São Paulo, terça-feira, 24 de fevereiro de 2004

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ANÁLISE

Com base em mitos e fantasias, presidente gerou a crise

VINCENT BLOCH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 5 de fevereiro passado, os membros da Frente de Resistência Revolucionária de Artibonita, o novo nome do chamado Exército Canibal, tomaram a quarta maior cidade do Haiti, Gonaives, após um ataque violento contra a delegacia de polícia da cidade.
Esse grupo, que foi armado pelo presidente Jean-Bertrand Aristide, mas passou para a oposição após o assassinato de seu ex-chefe Amiot Métayer, em setembro de 2003, foi imitado, em vários locais do centro do país, por outros rebeldes insurretos.
Essa situação explosiva foi provocada pelo próprio Aristide, que se apresenta como a encarnação dos "verdadeiros haitianos", apoiando-se no simbolismo ligado à independência do país, proclamada em 1804 aos gritos de: "Liberdade ou morte!". Ele exalta sobretudo a figura do primeiro dirigente haitiano, Jean-Jacques Dessalines, que, nos meses que se seguiram à independência, mandou matar quase todos os franceses que não tinham deixado a ilha.
Apoiando-se num imaginário criado pelo movimento negro dos anos 30, que criticava a adaptação à cultura européia e recuperava uma memória pontilhada por uma sucessão de acontecimentos vistos como agressões do mundo externo à população haitiana, Aristide elaborou um discurso baseado na dignidade do homem negro e na ascensão ao poder do "povo pequeno", do qual ele próprio se considera a encarnação.
Ademais, ele criou a fantasia da existência de uma minoria antipopular que execra o que é africano. A recente comemoração do bicentenário da independência lhe deu a chance de dotar esse relato mítico de um caráter universal, com a presença de Maxine Waters, da organização Black Caucus (EUA), e do presidente sul-africano, Thabo Mbeki. Este falou do "renascimento africano" e do combate à pobreza, inscrevendo-os na linha da revolução haitiana. Aristide pôde, assim, chamar o Haiti de "o pivô geográfico da liberdade dos negros".
Acontece que a intangibilidade do oculto e do irracional marcam a própria origem dessa unidade, na medida em que Aristide apelou ao sangue purificador de Dessalines, o bom sangue que guia os "negros". O mau sangue é aquele que corre nas veias dos assassinos de Dessalines, que são os assassinos da revolução e, portanto, dos "negros". Ora, se Deus habita Aristide e guia os "negros", então é o mesmo sangue ruim que corria nas veias dos assassinos de Dessalines que corre hoje nas dos opositores ao presidente.
Essa representação toda não é o bastante para provocar uma fusão entre a narrativa e a realidade, mas, pelo fato de o país encontrar-se em crise, tornou-se possível agitar o mito. A miséria profunda, as revoltas e a perda de confiança no processo eleitoral deslocaram as não-realizações ligadas ao setor social do terreno da gestação para aquele do caos.
Além disso, é à luz de uma cultura política comum que esse mito pode fazer sentido, tornando-se realidade. A maioria dos presidentes haitianos foi assassinada ou forçada ao exílio, se bem que, ao longo do tempo, a violência tenha se apresentado como recurso edificante. Para terminar, a sobreposição entre a linguagem política e o simbolismo religioso ou de vodu é o ponto de referência graças ao qual os acontecimentos políticos ganham legibilidade.
É apenas nesse contexto que a narrativa de Aristide pode operar um novo deslocamento. É a civilização que treme nas bases. O clã Aristide salvará a civilização da barbárie encarnada por seus opositores, que, por sua vez, apresentam um discurso idêntico.
A liberdade, vista por meio dos pequenos proprietários que cultivam seus lotes, do progresso veiculado pela educação dos negros e, finalmente, da igualdade no seio da república negra, corre o risco de desaparecer.
A partir daí, podem vir à tona, com todas as suas implicações, as duas categorias, o povo e o grupo inimigo, associadas à temática da conspiração. Aristide encerrou a sociedade numa lógica do terço excluído e rejeitou o "embargo" da comunidade internacional.
Em sua lógica, se a França restituísse ao Haiti os US$ 90 milhões pagos pelo país após sua independência (ou seja, US$ 21 bilhões hoje), a república negra poderia buscar o rumo da regeneração.
Nos últimos meses, militantes da oposição, "falsos negros" encarnados pelos mulatos, têm sido encontrados, com freqüência cada vez maior, queimados, decapitados ou mutilados, enquanto o número de vítimas aumenta entre as forças ligadas a Aristide.
Nas últimas semanas, a escalada da violência ganhou nova dimensão, com as bases de um projeto totalitário sendo instaladas. Aristide se apóia nas forças de segurança e em suas milícias e quase não dissimula mais sua intenção de assumir o controle da imprensa e, progressivamente, de fazer do Fanmi Lavalas o partido único, encarnando o povo verdadeiro.


Tradução de Clara Allain

Vincent Bloch, 28, é diplomado pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris e doutorando em sociologia da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. O texto acima é um resumo de outro, que será publicado na revista francesa "Esprit", em março.


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