São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009

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Ópio alimenta engrenagem da guerra afegã

Fora do poder, Taleban fez aliança tática com o tráfico de heroína, que movimenta US$ 5 bilhões ao ano e avança no caos do país

Governo do Afeganistão diz que erradicação da papoula, matéria-prima da droga, é inócua e cobra ajuda "verdadeira" do Ocidente

Julie Jacobson-16.jul.09/Associated Press
Policiais erradicam plantação de papoula no Afeganistão, cuja economia é 80% agrícola; envolvimento de políticos com tráfico é obstáculo na estratégia antidroga

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A CABUL

Zulmai Alzali tem 26 anos e fala confortavelmente numa sala refrigerada no centro de Cabul, envergando um terno marrom e o inglês aprendido nos seus anos de estudo nos EUA. No extremo leste da capital afegã, Farid Ahmad, 33, conversa em um dari sonolento deitado em um colchão num prédio decrépito e com poucas janelas intactas.
Os dois homens têm em comum estarem em pontas distintas do mesmo problema: as drogas no Afeganistão. O país produz 93% da matéria-prima para a heroína, o ópio extraído da papoula, e os estimados US$ 5 bilhões anuais obtidos com o comércio são a principal fonte de financiamento do Taleban.
Alzali é porta-voz do Ministério Antidrogas do Afeganistão. Ahmad, um viciado em ópio que tenta se recuperar numa das três clínicas dedicadas a isso no país, o Nejat Center.
"O Afeganistão tenta fazer sua parte, vamos tirar a papoula de 22 das 34 Províncias até o fim do ano. Mas não adianta, precisamos de ajuda verdadeira da comunidade internacional. O tráfico é mundial, as máfias são transnacionais, e são vocês que consomem a droga que produzimos", afirma Alzali, tomando o Brasil como parte do dito Ocidente.
Como um capitão Nascimento (de "Tropa de Elite"), ele aponta para os consumidores. "Sem o consumo, não há produção. Mas mesmo assim apenas os EUA e o Reino Unido gastam dinheiro contra as drogas aqui", afirma.
De certa forma, a realidade pintada por ele ajuda a jogar Ahmad para as bordas da sectária sociedade afegã. Este é um país religioso, e o Corão não proíbe a produção de drogas, apenas seu consumo. Se já é um pária entre os seus, Ahmad acaba sendo esquecido por formuladores de políticas como Alzali como uma espécie de dano colateral do problema.
A ONU estima em 150 mil os usuários de ópio, que é fumado, e em 50 mil os de heroína, que é injetada. Isso perfaz expressivo 1,5% da população afegã -a média de usuários de opiáceos no Brasil é de 0,5%.
"Na época do Taleban, não tinha droga. Eu carregava caixas no bazar central, e aos poucos uns amigos que tinham morado no Irã foram me dando umas doses. É bom, relaxa. Só que custava caro, como US$ 2 a dose, e eu fui perdendo a vontade de trabalhar. Quando vi que não ia nem conseguir me drogar, nem trabalhar, vim para cá", afirma Ahmad.
Ele se drogava nos dois pontos famosos da capital: as ruínas da antiga Casa de Cultura Soviética, no centro, e o Palácio Real de Darulaman, no sul. Com a proximidade das eleições, os dois lugares foram cercados para evitar insurgentes camuflados entre os drogados.
Ao lado de Ahmad, o supervisor do centro de reabilitação, Jamal Abdel Nasser, reclama. "Cada paciente custa uns US$ 1.000 por quatro meses de tratamento. Hoje são 200 que nos procuram, mas só temos dinheiro e estrutura para 50. E a ONU diz que talvez não tenha mais verba."
No escritório da ONU em Cabul, a informação é a de que não faltarão recursos para o Nejat Center, que ocupa um antigo prédio construído pelos soviéticos, não tem muitas janelas e está praticamente arruinado em seu interior -não exatamente a imagem de um local em que se investe dinheiro.
Segundo Nasser, que tem 10 anos de experiência com serviço social mas só há quatro meses trabalha no Nejat, as famílias tendem a visitar pouco os internos, devido ao estigma social. Entre os usuários da heroína, que, por ser ópio refinado em laboratório, é mais rara no mercado interno, há ainda a preocupação com a Aids.
"Os poucos que têm o vírus são mandados para o Ministério da Saúde", diz ele, referindo-se aos poucos centros de tratamento de portadores do HIV no país. O ministério só admite cerca de 3.000 casos suspeitos e menos de cem confirmados, e gente como Nasser suspeita que a subnotificação tenha algo a ver com negação de um "problema ocidental".

Financiamento do terror
E há a questão do financiamento do terror. Durante a era Taleban (1996-2001), a produção foi desmontada no Afeganistão. O líder do grupo, mulá Mohammad Omar, considerava a droga "anti-islâmica", e a ameaça de matar quem cultivasse a papoula fez efeito. Helmand, região hoje produtora de 70% do ópio afegão, não tinha um campo plantado em 2001.
Então por que agora o Taleban aceita a droga? "Na verdade, o que há é uma máfia transnacional para quem interessa que o Afeganistão esteja desestabilizado. Com todos os problemas, o Taleban estabilizou o país e acabou com a droga. Essa mesma gente agora paga dinheiro para que a insurreição continue, pois assim sua produção não será afetada", raciocina Alzali.
Os valores divergem. Alzali cita os US$ 5 bilhões, mas crê que cerca de um quinto disso chegue aos insurgentes. A ONU fala em US$ 400 milhões, e um relatório recente do Senado americano abaixa ainda mais o valor, para US$ 70 milhões.
"Importa pouco. Eles não precisam de mais do que armas, e armas não são tão caras assim", afirma Alzali.


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