São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 2008

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Bolívia convoca referendos sobre Carta para janeiro

Acordo entre Morales e oposição modifica ao menos cem artigos do texto aprovado por governistas no ano passado

Presidente boliviano chora ao promulgar lei diante de milhares de partidários; para analista, pacto isola radicais dos dois lados

FLÁVIA MARREIRO
DA REPORTAGEM LOCAL

Após fechar amplo acordo com a oposição parlamentar para modificar ao menos cem artigos da nova Constituição, o governo do presidente esquerdista Evo Morales conseguiu aprovar ontem no Congresso da Bolívia a convocação dos dois referendos que faltam para promulgar a Carta, seu principal projeto político.
Na praça Murillo, do lado de fora do Legislativo em La Paz, onde varou a noite para acompanhar as 18 horas da sessão parlamentar ao lado de centenas de milhares de apoiadores, Morales chorou antes de promulgar a convocação.
Os referendos sobre a Constituição acontecerão em 25 de janeiro de 2009. Em 6 dezembro do ano que vem, uma vez aprovado o texto, serão realizadas eleições para presidente, vice, e para os novos parlamentares nacionais. "Sinto que esse processo de mudança é sem retorno. Digam o que quiserem, façam o que quiserem, já não voltaremos ao neoliberalismo", discursou Morales sobre a Carta que no preâmbulo cita tanto Deus quanto a Pachamama, a mãe terra para os indígenas, 62% da população.
O governo conseguiu os votos necessários para os referendos porque cedeu. Incorporou desde mudanças de redação até os principais pedidos do Podemos (direita), dono da maior bancada opositora e controlador do Senado, e a autonomia administrativa exigida pelos governadores rebeldes liderados pelo rico departamento de Santa Cruz. Esse desfecho era considerado improvável até setembro, quando o país foi sacudido por violentas protestos contra o governo que deixaram ao menos 18 mortos, na fase mais aguda da crise política.
"Já não é a Constituição totalitária, indígena. É a do Estado de Direito, da nação boliviana, da liberdade e da família", disse à Folha o senador por La Paz Luis Vázquez (Podemos).
Apesar das incorporações, os governadores oposicionistas evitavam endossar publicamente o acordo. O poderoso Comitê Cívico de Santa Cruz, bastião dos protestos anti-Morales que reúne a elite empresarial do país, criticou. Parlamentares de Santa Cruz, Pando e Chuquisaca votaram contra a lei em meio a ameaça de grupos radicais em suas regiões.
"Foi um pacto de moderados. Conseguiu isolar os radicais dos dois lados. O governo escolheu o soft power, e não impor sua Constituição. Foi um avanço muito grande que abre, a princípio, uma perspectiva menos conflitiva nos próximos meses", diz o analista boliviano Gonzalo Chávez.
"Aumentam também as expectativas na população. É uma Carta avançada em termos de direitos, mas, como dizemos, o papel agüenta tudo. Não é o que vai fazer a Bolívia acordar menos pobre. O desafio agora é concreto", anuncia ele.

Reeleição e terra
Por um arranjo legal, governo e oposição acordaram que o Congresso tinha competência para mudar o texto da Constituição, aprovada pela Assembléia Constituinte em um controverso processo em 2007 e sem a presença do Podemos.
Foi decisivo para fechar o pacto a desistência de Morales, anunciada anteontem, de concorrer a dois novos mandatos sob a nova Carta, que estabelece a reeleição (por só um período) na Bolívia. Pelo acerto, o atual mandato do presidente, eleito em 2005, entra na conta, e ele só poderá disputar a eleição de 2009 para ficar no poder até 2014. A proposta original, também presente nas Cartas de seus aliados de Venezuela e Equador, lhe permitiria concorrer outra vez, com a perspectiva de governar até 2019.
Morales também cedeu num ponto-chave: o regime fundiário. Um dos referendos de janeiro perguntará o limite de tamanho para as fazendas (5.000 hectares ou 10.000 hectares).
O texto deixa claro agora que a regra não será retroativa, e os governistas dizem que só serão confiscadas terras não-produtivas, o que leva ao âmbito jurídico e dilata o processo. "É o tipo de coisa que já existe hoje e demora séculos", diz Chávez.


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