São Paulo, segunda-feira, 23 de março de 2009

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"Paquistão não é Estado falido", diz escritor

Para correspondente veterano que testemunhou conflitos recentes no país, instituições resistem a terrorismo e sucessão de crises

Jason Burke critica ataques dos EUA a insurgentes no Paquistão; bombardeios, endossados por Obama, desestabilizam o aliado, diz


CLARA FAGUNDES
DA REDAÇÃO

O Paquistão não é um Estado falido, diz o jornalista Jason Burke. Nacionalista, conservador e religioso, o país passa ao largo das expectativas de seus aliados ocidentais, mas está longe do abismo descrito por alarmistas, afirma o autor de "A Caminho de Cabul e Bagdá: Relatos dos Conflitos no Mundo Islâmico" e "Al Qaeda: A Verdadeira História do Radicalismo Islâmico", publicados no Brasil pela editora Zahar.
Correspondente do jornal britânico "The Guardian" e sua versão dominical, o "Observer", Burke testemunhou os principais eventos da última década no Paquistão. Cobriu ataques terroristas, a queda da ditadura, o assassinato da ex-premiê Benazir Bhutto, levantes e protestos. Falando à Folha por telefone, do Afeganistão, ele critica as ações americanas contra radicais no país aliado. "Quanto mais amplos os ataques, mais desestabilizadores serão para o Paquistão."

 

FOLHA - O Paquistão é tido desde os anos 70 como um Estado à beira da falência, mas sobreviveu a crises, secessão [Bangladesh, ex-Paquistão Ocidental, declarou independência em 1971], terrorismo, guerra e convulsão social. O que sustenta o Estado paquistanês?
JASON BURKE
- No Paquistão, há instituições que funcionam: o Exército funciona, os órgãos públicos funcionam em alguma medida, os partidos políticos operam com uma estrutura complexa de mobilização social. É um erro considerar o Paquistão um "Estado falido". A falência iminente do Paquistão foi prevista muitas vezes, mas jamais aconteceu. O Estado provou ser incrivelmente resistente. Nos últimos dois anos, lidou com o colapso econômico, o fim de uma ditadura militar, a insurgência islâmica, levantes étnicos e a morte violenta da ex-premiê Benazir Bhutto, a mais popular líder política do país. Mas as instituições sobreviveram.

FOLHA - O ícone da democracia no Paquistão não é um ativista, mas um funcionário público, o juiz Iftikhar Chaudhry. Por que o presidente da Suprema Corte é tão popular?
BURKE
- Chaudhry se tornou símbolo de duas coisas: de um Judiciário independente, pois a Justiça no Paquistão sempre foi profundamente politizada, e da resistência ao poder arbitrário. Os protestos dos advogados [que duraram dois anos, derrubaram a ditadura de Pervez Musharraf e forçaram o governo a anunciar o retorno de Chaudhry, formalizado ontem] canalizaram o desejo de expressão política da classe média urbana. É significativo que, no final, o ex-premiê Nawaz Sharif (nacionalista e conservador) e os advogados tenham se unido. A base da Sharif é a classe média urbana, mesma base do movimentos dos advogados e dos partidos islamistas, que se juntaram em um bloco conservador razoavelmente coerente.

FOLHA - A restituição de Chaudhry é uma derrota para o presidente Asif Ali Zardari [que vetara seu retorno]. Mas o que representa para o Estado paquistanês, a longo prazo?
BURKE
- A conquista mais relevante dos manifestantes, a longo prazo, não foi o retorno de Chaudhry, mas a revisão dos amplos poderes da Presidência [concedidos em 2003, sob a ditadura]. Zardari foi forçado a fazer concessões. O Paquistão deve adotar uma distribuição de poderes mais equilibrada.

FOLHA - Zardari foi indicado para a Presidência, mesmo sem experiência política, por ser viúvo de Benazir Bhutto. Os laços de família são determinantes na política do país?
BURKE
- Dinastias dominam a política no Paquistão, mas isso não é um fenômeno isolado. Veja os Bush e os Clinton no EUA, ou os Gandhi na Índia. O sistema político paquistanês tem muitos problemas, mas não significa que não funcione.

FOLHA - Zardari resistirá à crise?
BURKE
- Zardari teve um breve momento de apoio [após a morte da mulher, Benazir], mas sua credibilidade se esvaiu. Ele é extremamente impopular no partido e no país. Não creio que seu governo dure muito, e Nawaz Sharif se beneficiará disso. Mas o ponto central desta crise é que as Forças Armadas não intervieram. Quanto mais o Exército se mantiver afastado, melhor para a democracia.

FOLHA - Os EUA e o Reino Unido pressionaram por um acordo entre Zardari e Sharif, com quem sempre tiveram relações difíceis. O que explica essa guinada?
BURKE
- Sharif sempre foi visto como um substituto ruim para Benazir Bhutto. Conservador, nacionalista e suspeito de vínculos com islamistas radicais, ele não é um candidato ideal para o Ocidente. Mas o que o Reino Unido percebeu, e notei isso falando com o chanceler David Milliband, é que Sharif representa uma tendência muito forte no Paquistão. Não é possível ignorá-lo.

FOLHA - Como o sr. vê os planos dos EUA de ampliar os ataques aéreos a radicais no Paquistão?
BURKE
- Os ataques americanos são extremamente impopulares e desestabilizam o governo paquistanês. O que os EUA precisam avaliar é se matar líderes da insurgência compensa o estrago que provoca no Estado paquistanês, a longo prazo. Mas não há sinal de que o governo de Barack Obama vá reduzir o uso de mísseis.

FOLHA - A estratégia preliminar de Obama prevê o aumento da ajuda não militar e a abertura de novo front na Província paquistanesa do Baluquistão. O sr. acha que o auxílio pode compensar o dano que os ataques causam à imagem americana?
BURKE
- Quanto mais amplos os ataques, mais desestabilizadores eles serão para o Paquistão. É um cálculo delicado. Com os bombardeios, os EUA fortalecem os insurgentes islâmicos (ao desestabilizarem o governo) ao mesmo tempo que os enfraquecem (matando seus líderes). Não creio que ampliar a ajuda a projetos de desenvolvimento reverta o antiamericanismo arraigado no Paquistão.


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