São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997.

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POLÍTICA MUNDIAL
Violência do processo de modernização explica fundamentalismo religioso, diz Samuel Huntington
Autor liga cultura a alianças mundiais

HECTOR FELICIANO
DIJANA SURIC
do "World Media"

O professor, ensaísta e escritor americano Samuel Huntington tem uma visão heterodoxa da política internacional. Deixa a ideologia de lado para tentar explicar os conflitos pós-Guerra Fria e prefere analisar as culturas locais como motores de alianças e choques.
Para ele, por exemplo, a Grécia está mais próxima da Rússia do que da Otan; a Bósnia tem mais ligação com o mundo islâmico do que com as potências ocidentais que a apoiaram na guerra. E a América Latina é "uma sociedade muito distinta", mas em mutação.
Huntington está no centro do debate pelo menos desde 1993, quando publicou o artigo "The Clash of Civilizations'' ("O Conflito de Civilizações"). Nos últimos 40 anos, nenhum texto da revista "Foreign Affairs" havia sido tão discutido.
Samuel P. Huntington dirige a Academia de Estudos Internacionais e de Área da Universidade Harvard, onde é professor. Foi diretor de planejamento de segurança do Conselho de Segurança da ONU durante a administração Carter e presidente da Associação Americana de Ciências Políticas.
É autor de livros, entre eles ``Political Order in Changing Societies'' ("Ordem Política em Sociedades em Transformação") e ``The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century'' ("A Terceira Onda: Democratização no Fim do Século 20").
Nesta entrevista exclusiva, concedida após lançar o best seller ``The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order'' ("O Conflito de Civilizações e a Reconstituição da Ordem Mundial"), Huntington explica sua teoria das civilizações, analisa os acontecimentos internacionais e prevê áreas de conflito na era do pós-Guerra Fria.

