São Paulo, terça-feira, 22 de junho de 2004

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RESENHA

Para crítico do "Times", autobiografia que chega hoje às livrarias reflete defeitos da Presidência do democrata

Livro de Clinton é "desleixado e complacente"

MICHIKO KAKUTANI
DO "NEW YORK TIMES"

O ex-presidente Bill Clinton é capaz de eloqüência elevada e pensamento visionário. Mas também é afeito à prolixidade maçante e autocentrada.
Infelizmente para o leitor, sua muito esperada autobiografia, "Minha Vida" (957 págs. Alfred A. Knopf) guarda mais semelhanças com o segundo Clinton. O livro é desleixado, autocomplacente e, em muitos momentos, espantosamente maçante -como um homem que tagarela sem parar, não falando com o leitor, mas consigo mesmo e com algum distante anjo que registra a história.
Sob muitos aspectos, é um espelho da própria Presidência Clinton (1993-2001): falta de disciplina que conduz ao desperdício de oportunidades, altas expectativas solapadas pela autocomplacência e a concentração dispersa.
O livro de memórias destaca muitos dos pontos fortes dos oito anos que Clinton passou na Casa Branca e sua compreensão do fato de que governou durante um período de transição, altamente polarizado. Mas a própria falta de ordem e foco que prejudica essas páginas também impediu Clinton de concentrar sua energia de maneira contínua para fazer com que seus "insights" sobre a crescente ameaça do terror e um acordo israelo-palestino rendessem frutos.
É claro que é fácil compreender as enormes vendas antecipadas que o livro vem tendo. Tudo leva a imaginar que Clinton deve possuir o dom de escrever uma autobiografia fascinante: o dom da linguagem, a erudição e o charme, associados às percepções de um político nato sobre um mundo complexo em um momento crucial, equilibrando-se entre as premissas da Guerra Fria e uma nova era de interdependência global.
Adicione sua história de vida improvável -uma montanha-russa angustiante de conquistas precoces, deslizes autoprovocados e revezes ainda mais espantosos-, e temos todos os ingredientes de um livro fascinante.
Mas "Minha Vida" acaba degringolando numa mistureba de anotações: em parte cartilha política, em parte confessionário, em parte discurso de comício e em parte arquivo presidencial, tudo, ao que parece, escrito às pressas e editado ainda mais às pressas.
Na realidade, mais lembra um pastiche confuso de tudo o que Clinton se lembrou e quis registrar por escrito. Ele chega a descrever o dia em que acordou às 4h para assistir na TV à cerimônia de posse do presidente da Nigéria. Há litanias intermináveis sobre refeições consumidas, discursos proferidos, eleitores cumprimentados e fracassos perdoados. O livro contém algumas partes fascinantes sobre seus esforços para negociar um acordo de paz no Oriente Médio (em dado momento, ele dá a entender que Iasser Arafat parecia estar confuso, sem o comando total dos fatos), mas também descrições tediosas sobre discussões políticas antigas, no Arkansas, sobre taxas de licenciamento de carros e regulamentos de empresas públicas. Há algumas queixas reveladoras sobre enganos cometidos no FBI, mas também dezenas de divagações sem sentido sobre assuntos como mortos-vivos no Haiti e Pompéia.
Clinton admite que seu caso com Monica Lewinsky foi "imoral e tolo", mas passa muito mais tempo desancando seu adversário incansável, o promotor independente Kenneth W. Starr, e a imprensa. Ele escreve com detalhes sobre sua percepção de que o terrorismo era uma ameaça crescente, mas não trata das conseqüências não pretendidas da decisão tomada por seu governo de pressionar o Sudão a expulsar Osama bin Laden, em 1996 (quando o líder da Al Qaeda foi ao Afeganistão, onde se tornou mais difícil de rastrear) ou de lançar ataques de mísseis contra alvos no Sudão e no Afeganistão em retaliação contra os bombardeios de embaixadas em 1998 -ato que, para alguns especialistas em terrorismo, alimentou a convicção dos terroristas de que os EUA eram um gigante ineficaz.
Parte do problema que Clinton está preocupado, no livro, em fortalecer -ou estabelecer- seu legado e, ao mesmo tempo, incentivar (ou não prejudicar) a carreira política de sua mulher, a senadora Hillary Rodham Clinton. Ele faz um trabalho convincente quando explica suas iniciativas mais bem-sucedidas, como a reforma da Previdência e a redução do déficit, mas o fracasso de sua iniciativa na área da saúde, comandada por Hillary, é passado rapidamente.
Em seu livro, Clinton assume mais responsabilidade do que já assumiu no passado por seu caso com Lewinsky, as mentiras que contou e os danos que tudo isso causou à sua família e ao seu governo. Mas, assim como fez Hillary em seu livro, ele ainda passa muito tempo criticando seus inimigos de direita pelos problemas. Ao final, diz ele, o que reaproximou o casal foram as sessões semanais de terapia e a determinação de ambos de "lutar contra a tentativa de golpe da direita".
Ele lança pouca luz nova sobre sua relação com Hillary, observando só que sempre admirou seu misto de idealismo e espírito prático e que, num primeiro momento, ela hesitou quando ele a pediu em casamento, sabendo que "ser casada comigo seria uma operação de alto risco sob mais do que um aspecto". Em outro trecho, Clinton procura caracterizar sua luta contra o impeachment como "meu último grande confronto com as forças às quais me opus durante toda minha vida" -aqueles que defenderam a segregação no sul do país, se opuseram aos movimentos pelos direitos das mulheres e dos homossexuais e que acreditavam que o governo deveria ser exercido em benefício de setores específicos.
Comparadas a essas tentativas bombásticas de defender sua reputação, o relato de sua juventude no Arkansas possui um caráter direto e emotivo que agrada, com alguns instantâneos reveladores de sua infância desajeitada: um garoto gorducho e envergonhado convivendo com um padrasto violento e abusivo.
O primeiro presidente dos EUA da geração dos "baby boomers" sempre foi visto como alguém que se definiu pelas lutas dos anos 1960 e a Guerra do Vietnã, decidido a desmistificar o cargo. Mas lido nestes tempos pós-11 de Setembro, o livro soa como algo de uma era distante, mais inocente. As mentiras sobre sexo e questões imobiliárias parecem questões que foram importantes e urgentes em outra galáxia e outro tempo.


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