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Enclave espanhol incomoda Marrocos
Atmosfera pacata em Ceuta, no norte da África, esconde sentimento de segregação e disputa por soberania
Cidadãos de origem marroquina são 41% dos 80 mil habitantes da área, que vive atritos culturais e sociais
SAMY ADGHIRNI
ENVIADO ESPECIAL A CEUTA
(ESPANHA)
De um lado da cerca, poeira, pobreza e táxis coletivos
caindo aos pedaços.
Do outro, prosperidade,
alamedas floridas e construções modernas.
Na fronteira de Ceuta, cidadezinha espanhola cravada no litoral norte do Marrocos, África e Europa dividem
o mesmo solo.
O enclave de 80 mil habitantes é motivo de atrito recorrente entre Madri e Rabat
-que considera o território
ilegalmente ocupado, assim
como Melilla, 400 km a leste.
Marrocos também reclama
de como são tratados os seus
cidadãos autorizados a trabalhar em Ceuta e os residentes naturalizados espanhois.
Mas, à primeira vista, o clima no território espanhol é
de tranquila coexistência entre comunidades.
Nas elegantes ruas para
pedestres, pessoas usando
roupas ocidentais se misturam com outras vestidas no
estilo islâmico.
Ouve-se tanto espanhol
quanto árabe, embora todos
os letreiros e placas sejam escritos apenas em castelhano.
Tudo se negocia em euros.
Aposentados espanhóis
conversam sentados nos
bancos da pracinha em frente à prefeitura, ao lado de famílias muçulmanas com carrinhos de bebês.
Os funcionários que limpam o chafariz da praça são
marroquinos. Assim como
muitos dos que trabalham no
comércio e na construção.
"Aqui não temos problemas entre comunidades, como em Madri. Nos respeitamos e vivemos numa boa",
diz à Folha Juan José Vega,
56, dono de uma butique de
roupas femininas.
Funcionária da loja, Fatima, 21, que não usa véu, concorda. "Sou muçulmana nascida e criada aqui, e me sinto
totalmente parte de Ceuta."
Na semana passada, a prefeitura decretou, pela primeira vez, feriado por conta do
Eid El Adha, uma das principais festas do calendário islâmico. No restante do Espanha, foi um dia normal.
Na saída de um bar, o militar da reserva Manolo Rodriguez, 62, espera os amigos.
"A vida aqui é 100% melhor do que na península [Espanha continental]. O tempo
é mais agradável, as coisas
custam menos e os muçulmanos daqui são trabalhadores. Os de Madri são uns ladrões", afirma Manolo.
Os aspectos mais sombrios
da vida no enclave passam
despercebidos aos olhos do
visitante desavisado.
Mas a alguns quarteirões
do centro, na contramão do
roteiro turístico, encontra-se
o bairro de El Príncipe, onde
vivem 15 mil marroquinos
naturalizados espanhóis.
Reclamam da falta de investimentos e cobram da prefeitura áreas verdes e de lazer
como no centro. Dizem ser
tratados como "cidadãos de
segunda classe", apesar de
serem metade da população.
DESEMPREGO
Os descendentes de marroquinos são as maiores vítimas do desemprego, atualmente em 20%, dois pontos
acima da média espanhola.
A situação agravou-se
após a crise global de 2008,
que atingiu em cheio o setor
de construção, movido por
mão de obra marroquina.
"Agora só consigo trabalho sem assinar carteira. E
ainda assim me pagam metade do que pagariam a um espanhol", diz Mustafá K., 40.
Ele não tem passaporte europeu, mas pode entrar em
Ceuta sem visto, como todos
os marroquinos residentes
perto da fronteira.
Também há tensões culturais, mais palpáveis fora do
elegante centro.
Muitos culpam as crianças
que só falam árabe em casa
pelo fracasso escolar de 50%,
o mais alto do país. São raros
os casais mistos.
A presença de mesquitas,
além de igrejas e sinagogas,
não impede atritos. "Zombam de mim quando faço o
jejum do Ramadã e olham
atravessado por usar barba",
conta Hazim Mohamed, 40,
eletricista desempregado.
Ele diz ser chamado com
frequência de "árabe sujo".
Coberta com o véu islâmico, Mouna S., 27, resigna-se.
"Sou feliz por ser europeia,
mas é claro que considero
Ceuta terra ocupada. O que
podemos fazer? Guerra? Impossível. Os marroquinos
precisam entender que nunca controlarão a cidade."
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