Pergunta - Em seu último livro o sr. afirma que o conceito de civilizações pode ajudar a compreender a política mundial no final do século 20 e início do 21. Por que o conceito se torna útil agora?
Samuel P. Huntington -
Após a Segunda Guerra Mundial, a política mundial passou quase 50 anos voltada à Guerra Fria e à rivalidade entre sistemas políticos e econômicos, mais do que entre civilizações. Hoje, parece claro que o fator cultural é de suma importância na formação dos antagonismos e das cooperações na política mundial.
Isso não necessariamente irá perdurar por tempo indefinido. Na batalha do século 21, haverá outros fatores decisivos que irão modelar os padrões de conflito e cooperação na política mundial.
Pergunta - Por que as civilizações constituem uma maneira mais natural do que as ideologias para as nações e os povos reagirem?
Huntington -
As civilizações sempre fizeram parte da vida humana. É apenas agora, entretanto, que estão ganhando importância em termos de moldar a política mundial. Pela primeira vez na história humana, temos um sistema internacional global multipolar no qual as potências principais vêm de civilizações diferentes. Isso não havia acontecido nunca antes.
Pergunta - O sr. diz que os principais conflitos no presente serão os conflitos de civilizações, mas, por outro lado, afirma que as civilizações podem interagir e influenciar umas as outras. Essas afirmações não seriam contraditórias?
Huntington -
As civilizações interagem umas com as outras. A principal ``importação'' histórica foi o movimento do budismo da Índia em direção à China. Essa ``importação'' do budismo exerceu um impacto tremendo sobre a China, mas a civilização chinesa incorporou elementos budistas em sua própria civilização.
A partir de 1500, mais ou menos, o Ocidente passou a exercer um impacto tremendo sobre as civilizações do mundo. Essas interações continuam, mas as civilizações também: a civilização chinesa existe há vários milhares de anos, assim como a civilização hindu.
Pergunta - Como países como a Grécia, que funcionam como divisores de águas do que o sr. qualifica de ``civilizações em conflito'', se encaixam em sua teoria?
Huntington -
A Grécia é um país cristão ortodoxo, com tal característica muito acentuada. Em consequência da Guerra Fria, passou a integrar a Otan (aliança militar ocidental liderada pelos EUA), como também fez a Turquia. Subsequentemente, a Grécia passou a integrar a União Européia. Mas isso não faz dela um país ocidental.
Isso foi constatado durante as guerras na ex-Iugoslávia. A Grécia se posicionou claramente ao lado da Sérvia, o que os outros países ocidentais não fizeram. Cooperou com a Rússia para fornecer apoio à Sérvia e solapar as sanções econômicas impostas ao país, ao mesmo tempo que cooperava com seus amigos ortodoxos.
Vemos, ali, a Grécia formando o que descrevem como uma ``entente ortodoxa'' com a Sérvia e a Bulgária. Vemos a Grécia cooperando com a Rússia de diversas maneiras, incluindo, mais recentemente, é claro, o acordo de mísseis traçado entre o governo grego, Chipre e a Rússia. Isso, apesar de os mísseis que a Rússia venderia a Chipre suscitarem o antagonismo dos turcos. A Grécia está agindo como país cristão ortodoxo.
Pergunta - A religião definiria então a civilização?
Huntington -
Não é o único elemento, de forma alguma, mas, com certeza, é um elemento crítico. Max Weber (sociólogo alemão, 1864-1920, um dos fundadores da moderna sociologia e ciência política) apontou que a religião é provavelmente o mais importante elemento que define uma civilização.
Pergunta - A ascensão do fundamentalismo religioso pelo mundo afora é consequência direta do conflito entre civilizações?
Huntington -
A ascensão do fundamentalismo religioso é produto, em primeiro lugar, dos processos de modernização social e econômica que estão ocorrendo no mundo. Esse fator gerou movimentos fundamentalistas em praticamente todas as religiões mais importantes do mundo.
As pessoas que participam desses movimentos são aquelas que se mudaram para as cidades, adotaram novos empregos e vivem em ambientes urbanos muito distintos dos ambientes de vilas rurais onde nasceram. Depois de adquirirem instrução, elas se tornam fundamentalistas, quer se trate de fundamentalismo protestante, fundamentalismo hindu ou fundamentalismo muçulmano.
A ascensão do fundamentalismo religioso gera conflitos. Esse é um dos desafios com os quais se confrontam os principais países -tentar sanar esses conflitos.
Pergunta - Onde o sr. encontra fundamentalismo protestante?
Huntington -
Na América Latina e nos EUA. Não tenho certeza sobre a Europa, que, de certa maneira, é uma exceção à grande onda de renascimentos religiosos que ocorrem no mundo. Não tenho visto muitas evidências de renascimentos religiosos na Europa.
Pergunta - A civilização ocidental acredita que seus próprios valores são universais. Pode-se afirmar que essa idéia de universalismo ocidental ajudou a gerar o fundamentalismo religioso muçulmano?
Huntington -
O ressurgimento do islamismo é com certeza, em parte, uma reação contra o Ocidente. Envolve a modernização social e econômica. Mas é também uma rejeição explícita da cultura ocidental e do sentimento de que a cultura ocidental envolveu as sociedades muçulmanas.
Pergunta - O sr. parece dizer que o principal conflito de civilizações que se dá hoje é entre o mundo ocidental e o muçulmano...
Huntington -
Não, um conflito sério e importante é aquele que se dá entre as sociedades muçulmanas e as não-muçulmanas. Se olharmos para as fronteiras de um grande bloco de países muçulmanos, que se estende do Marrocos à Indonésia, veremos conflitos armados contínuos ao longo das fronteiras do mundo muçulmano.
Muçulmanos bósnios contra sérvios ortodoxos e croatas católicos, na Bósnia; Grécia versus Turquia; armênios versus azerbaijanos; russos versus tchetchenos etc.
Pergunta - O sr. não acha que a hostilidade entre o Ocidente e o mundo muçulmano -especialmente o mundo árabe- decorre da política norte-americana em relação a Israel?
Huntington -
O apoio norte-americano a Israel tem sido motivo de controvérsia na relação dos EUA com países muçulmanos.
Mas os muçulmanos combatem outros povos também e se combatem uns aos outros.
Existem grandes divisões no mundo muçulmano, e, obviamente, alguns países muçulmanos -como a Arábia Saudita, a Turquia e o Paquistão- vêm cooperando estreitamente com os EUA.
Pergunta - O sr. parece acreditar que o apoio ocidental à Bósnia é uma exceção à defesa ocidental de sua própria civilização.
Huntington -
Foi um apoio apenas dos EUA, pois os países europeus não viram com entusiasmo o apoio à criação de um Estado muçulmano na ex-Iugoslávia.
Mas o apoio americano acabou se revelando mínimo.
A coisa mais importante que os EUA fizeram foi não se opor a que Irã e Arábia Saudita dessem aos bósnios centenas de milhões de dólares em armas.
O verdadeiro apoio aos bósnios foi dado por países muçulmanos, como Irã e Turquia. Hoje, a Bósnia é, em essência, um Estado unipartidário cuja liderança está formalmente comprometida com o Islã.
A Alemanha tem tido vínculos com a Croácia. Tanto o Reino Unido quanto a França se juntaram à Sérvia porque a viram como contrapeso à Croácia.
Mas o ponto crucial é que as potências estrangeiras que apoiaram os participantes nos combates o fizeram segundo critérios estritamente ligados à civilização, excetuando os EUA e seu interesse em promover uma Bósnia multiétnica, dominada pelos muçulmanos.
Pergunta - Se olharmos a Europa, será que o esquema que o sr. propõe não se encaixa muito bem com a idéia de uma ampliação futura da Otan? Seria possível afirmar que essa ampliação é uma manifestação dos atritos entre católicos e cristãos ortodoxos?
Huntington -
A ampliação da Otan faz muito sentido em termos de estender a oportunidade de ingresso na Otan àqueles países que, tradicionalmente e historicamente, fizeram parte da cultura e da civilização ocidentais.
Isso incluiria os países católicos e protestantes da Europa Central e poderia excluir os países que são muçulmanos ou ortodoxos.
Pergunta - O que, em sua opinião, o Ocidente deve fazer na era pós-Guerra Fria?
Huntington -
O Ocidente deve agir para proteger seus próprios interesses, instituições e valores. Deve buscar um grau muito maior de unificação e coordenação política do que obteve no passado.
À medida que o Ocidente entra em conflito com a China ou com o Islã, ele deve, obviamente, procurar manter relações de cooperação com países como a Rússia, o Japão e a Índia. São civilizações que podem alterar o equilíbrio das coisas e, ao lado da América Latina, devem ser integradas à civilização ocidental.
Pergunta - O sr. não vê a América Latina já integrada?
Huntington -
Não. A América Latina tem sido uma sociedade muito distinta em termos de cultura e civilização. Mas a sociedade está mudando na América Latina, graças ao protestantismo.
Além disso, há um movimento em direção à democracia nos países latino-americanos, a abertura de seus sistemas econômicos, e a diferença entre a América Latina e os EUA está diminuindo.


Tradução Clara Allain
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