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Chefe do Acnur vê risco de "choque de civilizações"
Para Guterres, da agência de refugiados da ONU, crises humanitárias estão interligadas
À frente de órgão que acolhe 33 milhões no mundo, ele vê multiculturalização
como irreversível e elogia política de asilo do Brasil
Fred Dufour-31.dez.02/France Presse
![](../images/e2201200801.jpg) |
Menino vítima de conflito civil em Darfur se abriga em campo de refugiados francês no Chade |
MARCELO NINIO
DE GENEBRA
As mais graves crises humanitárias do mundo hoje estão
interligadas por um fio invisível, alerta um dos principais
responsáveis por monitorá-las.
Para o português Antonio Guterres, chefe do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (Acnur), o fio é o
risco de que esses conflitos deflagrem o temido "choque de
civilizações".
Ex-premiê de Portugal
(1996-2002), Guterres chefia
desde 2005 uma das agências
da ONU mais identificadas com
as tragédias mundiais. Sob seu
comando estão mais de 6.000
funcionários, que prestam ajuda a 33 milhões de pessoas.
Em entrevista à Folha, na sede do Acnur, Guterres reconheceu que o fluxo de refugiados retornando ao Iraque indica uma melhora nas condições
de segurança no país e elogiou
a política de asilo do Brasil
-"uma das mais avançadas do
mundo", diz. A seguir, os principais trechos da entrevista.
FOLHA - O que há em comum entre
as principais crises humanitárias do
mundo hoje?
ANTONIO GUTERRES - O Acnur
tem hoje quatro operações que
causam preocupação fortíssima: Afeganistão, Iraque, Sudão
e Somália. As quatro estão de
algum modo ligadas, na medida
em que há o risco, que é preciso
evitar a todo preço, de os conflitos políticos subjacentes se interligarem. Pior, de assumirem
a imagem de um confronto entre civilizações, transformando-se num foco de ameaça global. Tudo o que puder ser feito
para evitar um choque de civilizações, e para que cada um desses conflitos seja visto na sua
dimensão própria, será uma
contribuição inestimável para
a paz mundial.
FOLHA - O que o recente atentado
contra a ONU na Argélia demonstra
sobre o papel da organização dentro
desse cenário de risco?
GUTERRES - A ONU tem várias
dimensões. Tem a humanitária, mas também a dimensão
política, que está sobretudo relacionada com o trabalho do
Conselho de Segurança. E é evidente que muitas decisões políticas assumem um aspecto
controverso. Isso faz com que
grupos extremistas sejam incapazes de fazer qualquer distinção e sacrifiquem vítimas inocentes. Um atentado como esse
reforça a importância de que
tudo deve ser feito para que o
próprio conceito de guerra de
civilizações não seja aceitável.
Vivemos hoje em um mundo
em que todas as sociedades estão se transformando em sociedades multiétnicas, multiculturais e multireligiosas. Este é o
século do povo em movimento.
Temos hoje 200 milhões de
imigrantes em todo o mundo. É
essencial que as pessoas se habituem a viver juntos e respeitem a diversidade.
FOLHA - Nos últimos meses tem
havido um retorno dos refugiados
ao Iraque. Isso é sinal de sucesso da
nova estratégia militar americana?
GUTERRES - Não nos compete tirar conclusões políticas. O que
se pode dizer é que, num quadro de situação humanitária
dramática, de 2 milhões de iraquianos fora do país e 2 milhões
deslocados em seu próprio
país, se verificou nos últimos
meses um movimento ainda incipiente de regresso de iraquianos que estavam na Síria. A razão principal foi a dificuldade
das condições de vida no país
de acolhida. Mas também houve uma melhora nas condições
de segurança.
FOLHA - O Brasil recentemente
acolheu cerca de cem refugiados palestinos que estavam no Iraque. Não
é pouco dentro desse universo de
milhões de vítimas?
GUTERRES - O número pode ser
pequeno, mas o significado
desse reassentamento é extraordinário. É a primeira vez
que, com o consentimento das
autoridades palestinas, é aceito
o princípio de reassentamento
de palestinos fora do mundo
árabe. Isso demonstra um
grande respeito pelo Brasil e
pela sua atitude em relação ao
conflito árabe-israelense. O
exemplo brasileiro já foi seguido pelo Chile, e nós acreditamos que o gesto do Brasil vai ter
enorme impacto na região.
FOLHA - Na lista de doadores do
Acnur o Brasil ocupa a 83ª colocação, atrás de países como Chile e Estônia. Não é uma posição modesta?
GUTERRES - O que mais nos importa não é a contribuição financeira, mas a política de asilo
brasileira, que nós consideramos das mais avançadas do
mundo. O Brasil tem refugiados de mais de 50 nacionalidades. É o único país do mundo
que aceita reassentamento de
urgência com 72 horas de aviso.
FOLHA - A questão dos refugiados
é uma das mais espinhosas nas negociações de paz entre Israel e palestinos. Qual a posição do Acnur sobre
o "direito de retorno" dos palestinos, que Israel considera uma ameaça a sua existência?
GUTERRES - Nós temos uma
doutrina geral, que é de considerar que a solução preferida
para o problemas dos refugiados é seu retorno ao país de origem. Naturalmente há outras
soluções, como o reassentamento. Mas sempre defendemos o direito de retorno. É uma
questão doutrinária, um princípio geral da nossa agência.
FOLHA - O escritor José Saramago
disse recentemente que a anexação
de Portugal à Espanha e a criação de
um país chamado Ibéria é algo inevitável. O sr. concorda?
GUTERRES - Não. Tenho muito
orgulho de ser português e acho
que oito séculos de história forjaram uma identidade muito
forte, que não foi feita no isolamento, mas na encruzilhada
das civilizações. Não tenho nenhuma intenção de colocar a
independência do meu país em
questão.
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