São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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IRAQUE OCUPADO

Para Joseph Nye, um dos papas do estudo das relações internacionais, política externa gera repúdio aos EUA

Bush mina poder americano, diz analista

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

O governo do republicano George W. Bush descarta a relevância do "soft power", a força internacional de um país que advém de sua influência cultural e ideológica sobre o restante do planeta, porém isso representa um grande perigo para os EUA.
O sucesso da guerra ao terrorismo internacional depende, em grande parte, da capacidade de Washington de convencer, sem fazer uso de força militar nem de pressão econômica, outros países a cooperar com seus esforços, e essa capacidade tem sofrido um forte declínio desde que os EUA decidiram invadir o Iraque.
A análise é de Joseph Nye, doutor em ciência política e reitor da Kennedy School of Government da Universidade Harvard (EUA), que foi consultor do Departamento de Estado dos EUA de 1977 a 1979 no governo do democrata Jimmy Carter e secretário-assistente da Defesa para Assuntos de Segurança Internacional durante a administração do também democrata Bill Clinton, nos anos 90.
De acordo com Nye, um dos papas do estudo das relações internacionais e criador do termo "soft power", popularizado a partir da publicação de seu livro "Bound to Lead: The Changing Nature of American Power" (fadado a liderar: a transformação do poder americano), em agosto de 1991, a atual política externa americana favorece o crescimento do poder de atração de Osama bin Laden, terrorista de origem saudita responsável pelo 11 de Setembro, e dos extremistas islâmicos, pois torna sua causa mais sedutora.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

 

Folha - O escândalo gerado pelas fotos de tortura de iraquianos na prisão de Abu Ghraib e a Guerra do Iraque em geral minaram muito o "soft power" dos EUA?
Joseph Nye -
Se observarmos pesquisas de opinião em todo o mundo, notaremos que os EUA perderam boa parte de seu "soft power" nos últimos dois anos. Na Europa, por exemplo, o grau de simpatia pelos EUA caiu 30 pontos percentuais em média.
Isso inclui países que apoiaram a invasão do Iraque ou participam dos esforços de estabilização e de reconstrução. No mundo islâmico, o declínio do "soft power" dos EUA foi ainda maior. Assim, só posso concluir que a questão iraquiana tem sido muito custosa para os americanos no que se refere a seu poder de cooptação.

Folha - Quais são as conseqüências desse fenômeno?
Nye -
Quando Washington busca conseguir que outros governos cooperem com seus objetivos no que tange à guerra ao terrorismo internacional, por exemplo, o grau de cooperação dos outros Estados é diretamente afetado pelo modo como os EUA são vistos pela população desses países.
Quanto menos atraentes forem os EUA aos olhos da população de um país, menores são as chances de seus líderes políticos tomarem posições claramente favoráveis aos americanos. Obviamente, nenhum líder político deixa de pensar em política doméstica quando avalia suas ações internacionais.

Folha - Que impacto essa perda de "soft power" terá sobre a política externa dos EUA no futuro?
Nye -
Atualmente, ela já vem tornando nossas escolhas relacionadas à política externa mais difíceis. Por exemplo, o presidente Bush queria ter um amplo apoio aos esforços de reconstrução do Iraque, porém muitos líderes não quiseram dar esse apoio por conta do modo como os EUA apresentaram suas posições sobre o Iraque. Trata-se de um custo bastante claro que tivemos de pagar em razão de nossa atitude.
Devemos, ademais, pensar no que ocorrerá a médio e longo prazos e na possibilidade desse quadro ser alterado. Durante a Guerra do Vietnã, nas décadas de 60 e 70, os EUA também enfrentaram um grave problema de popularidade. Quando mudou suas políticas, sobretudo as que eram mais impopulares, todavia, o país conseguiu recuperar seu "soft power".
Assim, a questão de saber se a situação permanecerá como está, piorará ou melhorará depende diretamente de uma mudança de políticas nos EUA. Indubitavelmente, os outros Estados não passarão a gostar das posições americanas sem que haja uma mudança drástica em Washington.

Folha - O sr. quer dizer que os neoconservadores, como Paul Wolfowitz [vice-secretário da Defesa], terão de deixar de ditar as regras da política externa dos EUA?
Nye -
Creio que os neoconservadores tenham provocado uma parte considerável do estrago. Contudo devemos lembrar que eles não são os únicos responsáveis pelo declínio do "soft power" dos EUA. Afinal, os "novos unilateralistas", como Donald Rumsfeld [secretário da Defesa] e Dick Cheney [vice-presidente], não são isentos de culpa.

Folha - Tanto Cheney quanto Rumsfeld sustentam que a popularidade é efêmera e não deveria guiar a política externa dos EUA e que o país é suficientemente forte para fazer o que bem entende na cena internacional. Qual é sua opinião a esse respeito?
Nye -
Trata-se de um erro. Indiscutivelmente, é verdade que as Forças Armadas dos EUA são suficientemente fortes para fazer o que bem querem militarmente. Entretanto não somos capazes de fazer qualquer coisa no que se refere a governar países nacionalistas, como temos visto no Iraque.
Uma coisa é derrotar as forças de segurança e militares de Saddam Hussein [ex-ditador iraquiano], mas construir uma democracia durável e estável no Iraque é algo completamente diferente. Para tanto, seria necessário que os EUA contassem com uma cooperação internacional mais ampla.
De modo similar, lidar com a [rede terrorista] Al Qaeda e com o terrorismo internacional requer um grau muito elevado de cooperação entre os EUA e os outros países, visto que o problema não pode ser resolvido exclusivamente por meio da utilização do poder militar americano.

