São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A VISÃO PALESTINA
Edward Said não crê em acordo nas atuais circunstâncias
Apenas a paz selada entre iguais é aceitável

EDWARD W. SAID
DO "THE NATION"

Mal relatado e falho desde o início, o processo de paz de Oslo entrou em sua fase terminal de confrontos violentos, repressão israelense desproporcional, revolta palestina generalizada e grande perda de vidas, principalmente palestinas. A visita de Ariel Sharon ao Haram al Sharif, em 28 de setembro, não poderia ter ocorrido sem a concordância de Ehud Barak -de que outro modo Sharon poderia ter aparecido lá cercado de pelo menos mil soldados? O índice de aprovação de Barak subiu de 20% para 50% após a visita, e o palco parece ter sido preparado para um governo de unidade nacional disposto a ser ainda mais violento e repressivo.
Mas os sinais que apontavam para essa confusão já estavam presentes desde o início, em 1993. Os líderes tanto do Partido Trabalhista quanto do Likud não esconderam o fato de que Oslo visava segregar os palestinos em encraves não contíguos e economicamente inviáveis, cercados por fronteiras controladas por Israel, com assentamentos violando sua integridade. As desapropriações seguiram, inexoráveis, durante as administrações Rabin, Peres, Netanyahu e Barak, ao lado da expansão e multiplicação dos assentamentos. A ocupação militar continuou, e cada minúsculo passo dado em direção à soberania palestina -incluindo os acordos para a retirada israelense em fases minúsculas, previamente acordadas- era frustrado ou cancelado segundo a vontade de Israel.
Esse método era política e estrategicamente absurdo. Jerusalém Oriental ocupada foi fechada aos palestinos por uma campanha israelense belicosa, que visava declarar a cidade território proibido aos palestinos e reivindicá-la como "capital eterna e indivisível" de Israel. Aos 4 milhões de refugiados palestinos -hoje a maior população desse tipo em qualquer parte do mundo e a que vive nessa condição há mais tempo- foi dito que eles poderiam desistir de retornar ou receber qualquer compensação. Com seu regime corrupto e repressor sendo apoiado pelo Mossad e pela CIA, Iasser Arafat continuou a depender da mediação americana, apesar de a equipe negociadora americana ser dominada pelo lobby israelense e por um presidente cujas idéias sobre o Oriente Médio traem a total ausência de compreensão do mundo árabe-islâmico. Líderes árabes que se dobram a Israel foram obrigados, de modo humilhante, a endossar a linha ditada pelos EUA, reduzindo sua credibilidade já enfraquecida em seus próprios países. As prioridades israelenses sempre foram colocadas em primeiro lugar. Nenhuma tentativa foi feita de reparar a injustiça cometida quando os palestinos foram expulsos de suas terras, em 1948.
Por trás do processo de paz havia dois pressupostos israelo-americanos imutáveis. O primeiro rezava que, depois de serem suficientemente castigados, os palestinos aceitariam os termos que Arafat aceitou e abririam mão de toda a causa palestina, desculpando Israel por tudo o que já fez. Assim, o "processo de paz" não dedicou atenção ponderada à imensa perda palestina de terras e bens ou às ligações entre os deslocamentos do passado e a ausência atual de Estado, enquanto Israel, apesar de ser potência nuclear dotada de uma estrutura militar formidável, continua a reivindicar o status de vítima e a exigir reparos pelo anti-semitismo genocida da Europa. Ainda não houve qualquer reconhecimento oficial da responsabilidade (hoje amplamente documentada) de Israel pela tragédia de 1948.
Em segundo lugar, após sete anos de condições econômicas e sociais cada vez piores para os palestinos, os responsáveis políticos israelenses e americanos persistiram em anunciar seus sucessos, excluindo a ONU e outras partes interessadas, dobrando a mídia partidária a suas vontades, distorcendo a realidade para apresentá-la como efêmeras vitórias da "paz". Com o mundo árabe mobilizado contra a demolição de prédios civis palestinos por tanques e helicópteros de guerra israelenses, com mais de cem mortos e com os árabes israelenses revoltando-se contra o tratamento de cidadãos de terceira classe que lhes é dispensado, o status quo distorcido está caindo aos pedaços. Isolados na ONU e repudiados no mundo árabe como defensores incondicionais de Israel, os EUA e seu presidente em final de mandato têm pouco a contribuir.
Tampouco as lideranças árabes e israelenses têm muito a contribuir, embora seja provável que acabem por costurar outro acordo interino feito de retalhos. Tem sido extraordinário o virtual silêncio do campo pacifista sionista nos EUA, na Europa e em Israel. A matança de jovens palestinos continua, enquanto eles defendem a brutalidade israelense ou expressam seu desapontamento com a ingratidão palestina. O pior de todos é a mídia americana, intimidada pelo temível lobby israelense, com comentaristas gerando relatos distorcidos sobre "violência palestina" que omitem o fato de que Israel está em ocupação militar e que os palestinos a combatem, e não "movem um cerco a Israel", como disse Madeleine Albright. Enquanto os EUA celebram a vitória do povo sérvio sobre Milosevic, Clinton e seus assessores se recusam a enxergar a insurgência palestina como o mesmo tipo de luta contra a injustiça.
Meu palpite é que parte da nova Intifada se dirige contra Arafat, que fez seu povo perder o caminho com promessas fajutas e mantém uma bateria de funcionários corruptos que detêm monopólios comerciais, enquanto negociam de maneira incompetente e fraca em seu nome. Sessenta por cento do orçamento público é gasto por Arafat com burocracia e segurança e apenas 2% com infra-estrutura. Seus patronos internacionais aceitam tudo isso em nome do "processo de paz", com certeza a frase mais odiada no léxico palestino atual.
Um plano alternativo de paz e liderança está emergindo aos poucos entre dirigentes palestinos israelenses, da Cisjordânia, de Gaza e da diáspora, mil dos quais assinaram um conjunto de declarações que gozam de grande apoio público: não ao retorno ao quadro de Oslo; a defesa intransigente das resoluções originais da ONU (242, 338 e 194), base sobre a qual foi convocada a conferência de Madri, em 1991; a retirada de todos os assentamentos e todas as estradas militares; o esvaziamento dos territórios anexados ou ocupados em 1967 e o boicote de bens e serviços israelenses. É possível que esteja surgindo um novo consenso de que apenas um movimento de massas contra o apartheid israelense (semelhante ao da África do Sul) vá funcionar. Barak e Albright erram ao responsabilizar Arafat por algo que ele já não controla por completo. Em lugar de desprezar o novo quadro que está sendo proposto, seria bom que os defensores de Israel lembrassem que a questão da Palestina diz respeito a um povo, não a um líder envelhecido e desacreditado. Ademais, a paz na Palestina/Israel só poderá ser selada entre iguais, uma vez terminada a ocupação militar. Nenhum palestino, nem mesmo Arafat, pode aceitar qualquer coisa menos do que isso.


Edward W. Said é ensaísta palestino, professor da Universidade Columbia (Nova York) e autor, entre outros, de "Orientalismo" e "Cultura e Imperialismo".

Tradução de Clara Allain



Texto Anterior: Shlomo Ben Ami
Próximo Texto: Edward W. Said
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.