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ANÁLISE
Com base em mitos e fantasias, presidente gerou a crise
VINCENT BLOCH
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 5 de fevereiro passado, os
membros da Frente de Resistência Revolucionária de Artibonita,
o novo nome do chamado Exército Canibal, tomaram a quarta
maior cidade do Haiti, Gonaives,
após um ataque violento contra a
delegacia de polícia da cidade.
Esse grupo, que foi armado pelo
presidente Jean-Bertrand Aristide, mas passou para a oposição
após o assassinato de seu ex-chefe
Amiot Métayer, em setembro de
2003, foi imitado, em vários locais
do centro do país, por outros rebeldes insurretos.
Essa situação explosiva foi provocada pelo próprio Aristide, que
se apresenta como a encarnação
dos "verdadeiros haitianos",
apoiando-se no simbolismo ligado à independência do país, proclamada em 1804 aos gritos de:
"Liberdade ou morte!". Ele exalta
sobretudo a figura do primeiro
dirigente haitiano, Jean-Jacques
Dessalines, que, nos meses que se
seguiram à independência, mandou matar quase todos os franceses que não tinham deixado a ilha.
Apoiando-se num imaginário
criado pelo movimento negro dos
anos 30, que criticava a adaptação
à cultura européia e recuperava
uma memória pontilhada por
uma sucessão de acontecimentos
vistos como agressões do mundo
externo à população haitiana,
Aristide elaborou um discurso
baseado na dignidade do homem
negro e na ascensão ao poder do
"povo pequeno", do qual ele próprio se considera a encarnação.
Ademais, ele criou a fantasia da
existência de uma minoria antipopular que execra o que é africano. A recente comemoração do
bicentenário da independência
lhe deu a chance de dotar esse relato mítico de um caráter universal, com a presença de Maxine
Waters, da organização Black
Caucus (EUA), e do presidente
sul-africano, Thabo Mbeki. Este
falou do "renascimento africano"
e do combate à pobreza, inscrevendo-os na linha da revolução
haitiana. Aristide pôde, assim,
chamar o Haiti de "o pivô geográfico da liberdade dos negros".
Acontece que a intangibilidade
do oculto e do irracional marcam
a própria origem dessa unidade,
na medida em que Aristide apelou ao sangue purificador de Dessalines, o bom sangue que guia os
"negros". O mau sangue é aquele
que corre nas veias dos assassinos
de Dessalines, que são os assassinos da revolução e, portanto, dos
"negros". Ora, se Deus habita
Aristide e guia os "negros", então
é o mesmo sangue ruim que corria nas veias dos assassinos de
Dessalines que corre hoje nas dos
opositores ao presidente.
Essa representação toda não é o
bastante para provocar uma fusão
entre a narrativa e a realidade,
mas, pelo fato de o país encontrar-se em crise, tornou-se possível agitar o mito. A miséria profunda, as revoltas e a perda de
confiança no processo eleitoral
deslocaram as não-realizações ligadas ao setor social do terreno da
gestação para aquele do caos.
Além disso, é à luz de uma cultura política comum que esse mito pode fazer sentido, tornando-se realidade. A maioria dos presidentes haitianos foi assassinada
ou forçada ao exílio, se bem que,
ao longo do tempo, a violência tenha se apresentado como recurso
edificante. Para terminar, a sobreposição entre a linguagem política
e o simbolismo religioso ou de vodu é o ponto de referência graças
ao qual os acontecimentos políticos ganham legibilidade.
É apenas nesse contexto que a
narrativa de Aristide pode operar
um novo deslocamento. É a civilização que treme nas bases. O clã
Aristide salvará a civilização da
barbárie encarnada por seus opositores, que, por sua vez, apresentam um discurso idêntico.
A liberdade, vista por meio dos
pequenos proprietários que cultivam seus lotes, do progresso veiculado pela educação dos negros
e, finalmente, da igualdade no
seio da república negra, corre o
risco de desaparecer.
A partir daí, podem vir à tona,
com todas as suas implicações, as
duas categorias, o povo e o grupo
inimigo, associadas à temática da
conspiração. Aristide encerrou a
sociedade numa lógica do terço
excluído e rejeitou o "embargo"
da comunidade internacional.
Em sua lógica, se a França restituísse ao Haiti os US$ 90 milhões
pagos pelo país após sua independência (ou seja, US$ 21 bilhões
hoje), a república negra poderia
buscar o rumo da regeneração.
Nos últimos meses, militantes
da oposição, "falsos negros" encarnados pelos mulatos, têm sido
encontrados, com freqüência cada vez maior, queimados, decapitados ou mutilados, enquanto o
número de vítimas aumenta entre
as forças ligadas a Aristide.
Nas últimas semanas, a escalada
da violência ganhou nova dimensão, com as bases de um projeto
totalitário sendo instaladas. Aristide se apóia nas forças de segurança e em suas milícias e quase
não dissimula mais sua intenção
de assumir o controle da imprensa e, progressivamente, de fazer
do Fanmi Lavalas o partido único,
encarnando o povo verdadeiro.
Tradução de Clara Allain
Vincent Bloch, 28, é diplomado pelo
Instituto de Estudos Políticos de Paris e
doutorando em sociologia da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais, em
Paris. O texto acima é um resumo de outro, que será publicado na revista francesa "Esprit", em março.
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