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ARTIGO
Da omissão aos cadáveres na internet
SONINHA FRANCINE
COLUNISTA DA FOLHA
Não havia batalhas sangrentas a mostrar na TV. E a falta de
atenção, solidariedade e coragem das autoridades estrangeiras desmoralizou a resistência
pacífica dos tibetanos.
"Ontem assisti a "Sete Anos
no Tibete". Não sabia que tinha
sido daquele jeito!" Há cerca de
um mês, um amigo, debatedor
aguerrido sobre questões internacionais, ainda não conhecia a
história e a dimensão do conflito entre China e Tibete.
Quando o Partido Comunista
assumiu o poder na China em
1949, logo manifestou a intenção de "libertar todos os territórios chineses, incluindo o Tibete". "Libertar" de que? Mao
Tsé-tung especificou: "Religião
é veneno. Degenera a raça e retarda o progresso do país".
A religião era um dos principais elementos a definir o Tibete como nação. Os costumes e
os ensinamentos budistas organizavam o calendário oficial
e regulavam a ética profissional, as relações familiares e os
assuntos nacionais. Monastérios e templos constituíam centros de estudos elevados e armazenavam de obras de arte a
trabalhos sobre literatura, medicina, política etc.
Em 1950, o Exército Popular
de Libertação invadiu o Tibete
pela primeira vez; muitas ações
violentas se seguiram. Entre as
atrocidades cometidas nos
anos seguintes sob a égide da
"reforma democrática", houve
a destruição e pilhagem de monastérios e conventos (dos
mais de 6.000 que havia até
1955, restavam oito na década
de 70) e a humilhação, tortura e
execução de monges e monjas.
A população foi dizimada em
um sexto. Milhares buscaram o
exílio e muitos se arriscam até
hoje em fugas extenuantes pelo
Himalaia atrás de liberdade.
À violência das armas se seguiu outra estratégia de invasão e ocupação: a colonização.
Há transferência maciça de
chineses para a "Região Autônoma (!) do Tibete", com acesso privilegiado ao ensino, empregos e cargos públicos.
O IDH dos tibetanos é gritantemente inferior. Por meio da
repressão ou ridicularização,
suprimem-se os traços culturais tibetanos, a começar da
proibição do idioma. Uma nação foi vilipendiada e parte do
patrimônio histórico da humanidade foi quase condenada à
extinção.
Reticências
A palavra "genocídio", usada
pelo dalai-lama, foi empregada
em 1960 por uma Comissão de
Juristas da ONU para descrever o ocorrido no Tibete. Mas a
resistência predominantemente pacífica dos tibetanos manteve a tragédia longe do noticiário. Não havia batalhas sangrentas ou atentados suicidas a
mostrar na TV. E influentes autoridades estrangeiras abusaram das reticências ao abordar
o problema.
Em 2002, diante do Relatório Anual sobre Direitos Humanos que apontava graves infrações no Tibete, o então secretário de Estado dos EUA,
Collin Powell, declarou-se
"preocupado" com os repetidos
"deslizes", mas recusou-se a
aprovar moção de repúdio à
China na Comissão de Direitos
Humanos da ONU [hoje Conselho de Direitos Humanos].
Essa falta de atenção, solidariedade e coragem da comunidade internacional acabou por
desmoralizar as tentativas de
negociação civilizada. O dalai-lama foi perdendo a autoridade
junto a jovens tibetanos, que já
não suportavam mais a opressão e, cedo ou tarde, se insurgiriam com mais energia. A iminência dos Jogos Olímpicos
acendeu a tocha.
Faltavam carros incendiados
e cadáveres? Aí estão. Recebi
por e-mail fotos de monges
mortos a tiros. E as nações ocidentais ainda hesitam em bater
o pé. Não podem cortar relações comerciais e não precisam
boicotar os Jogos, mas nem sequer admitem o gesto simbólico de faltar à abertura.
O show deve continuar!
"Pragmatismo" se consolida
como sinônimo de incoerência,
hipocrisia e tibieza. E "separatismo" virou sinônimo de beligerância, como se atenuasse a
reação violenta da China. Ora,
os tibetanos querem o direito à
autodeterminação de que desfrutavam meio século atrás.
No Ocidente, horroriza-nos a
idéia de casamentos arranjados
à revelia dos noivos (ou da noiva). Sabemos que uniões forçadas tendem a ser insuportáveis,
a menos que uma das partes se
renda incondicionalmente à
outra. É irreal esperar que uma
nação aceite tamanha submissão.
SONINHA FRANCINE, colunista do Esporte da
Folha , é praticante do budismo tibetano e militante em defesa dos direitos humanos
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