São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Enclave espanhol incomoda Marrocos

Atmosfera pacata em Ceuta, no norte da África, esconde sentimento de segregação e disputa por soberania

Cidadãos de origem marroquina são 41% dos 80 mil habitantes da área, que vive atritos culturais e sociais

SAMY ADGHIRNI
ENVIADO ESPECIAL A CEUTA
(ESPANHA)

De um lado da cerca, poeira, pobreza e táxis coletivos caindo aos pedaços.
Do outro, prosperidade, alamedas floridas e construções modernas.
Na fronteira de Ceuta, cidadezinha espanhola cravada no litoral norte do Marrocos, África e Europa dividem o mesmo solo.
O enclave de 80 mil habitantes é motivo de atrito recorrente entre Madri e Rabat -que considera o território ilegalmente ocupado, assim como Melilla, 400 km a leste.
Marrocos também reclama de como são tratados os seus cidadãos autorizados a trabalhar em Ceuta e os residentes naturalizados espanhois.
Mas, à primeira vista, o clima no território espanhol é de tranquila coexistência entre comunidades.
Nas elegantes ruas para pedestres, pessoas usando roupas ocidentais se misturam com outras vestidas no estilo islâmico.
Ouve-se tanto espanhol quanto árabe, embora todos os letreiros e placas sejam escritos apenas em castelhano. Tudo se negocia em euros.
Aposentados espanhóis conversam sentados nos bancos da pracinha em frente à prefeitura, ao lado de famílias muçulmanas com carrinhos de bebês.
Os funcionários que limpam o chafariz da praça são marroquinos. Assim como muitos dos que trabalham no comércio e na construção.
"Aqui não temos problemas entre comunidades, como em Madri. Nos respeitamos e vivemos numa boa", diz à Folha Juan José Vega, 56, dono de uma butique de roupas femininas.
Funcionária da loja, Fatima, 21, que não usa véu, concorda. "Sou muçulmana nascida e criada aqui, e me sinto totalmente parte de Ceuta."
Na semana passada, a prefeitura decretou, pela primeira vez, feriado por conta do Eid El Adha, uma das principais festas do calendário islâmico. No restante do Espanha, foi um dia normal.
Na saída de um bar, o militar da reserva Manolo Rodriguez, 62, espera os amigos.
"A vida aqui é 100% melhor do que na península [Espanha continental]. O tempo é mais agradável, as coisas custam menos e os muçulmanos daqui são trabalhadores. Os de Madri são uns ladrões", afirma Manolo.
Os aspectos mais sombrios da vida no enclave passam despercebidos aos olhos do visitante desavisado.
Mas a alguns quarteirões do centro, na contramão do roteiro turístico, encontra-se o bairro de El Príncipe, onde vivem 15 mil marroquinos naturalizados espanhóis.
Reclamam da falta de investimentos e cobram da prefeitura áreas verdes e de lazer como no centro. Dizem ser tratados como "cidadãos de segunda classe", apesar de serem metade da população.

DESEMPREGO
Os descendentes de marroquinos são as maiores vítimas do desemprego, atualmente em 20%, dois pontos acima da média espanhola.
A situação agravou-se após a crise global de 2008, que atingiu em cheio o setor de construção, movido por mão de obra marroquina.
"Agora só consigo trabalho sem assinar carteira. E ainda assim me pagam metade do que pagariam a um espanhol", diz Mustafá K., 40.
Ele não tem passaporte europeu, mas pode entrar em Ceuta sem visto, como todos os marroquinos residentes perto da fronteira.
Também há tensões culturais, mais palpáveis fora do elegante centro.
Muitos culpam as crianças que só falam árabe em casa pelo fracasso escolar de 50%, o mais alto do país. São raros os casais mistos.
A presença de mesquitas, além de igrejas e sinagogas, não impede atritos. "Zombam de mim quando faço o jejum do Ramadã e olham atravessado por usar barba", conta Hazim Mohamed, 40, eletricista desempregado.
Ele diz ser chamado com frequência de "árabe sujo".
Coberta com o véu islâmico, Mouna S., 27, resigna-se.
"Sou feliz por ser europeia, mas é claro que considero Ceuta terra ocupada. O que podemos fazer? Guerra? Impossível. Os marroquinos precisam entender que nunca controlarão a cidade."


Texto Anterior: Luiz Carlos Bresses-Pereira: Política externa altiva e ativa
Próximo Texto: Frase
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.