São Paulo, quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

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ARTIGO

A volta do pesadelo

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT", EM BEIRUTE

Os piores anos de pesadelo podem ter recomeçado. Havia milhares deles -cristãos enfrentando cristãos ao norte de Beirute, muçulmanos sunitas e xiitas na capital, uma chuva de pedras, gritos de ódio e ocasionais disparos de armas- que transformaram o Líbano em campo de batalha sectário.
Na esquina de uma rua de Beirute, assisti ao que os historiadores, algum dia, talvez afirmem ter sido o primeiro dia da nova guerra civil do Líbano: turbas imensas de jovens, partidários e opositores do governo de Fouad Siniora, gritando insultos e atirando milhares de pedras uns contra os outros, enquanto um soldado ferido sentado a meu lado chorava.
Pois o Exército deste país trágico hoje é a linha vermelha fina que se interpõe entre um futuro para o Líbano e a insensatez do conflito civil. Alguns dos soldados de fato usavam boinas vermelhas. Depois de 31 anos neste país, nunca acreditei que eu voltaria a ver o que testemunhei ontem em Beirute: milhares de xiitas e sunitas, os primeiros apoiando o Hizbollah e os segundos, o governo antes liderado pelo ex-premiê assassinado Rafik Hariri, atirando pedras e pedaços de metal uns contra os outros. Alguns dos xiitas, membros do grupo Amal, usavam capuzes e máscaras pretas.
Seus predecessores -possivelmente seus pais- estavam vestidos da mesma maneira há 31 anos, quando, futuros carrascos, lutaram nessas mesmas ruas, confiantes na integridade de sua causa. Talvez estivessem até mesmo usando os mesmos capuzes. Alguns dos soldados disparavam para o alto e gritavam para os atiradores de pedras. "Pelo amor de Deus, parem", gritou um jovem soldado. Mas a multidão não ouvia.

Câncer do Iraque
De um lado da rua, agitavam retratos do líder do Hizbollah, Hassan Nasrallah, e de Michael Aoun, o ex-general cristão que quer ser presidente e é aliado de Nasrallah. Do outro lado da rua, os sunitas exibiam um retrato de Saddam Hussein. Assim o câncer do Iraque se espalhou para o Líbano ontem. Foi um dia de vergonha.
De todas as partes chegavam notícias sobre homens morrendo, e na noite de ontem os líderes do país estavam escrevendo sua narrativa própria da história moderna do Líbano. Nasrallah, herói da guerra com Israel -ou, ao menos, é o que ele gosta de pensar- exigiu a renúncia do governo, enquanto Siniora descrevia o que estava acontecendo como tentativa de golpe por parte da Síria e do Irã.
Não é tão simples assim. Os xiitas são os oprimidos, os pobres, os despossuídos, aqueles que sempre foram ignorados pelos patriarcas do governo libanês -pois, em um sentido, o que está acontecendo é também uma revolução social-, e do outro lado está a população sunita tão amada por Hariri, os drusos e os cristãos ainda leais às Forças Libanesas aliadas de Israel em 1982 e que massacraram os palestinos em Sabra e Chatila, além da maioria de inocentes libaneses que elegeu o governo de Siniora.
Não gosto de Exércitos. Ontem, porém, me pareceu que seu comandante era um símbolo solitário do que se contrapõe entre o Líbano e o caos. Não sei qual é sua religião. Seus soldados eram sunitas, xiitas e cristãos, todos com o mesmo uniforme. Será que poderão se manter unidos, será que poderiam continuar sob seu comando, quando alguns de seus irmãos e primos certamente estavam no meio das multidões? Alguns o fizeram. Eles venceram -desta vez. Mas o que vai acontecer hoje?


Tradução de CLARA ALLAIN

NA INTERNET - Leia a íntegra na Folha Online http://www.folha.com.br/070231



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