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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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ÁSIA

Condições de trabalho em fábricas do país se assemelham às verificadas nos primeiros tempos da industrialização na Europa

China revive horror da Revolução Industrial

JOSEPH KAHN
DO ""NEW YORK TIMES",

EM HUANG TU, CHINA
Com seu sorriso bonito e farta cabeleira preta, Hu Zhiguo não aparenta seus 44 anos de idade -e muito menos o fato de estar gravemente doente. O que trai sua condição é sua voz fraca, fruto de seus pulmões prejudicados.
Um médico lhe disse que tinha tuberculose. Outro arriscou um palpite diferente: câncer. O diagnóstico final, baseado na cor cinza que escurece suas chapas de pulmão, é um caso grave de silicose, doença que os chineses chamam de ""pó no pulmão".
Hu contraiu a doença produzindo colares baratos de pedras iridescentes como a opala. As bijuterias são exportadas aos EUA em contêineres cheios. Trabalhando durante muitas horas por dia numa fábrica de bijuterias na Província de Guangdong, Hu provavelmente inalou mais pó de quartzo em dez anos do que os padrões de segurança da própria China permitiriam num milênio.
Hoje ele está afastado da fábrica. Hu voltou à sua cidade natal, Huang Tu, nas montanhas de Sichuan, onde tentou -mas não conseguiu- ajudar sua mulher a administrar uma mercearia. ""Não consigo levantar um saco de arroz", ele sussurrou, nos fundos da loja familiar. ""Sou um homem acabado, à espera da morte."
A China emergiu como maior exportadora asiática de bens manufaturados aos EUA, mas os trabalhadores que produzem esses bens são vítimas de um aumento enorme nas doenças fatais -respiratórias, circulatórias, neurológicas e do trato digestivo- semelhantes às que os operários americanos e europeus sofriam na aurora da Revolução Industrial.
Nesse sentido, o país não está recriando apenas a transformação industrial que levou prosperidade à Europa, aos EUA e a alguns países asiáticos -também está revivendo seus horrores.
Mesmo por sua própria contagem oficial, a China já tem mais mortes provocadas por doenças relacionadas ao trabalho do que qualquer outro país ou região do mundo, incluindo as economias industriais dos EUA e da Europa, somadas. No ano passado, segundo dados governamentais compilados pela Organização Internacional do Trabalho, 386.645 trabalhadores chineses morreram de doenças do trabalho.
É bem possível que essa estatística subestime a situação dos centros industriais crescentes da costa leste da China, onde dezenas de milhões de trabalhadores migrantes como Hu Zhiguo produzem a parte maior das exportações chinesas, trabalhando por bem menos de US$ 1 por hora, sem contrato de emprego, assistência médica ou sindicato.
A empresa para a qual Hu trabalhava, a Lucky Gems and Jewelry, hoje está instalada num centro com vários edifícios situado em Huizhou, a quase duas horas ao norte da fronteira da China continental com Hong Kong. Ela emprega 3.000 operários, quase todos vindos de Províncias distantes e vivendo dentro de um complexo fechado ou na feia comunidade residencial que ladeia as ruas de terra e os canteiros de obras que cercam a fábrica. Seu proprietário, um empresário de Hong Kong chamado Wang Shenhua, foi pioneiro na introdução da manufatura de bijuterias no sul da China, em meados dos anos 80, quando abriu sua primeira fábrica na zona econômica experimental de Shenzhen.
Com a Lucky e centenas de pequenas empresas rivais, a China domina um setor que faz uso intensivo de mão-de-obra e que, no passado, se espalhava pelo Sudeste Asiático e Oriente Médio.
A Lucky afirma levar a saúde de seus funcionários a sério, embora tenha se negado a permitir uma visita da reportagem à fábrica.
Hu era um camponês de 30 anos, ansioso por ganhar salário de operário, quando deixou sua casa no norte de Sichuan, em 1990. Ele viajou durante quatro dias, de ônibus e de trem, para chegar a Shenzhen. Lá, conseguiu um emprego na Lucky, apresentado à empresa por um parente.
Ele aprendeu a lapidar e lixar pedras semipreciosas em formatos de coração, estrela, pérola e diamante. As pedras cortadas são usadas para fazer anéis, pulseiras e colares.
Hu passava o dia dentro de uma oficina fechada, sentado ao lado de outros cortadores e polidores, trabalhando 12 ou até 18 horas por dia. Seu trabalho gerava nuvens de fumaça que ficavam paradas no ar, mesmo quando as janelas estavam totalmente abertas e os ventiladores, ligados ao máximo. ""Era sempre escuro dentro da fábrica, não importa quanto sol houvesse lá fora", ele conta. ""Era como uma neblina espessa. Nós nos acostumamos."
No final dos anos 90 Hu começou a sentir dificuldade em subir escadas e levantar pesos. Ele passou a temer o inverno, quando um simples resfriado era uma tortura. ""Se eu andasse rapidamente, perdia o fôlego na hora", conta. ""Quando estava com frio, me sentia como se estivesse sufocando."
A silicose é uma doença pulmonar provocada pela exposição excessiva ao dióxido de silício existente em quartzo, minerais, pedras e areia. Embora seja uma doença ocupacional conhecida há muito tempo, apenas há pouco virou prioridade para as autoridades chinesas.
Apesar do que os operários da Lucky descrevem como uma campanha da empresa para negar a existência do problema, as autoridades provinciais acabaram por exigir que todos os funcionários da empresa fizessem exame de seus pulmões. Não se sabe ao certo quantos deles mostraram sinais da doença. Pelo menos 50 pessoas disseram ter ficado doentes na Lucky. A empresa começou a contestar os pedidos de assistência médica de dezenas de empregados e, ao mesmo tempo, a instalar equipamentos para melhorar a ventilação na fábrica.
Segundo a empresa, algumas das pessoas que pediram indenização por doença são oportunistas que nunca trabalharam na Lucky ou, na realidade, não sofrem de doença crônica alguma. Ele reconheceu que empresa investiu US$ 1 milhão a partir de 2001 para melhorar a ventilação na fábrica, mas disse que não foi a primeira vez que ela tomou medidas para limpar o ambiente.
Os operários contam uma história diferente. À sombra da fábrica de Huizhou, ao som do guincho agudo das máquinas usadas para recortar as pedras, cerca de 20 velhos amigos e colegas de Hu vivem em quartinhos alugados de restaurantes, lojas ou residências particulares. Eles passam seus dias enviando abaixo-assinados ao governo e reunindo provas para usar contra a empresa.
""Nosso chefe só pensa no dinheiro em seu bolso", disse Liu Huaquan, 39, ex-funcionário da Lucky. Em 2001 ele se tornou o primeiro da empresa a ter a silicose formalmente diagnosticada, mas continua a brigar com ela até agora e ainda não conseguiu compensação. ""Ele poderia dividir uma pequena parte dos lucros com os trabalhadores que ficaram doentes, mas só usa seu dinheiro para negar que nós existimos."
A Lucky tem negado o pagamento de indenização a outras pessoas que trabalharam para ela antes de 1997, o ano em que a empresa abriu a fábrica em Huizhou.


Tradução de Clara Allain



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