Folha - Em seu artigo para a mais recente edição da revista "Foreign Affairs", o sr. diz que era mais fácil para os EUA recuperar a parcela perdida de seu "soft power" durante a Guerra Fria, pois havia o medo do império soviético. Atualmente, o "soft power" não está perdendo sua importância por causa do fim da ameaça soviética e da configuração da cena política global?
Nye -
O "soft power" nada mais é que a habilidade de um país de conquistar seus objetivos por meio da atração gerada por seus princípios, por suas práticas e por suas causas. Os EUA não são os únicos detentores de "soft power" no planeta. Hoje até Bin Laden tem sua dose de "soft power", já que sua causa é capaz de atrair grupos extremistas islâmicos.
O "soft power" não é, portanto, algo que perdeu valor com o fim da Guerra Fria. Por outro lado, como a ameaça soviética não mais existe, certamente será mais difícil para os EUA recuperar a parcela de seu "soft power" perdida em razão da Guerra do Iraque do que foi reaver a que foi perdida por causa da Guerra do Vietnã.
Ademais, será mais complexo fazer que a mensagem americana seja atraente para o mundo islâmico do que foi fazê-lo para o Leste Europeu durante a Guerra Fria.

Folha - A guerra ao terrorismo liderada pelos EUA não tem servido para propagar o poder de atração da causa de Bin Laden e dos extremistas islâmicos?
Nye -
Como são capazes de atrair outros extremistas para sua causa, que consiste em dizer que vivemos um choque de civilizações que opõe o islã ao Ocidente, Bin Laden e seus asseclas conseguem estender e consolidar seu poder de atração. Como os EUA têm usado seu "hard power" [poder militar e econômico] de uma maneira brutal que agride até seus aliados tradicionais europeus, Bin Laden e a Al Qaeda acabam obtendo um fortalecimento de seu "soft power".
Basicamente, o melhor modo de usar o "soft power" dos EUA na guerra ao terrorismo é tentar atrair os moderados do mundo islâmico. Com isso, os extremistas e os terroristas passarão a ter um pouco mais de dificuldade em recrutar simpatizantes.

Folha - Como os terroristas dizem querer destruir o modo de vida ocidental, como o "soft power" dos EUA pode ajudar na guerra ao terror concretamente?
Nye -
Na verdade, os EUA ou o Ocidente nunca serão capazes de atrair Bin Laden ou a Al Qaeda para sua causa. Contudo a questão-chave é saber se eles representam a maioria dos muçulmanos. Afinal, de acordo com pesquisas, a maior parte das pessoas no mundo islâmico quer melhores oportunidades, educação para seus filhos, dignidade etc.
Trata-se de aspectos da assim chamada "cultura ocidental" que podem ser atraentes para a maioria dos muçulmanos. É exatamente nesse aspecto que o "soft power" tem um papel a desempenhar. Não adianta nada pensar que é possível converter Bin Laden ou a linha dura terrorista. No entanto é importante que esses valores atraiam a maioria moderada, já que isso dificultará o recrutamento de futuros terroristas.

Folha - Isso significa tentar propagar o modo de vida ocidental?
Nye -
Não, isso não é necessário. É possível atrair as pessoas para um mundo de diversidade. Nenhum Estado precisa se tornar uma "pequena América" para poder compartilhar certos valores que são importantes para os cidadãos americanos. As pessoas devem poder fazer escolhas sobre seu modo de vida, e não creio que seja preciso impor aos outros o modo de vida ocidental ou americano. Isso seria outro erro.

Folha - Diante desse quadro geral, como o sr. analisa a situação da ONU atualmente?
Nye -
A ONU se tornou uma instância crucial para legitimar a política externa de todos os países. Ora, se são consideradas legítimas internacionalmente, as políticas têm mais chances de serem atraentes, podendo, portanto, aumentar o "soft power" do Estado que as aplica ou as defende.

Folha - O atual governo dos EUA minou essa capacidade da ONU ao fazer a Guerra do Iraque sem a anuência formal da entidade?
Nye -
A administração americana está dividida acerca desse aspecto. Há pessoas no Departamento de Estado que querem acionar a ONU e fortalecer o sistema multilateralista que ela encarna. Por outro lado, os civis que comandam o Departamento da Defesa são avessos a essa opção.
Como decidiu seguir a linha unilateralista e contornar a ONU, o presidente Bush deu ao mundo a impressão de ser arrogante na concepção da política externa americana. Creio que isso tenha prejudicado os interesses dos EUA, minando seu "soft power".
Quanto à ONU, devemos lembrar que ela não constitui um governo mundial e nunca foi capaz de ditar regras a seus países-membros. Durante a Guerra Fria, o Conselho de Segurança da ONU ficou paralisado por conta do poder de veto das duas grandes potências [os EUA e a URSS].
Assim, não deveríamos alimentar ilusões em relação à ONU. Todavia não há nenhum lugar no planeta mais legítimo para o jogo diplomático que a ONU. Sua importância não pode ser negligenciada. Não é por acaso que vemos o governo Bush buscar a ajuda de Kofi Annan [secretário-geral da ONU] e de Lakhdar Brahimi [enviado especial da entidade ao Iraque] para negociar a transferência de poder para os iraquianos.

Folha - Se John Kerry, virtual candidato democrata à Presidência, derrotar Bush em novembro, a perda de "soft power" será contida?
Nye -
Kerry é mais inclinado a adotar políticas multilateralistas que Bush. Suas políticas na cena internacional deverão ser parecidas com as aplicadas pelo governo Clinton, o que provavelmente virá a ser favorável ao fortalecimento do "soft power" dos EUA.


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