São Paulo, terça-feira, 22 de janeiro de 2008

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Chefe do Acnur vê risco de "choque de civilizações"

Para Guterres, da agência de refugiados da ONU, crises humanitárias estão interligadas

À frente de órgão que acolhe 33 milhões no mundo, ele vê multiculturalização como irreversível e elogia política de asilo do Brasil

Fred Dufour-31.dez.02/France Presse
Menino vítima de conflito civil em Darfur se abriga em campo de refugiados francês no Chade


MARCELO NINIO
DE GENEBRA

As mais graves crises humanitárias do mundo hoje estão interligadas por um fio invisível, alerta um dos principais responsáveis por monitorá-las. Para o português Antonio Guterres, chefe do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o fio é o risco de que esses conflitos deflagrem o temido "choque de civilizações". Ex-premiê de Portugal (1996-2002), Guterres chefia desde 2005 uma das agências da ONU mais identificadas com as tragédias mundiais. Sob seu comando estão mais de 6.000 funcionários, que prestam ajuda a 33 milhões de pessoas. Em entrevista à Folha, na sede do Acnur, Guterres reconheceu que o fluxo de refugiados retornando ao Iraque indica uma melhora nas condições de segurança no país e elogiou a política de asilo do Brasil -"uma das mais avançadas do mundo", diz. A seguir, os principais trechos da entrevista.

 

FOLHA - O que há em comum entre as principais crises humanitárias do mundo hoje?
ANTONIO GUTERRES -
O Acnur tem hoje quatro operações que causam preocupação fortíssima: Afeganistão, Iraque, Sudão e Somália. As quatro estão de algum modo ligadas, na medida em que há o risco, que é preciso evitar a todo preço, de os conflitos políticos subjacentes se interligarem. Pior, de assumirem a imagem de um confronto entre civilizações, transformando-se num foco de ameaça global. Tudo o que puder ser feito para evitar um choque de civilizações, e para que cada um desses conflitos seja visto na sua dimensão própria, será uma contribuição inestimável para a paz mundial.

FOLHA - O que o recente atentado contra a ONU na Argélia demonstra sobre o papel da organização dentro desse cenário de risco?
GUTERRES -
A ONU tem várias dimensões. Tem a humanitária, mas também a dimensão política, que está sobretudo relacionada com o trabalho do Conselho de Segurança. E é evidente que muitas decisões políticas assumem um aspecto controverso. Isso faz com que grupos extremistas sejam incapazes de fazer qualquer distinção e sacrifiquem vítimas inocentes. Um atentado como esse reforça a importância de que tudo deve ser feito para que o próprio conceito de guerra de civilizações não seja aceitável.
Vivemos hoje em um mundo em que todas as sociedades estão se transformando em sociedades multiétnicas, multiculturais e multireligiosas. Este é o século do povo em movimento. Temos hoje 200 milhões de imigrantes em todo o mundo. É essencial que as pessoas se habituem a viver juntos e respeitem a diversidade.

FOLHA - Nos últimos meses tem havido um retorno dos refugiados ao Iraque. Isso é sinal de sucesso da nova estratégia militar americana?
GUTERRES -
Não nos compete tirar conclusões políticas. O que se pode dizer é que, num quadro de situação humanitária dramática, de 2 milhões de iraquianos fora do país e 2 milhões deslocados em seu próprio país, se verificou nos últimos meses um movimento ainda incipiente de regresso de iraquianos que estavam na Síria. A razão principal foi a dificuldade das condições de vida no país de acolhida. Mas também houve uma melhora nas condições de segurança.

FOLHA - O Brasil recentemente acolheu cerca de cem refugiados palestinos que estavam no Iraque. Não é pouco dentro desse universo de milhões de vítimas?
GUTERRES -
O número pode ser pequeno, mas o significado desse reassentamento é extraordinário. É a primeira vez que, com o consentimento das autoridades palestinas, é aceito o princípio de reassentamento de palestinos fora do mundo árabe. Isso demonstra um grande respeito pelo Brasil e pela sua atitude em relação ao conflito árabe-israelense. O exemplo brasileiro já foi seguido pelo Chile, e nós acreditamos que o gesto do Brasil vai ter enorme impacto na região.

FOLHA - Na lista de doadores do Acnur o Brasil ocupa a 83ª colocação, atrás de países como Chile e Estônia. Não é uma posição modesta?
GUTERRES -
O que mais nos importa não é a contribuição financeira, mas a política de asilo brasileira, que nós consideramos das mais avançadas do mundo. O Brasil tem refugiados de mais de 50 nacionalidades. É o único país do mundo que aceita reassentamento de urgência com 72 horas de aviso.

FOLHA - A questão dos refugiados é uma das mais espinhosas nas negociações de paz entre Israel e palestinos. Qual a posição do Acnur sobre o "direito de retorno" dos palestinos, que Israel considera uma ameaça a sua existência?
GUTERRES -
Nós temos uma doutrina geral, que é de considerar que a solução preferida para o problemas dos refugiados é seu retorno ao país de origem. Naturalmente há outras soluções, como o reassentamento. Mas sempre defendemos o direito de retorno. É uma questão doutrinária, um princípio geral da nossa agência.

FOLHA - O escritor José Saramago disse recentemente que a anexação de Portugal à Espanha e a criação de um país chamado Ibéria é algo inevitável. O sr. concorda?
GUTERRES -
Não. Tenho muito orgulho de ser português e acho que oito séculos de história forjaram uma identidade muito forte, que não foi feita no isolamento, mas na encruzilhada das civilizações. Não tenho nenhuma intenção de colocar a independência do meu país em questão.


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