São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997.




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DE VOLTA AO PASSADO
Mesmo após mais de meio século, italianos ainda têm dificuldade de ser objetivos sobre o governo de Benito Mussolini
Itália ainda luta contra o legado histórico fascista

ANDREW GUMBEL
do "The Independent"

Há 75 anos Benito Mussolini lan çou sua marcha sobre Roma e to mou o poder na Itália. A revolução fascista que chefiou se prolongou por mais de duas décadas, mas se mostrou tão traumática e provo cou tantas divisões que a Itália até hoje ainda não se reconciliou com essa parte de seu legado histórico.
Alguns anos atrás, a estudante de arquitetura Silvia Fadda apresen tou uma brilhante tese de gradua ção na Universidade de Florença. Seu tema era o planejamento urba no durante a era fascista.
Os professores que formaram a banca explicaram que, normal mente, ela teria recebido nota dez com louvor, mas pediram que ela fizesse uma crítica ao fascismo co mo prática política. Ela observou que a tese não era sobre política, mas pretendia fazer uma avaliação arquitetônica objetiva de uma ci dade na Sardenha no final da déca da de 30. O presidente da banca não aceitou a posição: "Ainda é cedo para uma tese desse tipo." Fadda não recebeu a nota máxima.
O período fascista ainda ame dronta e divide a Itália. A guerra acabou há mais de meio século, mas historiadores, políticos, aca dêmicos e colunistas de jornais ainda enxergam e tratam o fascis mo com tremenda apreensão, rea firmando posturas ideológicas e acrescentando apenas um pouco de análise histórica imparcial.
Os herdeiros da resistência anti fascista -a esquerda e os demo cratas-cristãos- temem falar de Mussolini em qualquer tom senão o da condenação total. Quem pro cura discutir aspectos "bons" do período fascista não demora a ser tachado de apologista e neofascista -o que costuma ser verdade.
Até hoje nenhum relato real mente objetivo do fascismo foi es crito por um italiano. Para um país que parece estar tão à vontade com sua identidade -em contraste agudo com a Alemanha-, a Itália ainda tem muita bagagem difícil da qual se desvencilhar.
Boa parte da dificuldade se expli ca pela maneira com que o fascis mo se desintegrou. Nos dois últi mos anos da guerra, a Itália viveu uma amarga divisão entre os "partigiani", que contavam com o apoio dos aliados, e os partidários da chamada República de Saló, o Estado fascista fantoche controla do pela Alemanha nazista.
A nova Itália, que emergiu dos escombros da guerra, era funda mentada numa ideologia antifas cista que, em pouco tempo, per meou a sociedade italiana inteira.
Nos últimos anos foram feitos al guns avanços, especialmente com o final da Guerra Fria e da decom posição, no início dos anos 90, da ordem política erguida pelos de mocratas-cristãos no pós-guerra.
Pela primeira vez o PDS, herdei ro do Partido Comunista, reco nheceu alguns dos aspectos mais vergonhosos dos "partigiani", es pecialmente a cumplicidade no massacre de civis pelas tropas iu goslavas do marechal Tito na re gião de Trieste, em 1945.
Quando o atual governo de cen tro-esquerda assumiu o poder, o presidente da Câmara de Deputa dos, Luciano Violante, fez um dis curso impressionante, dizendo que era hora dos italianos pararem de enxergar a si mesmos e a suas famílias como vencedores ou per dedores na guerra civil de 1943-45.
A predecessora de Violante na presidência da Câmara, Irene Pi vetti, provocou uma enxurrada de críticas em 1994, quando falou em público sobre os benefícios que o fascismo trouxe às mulheres.
A grande imprensa republicou cada parágrafo da legislação dis tintamente antifeminista dos di reitos trabalhistas das mulheres, promulgada por Mussolini, mas não mencionou o fato de que o fas cismo tirou as mulheres de casa e das tristes roupas negras que a Igreja Católica as encorajava a usar, oferecendo a elas as primei ras oportunidades de praticar es portes e participar da vida pública, mesmo que com restrições.
Pouco é dito sobre o legado ar quitetônico ou as grandes obras públicas deixadas pelos fascistas, tais como a ampliação da malha ferroviária ou a drenagem dos pântanos Pontine, perto de Roma.
É raro o italiano que admite que o fascismo, apesar de todos os seus horrores, inegavelmente contri buiu em muito para fazer a Itália ingressar no mundo moderno.
O fato de o fascismo ter sido mui to popular nos seus primeiros 15 anos ainda é motivo de profundo constrangimento para os italianos, e não uma questão que mereça co mentários ou reflexão.


Tradução de Clara Allain



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