São Paulo, sexta-feira, 23 de fevereiro de 2001

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EUROPA

Decisão inédita, contra sérvios que atuaram na guerra de 92, qualifica abuso sexual em guerra como crime contra a humanidade

Haia condena três por estupros na Bósnia

Associated Press
Muçulmanas bósnias tentam identificar roupas de parentes mortos durante a guerra no necrotério de Tuzla; quase 40 corpos foram encontrados em vala comum em aldeia perto da cidade


STEPHEN CASTLE
DO "THE INDEPENDENT", EM HAIA

Três sérvios da Bósnia tornaram-se ontem os primeiros homens condenados por usar estupro e escravização em massa de mulheres como armas de terror em uma guerra. Eles foram considerados culpados de torturar e agredir meninas de apenas 12 anos de idade.
O veredicto histórico em Haia foi proferido ao final de um dos julgamentos mais chocantes e tenebrosos já ocorridos no tribunal de crimes de guerra, o primeiro em que abusos sexuais foram qualificados como crime contra a humanidade.
Ao pronunciar seu veredicto, a juíza Florence Mumba disse que "mães e filhas juntas foram privadas dos derradeiros vestígios de dignidade humana, mulheres e meninas foram tratadas como bens inanimados".
A juíza considerou os três réus culpados de múltiplas acusações de crimes contra a humanidade e violação das leis e dos costumes da guerra. Segundo Mumba, eles "se compraziam no ambiente sombrio da desumanização daquelas que acreditavam ser suas inimigas".
A Promotoria relatou um catálogo de crimes durante a guerra de 1992, incluindo o estupro coletivo de uma menina de 15 anos por pelo menos 15 soldados e a escravização de uma menina de 12, cuja mãe depôs no julgamento. A menina foi forçada a dançar nua, violentada e vendida, não tendo mais sido vista desde então.
Dragoljub Kunarac, comandante de uma unidade especial de reconhecimento do Exército sérvio da Bósnia, foi condenado a 28 anos de prisão. Radomir Kovac, um dos subcomandantes da Polícia Militar, recebeu pena de 20 anos. O terceiro réu, Zoran Vukovic, outro subcomandante da Polícia Militar e antigo garçom, foi absolvido de várias acusações por falta de provas e vai cumprir 12 anos de prisão.
Os réus entraram no tribunal usando ternos e trocando piadas com seus advogados, mas saíram num clima mais sério.
Durante o julgamento, que começou em março passado, 16 testemunhas depuseram a poucos metros de distância dos réus, por trás de um biombo e com suas vozes eletronicamente modificadas.
Muitas mulheres foram psicológica e fisicamente feridas, pelo menos uma delas nunca mais poderá ter filhos e algumas permanecem traumatizadas até hoje.
Os três condenados foram figuras-chave numa série de acontecimentos tenebrosos que se seguiram à captura da cidade de Foca, a sudeste de Sarajevo, em abril de 1992.
Os homens muçulmanos de Foca foram colocados na prisão da cidade, mas as mulheres foram levadas a uma escola, um ginásio de esportes, hotéis e uma série de residências particulares, onde foram espancadas, violentadas e, em muitos casos, curradas. As condições físicas em locais como o ginásio de esportes eram desumanas, com superlotação, falta de higiene e fome. Mas isso foi apenas o início de uma longa sequência de violência sistemática.
Segundo os termos do indiciamento dos réus, uma menina de 15 anos foi violentada por pelo menos 15 soldados, que "abusaram sexualmente dela de todas as maneiras possíveis". Também foi relatada a provação a que foi submetida outra menina, violentada e obrigada a fazer sexo oral com pelo menos oito soldados, um dos quais mordeu seus mamilos repetidas vezes. Segundo o indiciamento, "embora a testemunha já estivesse sangrando em decorrência das mordidas, o sétimo homem apertou e beliscou seus mamilos enquanto a estuprava, e a vítima desmaiou de dor".
Kunarac não apenas abusava pessoalmente das mulheres. Ele organizou a transferência delas para locais conhecidos como "campos de estupro". Em meados de julho de 1992, ele foi um de três homens que estupraram uma mulher de quem escarneceu, dizendo que ela jamais saberia quem era o pai de seu bebê sérvio. Quando prestou depoimento, uma das testemunhas recordou: "Lembro de que ele era muito brutal. Ele queria me machucar. Mas jamais conseguiria me ferir tanto quanto feriu minha alma". Segundo a juíza, a participação de um comandante militar nesse "esquema de pesadelo" o tornava "ainda mais repugnante".
Durante o dia, as meninas mantidas prisioneiras no apartamento de Brena eram escravizadas e obrigadas a cumprir tarefas domésticas, como, por exemplo, lavar os uniformes dos soldados. À noite, eram submetidas a abusos sexuais sistemáticos. Uma delas era uma menina de 12 anos que foi violentada repetidas vezes ao longo de várias semanas e que, certa noite, estava no meio de um grupo de moças que foram forçadas a tirar a roupa e dançar nuas sobre uma mesa. Mais tarde, Kovac a vendeu a outro soldado por 200 marcos. Oito anos mais tarde, a vítima continua desaparecida.
Ao ler a sentença de Kovac, a juíza Mumba disse que o tratamento que deu à menina ilustra seu "caráter moralmente depravado e corrupto".
"Sua cativa era uma criança impotente, por quem o senhor não demonstrou compaixão alguma, mas de quem abusou sexualmente. O senhor terminou por vendê-la como um objeto, ciente de que isso quase certamente significaria que ela sofreria outras agressões sexuais de outros homens", declarou Mumba.
A juíza também observou que Vukovic violentou uma menina de 15 anos -a mesma idade de sua própria filha-, depois de ameaçar matar sua mãe se não revelasse o local onde a vítima estava escondida.
A defesa não negou a ocorrência de estupros em grande número em Foca, mas argumentou que as mulheres que testemunharam tinham feito sexo com os soldados por vontade própria.
A impotência das mulheres escravizadas foi destacada pela existência de uma casa que era quase um bordel, onde as condições de vida eram relativamente boas e das quais as mulheres tinham chave. Entretanto, cercadas por tropas sérvias, não tinham para onde fugir.
Indagada se tentou resistir, uma das vítimas respondeu: "Era impossível. Ele tinha um revólver e me ameaçou. Mesmo que eu arriscasse minha vida lá, temia pelo que pudesse acontecer com minha família".
Muitos dos responsáveis pelos crimes relatados no julgamento nunca chegaram a enfrentar a justiça. O indiciamento está repleto de referências a estupros cometidos por soldados "não identificados" que depois desapareceram, e nem todos os acusados foram levados até o tribunal. Dos oito homens originalmente acusados no julgamento de Foca, um morreu quando soldados tentaram prendê-lo e outro se matou com uma granada de mão. Três outros continuam foragidos.
Enquanto isso, do lado de fora do tribunal, manifestantes erguiam faixas dizendo "Castigo também para os peixes grandes. Onde estão?".

Tradução de Clara Allain


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