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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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Pacifistas de hoje se afastam da geração dos anos 60

JOHN LELAND
DO "THE NEW YORK TIMES"

Em 1965, o então diretor do FBI, J. Edgar Hoover, avaliou o movimento de oposição à Guerra do Vietnã e o descreveu como uma cultura à parte. Os manifestantes, disse Hoover, representavam "uma minoria composta, em sua maior parte, de cidadãos pela metade, aos quais falta maturidade moral, mental e emocional".
Uma geração mais tarde, no sábado da semana passada, Suzyn Smith desceu a avenida Constitution, em Washington, numa passeata pela paz e anunciou que, na próxima manifestação, vai vestir algo mais chamativo do que uma simples regata preta. "A imprensa tende a centrar sua atenção em pessoas que se vestem como hippies", disse Smith, 24, opinando que a atenção dada aos hippies é excessiva. Caminhando ao lado de sua tia numa multidão de manifestantes contrários à guerra no Iraque, ela formulou uma visão inteiramente diferente da de Hoover. "As ruas estão cheias de gente de meia-idade, sem graça, grupos que vêm de igrejas e idosos", prosseguiu. "Não é todo o mundo parte de uma contracultura."
É assim que têm sido as manifestações americanas contra a guerra no Iraque, que começaram de maneira esporádica em outubro passado e continuaram em todo o país na semana passada. Os cartazes em favor da paz estavam de volta, e até algumas das roupas tingidas com manchas, à moda dos anos 1960; John Mellencamp e a banda Public Enemy cantavam músicas de protesto. Mas o movimento antiguerra mais recente difere de maneiras fundamentais de seu predecessor dos anos 60, com todo seu potencial sísmico social.
Naquela época, os manifestantes se reuniam com um objetivo político em vista -acabar com a guerra-, mas também devido à convicção de que muitos dos valores subjacentes à sociedade americana estavam errados: o conformismo dos anos 50, o materialismo, o racismo e até mesmo a monogamia e a família nuclear. Os valores alternativos que eles expressavam com suas roupas, música, hábitos sexuais e outras escolhas de estilo de vida pareciam propor um mundo inteiramente diferente. Muitos historiadores acham que essa contracultura moldou a América mais profundamente e por muitos anos mais do que as próprias manifestações contra a guerra.
Na semana passada, porém, quando manifestantes em todo o país se reuniram para protestar contra a guerra, com alguns poucos contingentes radicais atrapalhando o trânsito ou destruindo propriedade alheia, não se teve a impressão de que eles compartilhassem um desejo comum de reformular os valores e as instituições americanos.
Em parte devido à internet, o movimento antiguerra vem se compondo sem líderes aparentes. Os cartazes erguidos nas manifestações revelam não uma uniformidade filosófica, mas uma diversidade microcósmica: "homens anglo-saxões brancos e heterossexuais a favor da paz", "eleitor capitalista a favor da paz", "travecos contra a guerra."
Se a contracultura inspirou outros movimentos, do feminismo às dietas naturalistas, também teve aspectos negativos, disse Stephen Zunes, coordenador do programa de estudos de paz e justiça da Universidade de San Francisco. "As manifestações de hoje têm mais credibilidade", disse. "Nos anos 60, muitos americanos da classe média ficaram contra o movimento devido à alta visibilidade da contracultura."
Andrew Greenblatt, 34, responsável pelo site do grupo True Majority (maioria verdadeira), que se opõe à guerra e é baseado na internet, disse que sua organização já atraiu 260 mil membros ao movimento "pelo próprio fato de não constituir uma contracultura". Para ele, a contracultura sempre faz algumas pessoas manterem distância. "À base da contracultura está a idéia de que a cultura dominante e nosso sistema de valores precisam mudar. Nossa visão não é essa."
Tanto na organização quanto nas metas, o movimento contra a guerra no Iraque não é tão utópico nem tem objetivos tão amplos quanto a contracultura do passado. "Naquela época, as pessoas realmente conseguiam imaginar uma organização social diferente", disse Gustin Reichbach, 56, que fez passeata com os Estudantes por uma Sociedade Democrática em 1968, na Universidade Columbia, e hoje é juiz da Suprema Corte do Estado de Nova York. "Ninguém hoje está falando em sistemas sociais alternativos."
A idéia de contracultura se torna ainda mais difícil em razão da diversidade dos Estados Unidos no século 21. Afinal, a proposta de contracultura parte da premissa de que existe uma cultura a ser contrariada.

Nova contracultura?
Howard Rheingold, autor de "Smart Mobs: The Next Social Revolution" (multidões inteligentes: a próxima revolução social), sugeriu que os grupos reunidos sejam vistos não como contracultura, mas como "um ecossistema de contraculturas", algo possibilitado pela natureza dispersa da internet. Enquanto os anos 60 refletiram a primeira geração a crescer sob o efeito unificador da televisão, as manifestações contra a guerra com o Iraque refletem as infinitas refrações da internet.
O movimento de protestos contra a guerra no Iraque começou há apenas cinco meses. Será que é razoável esperar que uma contracultura já tenha surgido para acompanhá-lo?
A contracultura dos anos 60 só floresceu plenamente mais tarde naquela década, depois que o alistamento militar obrigatório e as notícias constantes de baixas americanas, juntos, levaram os jovens a adotar posturas mais radicais. Mas os valores alternativos subjacentes a ela já tinham vindo à tona muito antes, nas obras dos escritores da geração beat, dos anos 50, e no revival da música folk no início dos anos 60.
Michael Phillips, que dá aulas sobre contraculturas americanas na Universidade do Texas, disse que as manifestações estudantis recentes contra as condições de trabalho terríveis impostas aos trabalhadores imigrantes clandestinos e contra a Organização Mundial do Comércio criaram um conjunto comparável de valores antimaterialistas prévios às manifestações atuais, contestando a maneira como os americanos fazem comércio e gastam.
William Kristol, editor do "The Weekly Standard", que é visto como responsável por formular parte da estrutura intelectual que embasou a política de ação militar preventiva seguida pela Casa Branca, propôs uma possibilidade alternativa. Ele disse que detecta as bases de uma verdadeira contracultura nas críticas recentes feitas ao presidente Bush e que focalizam sua religião.
Se os manifestantes começarem a ver a política externa e a agenda doméstica como frutos de seus valores cristãos conservadores, disse Kristol, eles podem propor uma visão de mundo alternativa que seja contracultural. "Também existe a discussão em torno da visão que se tem dos Estados Unidos -se constituem ou não uma força em favor do bem no mundo", disse. "Vejo todo esse lado da coisa como uma protocontracultura. Talvez estejamos em 1964, não em 1968."


Tradução de Clara Allain


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