São Paulo, sexta-feira, 23 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NA CAPITAL

Minorias de Cabul lutam para sobreviver

No desgoverno afegão, hazaras formam milícia para se defender e sikhs preferem se esconder

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A CABUL

Enquanto os líderes da Aliança do Norte e de outros grupos interessados no espólio do Taleban vão à Alemanha brigar por sua parte do bolo de poder no Afeganistão, as minorias de Cabul fazem o que podem para sobreviver. Os influente hazaras têm seu exército próprio para defendê-los; a única minoria religiosa na cidade, formada por sikhs e hindus, vive a se esconder.
É possível pegar esses dois exemplos distintos, mas significativos dos dias bicudos pelos quais passam os grupos minoritários num país sem governo definido e depois de viver cinco anos sob um regime isolacionista e repressor daquilo que não considerasse sua visão do islã.

Os soldados de Ali
Os hazaras formam uma importante minoria em todo o Afeganistão, cerca de 10% da população de 22 milhões de habitantes. Na capital, Cabul, são cerca de 100 mil dos aproximadamente 500 mil moradores, um número especulado pelos líderes da comunidade.
Vivem no sul da capital, no bairro de Karte Seh, à margem da montanha Koh-i-Sher Darwasa. É uma das regiões mais destruídas pelos anos de guerra civil no país, e aos hazaras notadamente são relegados os serviços considerados inferiores.
""Não há carregador de entulho na cidade que não seja hazara. Eles são muito fortes e resistentes", resume com um toque de darwinismo social o motorista de táxi Abdul Dhafur, um hazara com cerca de 30 anos que está no degrau acima da hierarquia profissional de Cabul.
Os hazaras são xiitas, o ramo do muçulmanismo dos seguidores do califa Ali, sobrinho do profeta Muhammad.
O outro braço da religião, majoritário, é o sunismo. O centro espiritual do xiismo é o Irã, mas o fato de Ali estar enterrado em Mazar-e-Sharif dá a dimensão da importância do Afeganistão no ideário da seita.
Eles fazem parte da Aliança do Norte, mas não são protagonistas políticos -nem se sabe se algum deles irá a Bonn negociar o futuro afegão. Só que militarmente têm peso, e 3.000 dos 15 mil soldados que entraram em Cabul desde a semana passada são pertencentes à minoria.
""Nós estamos aqui em nome da Aliança", afirma o comandante hazara Said Husain Anuari, que falou em sua base na 6ª Delegacia de Polícia de Cabul, em Karte Seh. Mas, questionado sobre quem é seu chefe, ele não cita nenhum tadjique ou uzbeque. ""É Ali Gauhar", diz, referindo-se ao líder hazara local.
""Nós agora temos alguém nos protegendo", afirma o taxista Dhafur. Um alívio para ele, porque nos anos do Taleban, entre 1996 e 2001, os hazaras foram alvo de diversos massacres por sua origem étnica -em especial na região de Herat (oeste afegão).
E também foram acusados de promover suas próprias chacinas, mas não é possível mensurar isso hoje -apenas a desconfiança entre os vários grupos. O que não leva a perspectivas animadoras ao ver o pequeno exército dos soldados de Ali a encastelar-se em Cabul.

Os "judeus do Taleban"
Pense numa minoria étnica e religiosa, vivendo num lugar onde o regime tentava moldar à força seus próprios pares. Essa era a situação dos descendentes de indianos que moram em Cabul.
Eram cerca de 5.000 famílias em 1990, segundo o líder comunitário Munaur Singh -que, como todos os sikhs, tem o mesmo sobrenome para indicar sua submissão à doutrina estabelecida no século 16 pelo guru Sir Nanak, misturando o islamismo místico do sufismo e princípios do hinduísmo do ramo bahkti.
Hoje, são 35 famílias sikhs e hinduístas, que são conhecidas pejorativamente pelos locais como ""os hindus".
""Nós tivemos muitos problemas com a guerra civil e o Taleban, e boa parte das pessoas foi embora. Mas somos do Afeganistão e não devemos sair daqui tão cedo", afirma Munaur, 28.
Eles foram candidatos a ser análogos afegãos aos judeus sob o nazimo. Durante uma semana, em 1998, foram obrigados pela shura (conselho) de Cabul a utilizar roupas amarelas para serem identificados na rua.
""Nós protestamos e, frente à péssima repercussão que isso iria dar, eles voltaram atrás", diz Munaur.
Houve ameaças de uma ""Noite dos Cristais" -noite de depredações de sinagogas e lojas de judeus promovida por nazistas na Alemanha em 1938-, mas não concretizadas. Por via das dúvidas, a solução foi simples: enclausurar o comércio sikh/hinduísta numa fortaleza.
Ela fica em Karte Parwan, no norte da cidade. É um prédio de quatro andares com portões de ferro e segurança na porta, em frente à única guradvara (templo sikh) de Cabul.
Os ""hindus" sempre controlavam o fluxo de remédios comprados na Índia, a maioria dos consumidos no Afeganistão pelo preço e pela quantidade.
Os produtos vêm, via Karachi (Paquistão), de famílias de parentes na Índia. Como por algum motivo insondável farmácias são mais comuns em Cabul do que pubs em Londres, o mercado é amplo.
""Tivemos de fechar nossas lojas e viemos para cá", conta Gourmant Singh, 44.
Durante o regime do Taleban, boa parte dos sikhs teve de usar cabelo curto -um dos cinco símbolos de sua religião é nunca cortar os pêlos do corpo.
Entre si, além da aparência física, eles se reconhecem também pelo símbolo número dois do sikhismo, o bracelete de ferro conhecido como kara.
Gourmant cortou e até hoje usa um gorro estilo pashtu. ""Isso não me faz mais ou menos sikh, afinal de contas. Não sou do Taleban", diz, rindo, contando como também fazia aguardente a partir de tônicos com álcool e frutas fermentadas de Cabul.
"Estava pecando duplamente, contra minha religião e contra a do Estado", diz. E o futuro? "Já foi pior, mas não sei bem o que essa Aliança do Norte quer de todo mundo. Por enquanto, espero poder voltar a vender remédios para os hospitais daqui."


Texto Anterior: Líderes tribais pashtus enfrentam Aliança do Norte perto de Cabul
Próximo Texto: Novo pesadelo afegão são bombas dos EUA que não explodiram
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.