- como os responsáveis pela violência, negando oportunismo político e não comentando o fato de que o terror acaba por incentivar uma pressão maior de Israel.
A retirada dos colonos, aprovada pelo governo de Ariel Sharon, não comove Zohri nem um de seus apoiadores, o taxista Rawhi Dahlam. Aos 34 anos, com seis filhos entre 1 e 12 anos, ele diz que Sharon apenas quer se ver livre de Gaza. "Vão nos fechar aqui, nos matar de fome", disse ele, que trabalha na empresa de táxi de seu irmão há dois anos.
Ganha US$ 500 num mês bom, um excelente salário para o local -o PIB per capita é de US$ 600. "Dá para sustentar minha família, trabalhando 15 horas por dia. Está ótimo, olhando à minha volta. Pelo menos não moro nos campos", disse. Com efeito, 880 mil dos 1,3 milhão de habitantes de Gaza mora nos oito campos da ONU.
A infra-estrutura básica é ruim. A água não é 100% potável, e caminhões vendem 2 litros a 1 shekel (US$ 0,25). Para piorar as coisas, os caminhões anunciam a venda de água com a mesma versão sintetizada de "Pour Elise" que atazana há mais de uma década os ouvidos paulistanos.
Não é só a água que encarece o custo de vida. O litro do diesel, usado na maioria dos carros, custa 4 a 5 shekalim, contra preços entre 1 e 2 shekalim em Israel. Produção local, apenas de algumas frutas e legumes. Em 2003, a balança comercial foi desfavorável em US$ 1,3 bilhão, e a contração no PIB de 2000 para cá superou os 25%, segundo dados do Banco Mundial citados pela ANP.
Mesmo a ajuda externa, de US$ 2 bilhões para Gaza e Cisjordânia, mantém apenas o básico. Nos campos de Gaza, são 7.200 oficiais da ONU trabalhando, a maioria nas 169 escolas com 184 mil alunos registrados no ano passado.
"Dois dos meus filhos estão na escola, os outros não vão porque não tenho como comprar material escolar", diz o taxista Dahlam. Explodir bombas em Israel ajuda? "Não sei se vamos ter paz, mas temos que combater o inimigo que faz isso conosco", diz ele, que votaria num candidato do Hamas a presidente -se houvesse um.
Dahlam fala no centro da cidade. Numa esquina, cinco garotos, na faixa dos 10 anos, aproveitam o feriado do Eid el Fitr para brincar. Todos têm reluzentes pistolas calibre 45 de brinquedo na mão. Uma menina mais velha, talvez com 15 anos, aparece e "mata" os meninos com sua Kalashnikov de plástico. Há brinquedos de parquinho infantil nas calçadas, mas o tema mocinho-e-bandido, versão Gaza, predomina -servindo de lembrete ao observador externo que o tal processo de paz no Oriente Médio é um nome bonito para as CNNs e Fox News da vida, mas que o ciclo de violência talvez esteja longe de acabar.


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