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VIDA CIVIL
Família bagdali se diz "chocada" após ter vizinhos atingidos por suposto míssil americano
"O que os EUA querem conosco?"
SÉRGIO DÁVILA
DO ENVIADO A BAGDÁ
Mohammed Ahmed, de 40
anos, é um típico bagdali de classe
média. Mora no bairro de Kadisha, no centro da capital, numa rua
arborizada, e é dono de um restaurante próximo ao poço de petróleo de Al Dhora, que leva o nome da cidade e vive lotado.
Haffal e Halima, seus dois sobrinhos, estudam no equivalente ao
ensino médio brasileiro e pretendem fazer curso superior. Eles
usam jeans e camiseta e ouvem a
nova geração da música iraquiana
em seu toca-fitas (CDs ainda são
raridade no Iraque, assim como
videocassetes; quase ninguém ouviu falar em DVD).
A casa da família abriga cinco
pessoas e dois cachorros e se parece muito com as residências antigas do bairro paulistano do Ipiranga. Com oito cômodos, confortável, tem um impecável gramado em toda a frente e um toldo
de plástico verde onde os Ahmed
estacionam os carros.
Os móveis, assim como quase
tudo dentro, são de antes de 1990,
quando começou o embargo econômico ao país. Como todo iraquiano hoje em dia, Ahmed é comedido ao falar do governo, mas
sua opinião não difere muito da
da maioria: "O país poderia estar
melhor, mas esta guerra é injusta
e os norte-americanos não têm
nada o que fazer aqui".
Cratera
O que difere Mohammed Ahmed e sua família da maioria é seu
novo vizinho, que apareceu em
sua rua às 19h30 do último sábado: uma cratera de 10 metros de
profundidade por 20 de diâmetro,
deixada por um míssil Tomahawk norte-americano.
O armamento teria caído por
engano no meio do número sete,
um conjunto de casas em frente
das dos Ahmed, de propriedade
do amigo Abdul Bari. O impacto
transformou um complexo de
seis casas em um monte de tijolos
quebrados e ferros retorcidos.
Oito mortos
O míssil matou, na queda, oito
pessoas, seis delas menores de
idade, segundo um militar ouvido
pela Folha no local. De acordo
com ele, não havia nenhum militar no quarteirão na hora do ataque, nem qualquer bateria antiaérea no telhado das casas.
Segundo ele, sobrevieram a avó
e a neta da família, e ambas estão
internadas em um hospital com
ferimentos leves. "Essa é uma vizinhança residencial, de pessoas
pacatas. O que os americanos
querem conosco?", disse Ahmed,
olhando para os restos da chuva
de pedras que destruiu seu gramado e a cobertura de seus carros, além de estourar os todos os
vidros da casa e acabar com a eletricidade. "Estou chocado."
Casa de bonecas
Realmente, a vista é chocante. A
começar do buraco deixado pelo
míssil, que também minou água
no terreno, de tão fundo a que
chegou. Em torno dele, ficaram os
restos do que um dia foi uma
construção de seis cômodos.
Os três andares de cima parecem com o de uma casa de bonecas, daquelas cujo corte longitudinal deixa todo o interior à vista.
Há a penteadeira e o espelho, incrivelmente intacto, que dão vista
para o nada. Ao lado, em um
quarto, um lençol se enrolou no
ventilador do teto. Mais para a
frente, aparece o que teria sido
um banheiro.
No monte de pedras, aos poucos dá para avistar o que teria sido
uma almofada azul, outra verde,
alguns documentos, uma palmeira retorcida. Um vizinho vem trazer uma placa de metal. "Míssil
americano!", grita, mostrando.
O jornalista objeta que parece-se na verdade com um pedaço da
artilharia antiaérea, pois o pedaço
seria fino demais para fazer parte
do armamento dos EUA. "Você é
jornalista ou especialista em armas?", pergunta o vizinho, ofendido. Fim da discussão.
"Você sempre pensa que sua casa é segura, principalmente se
mora numa zona residencial",
disse Mohammed Ahmed. "Foi
por isso que nós não fomos para
os abrigos quando começamos a
ouvir as sirenes. Aliás, nem tem
abrigo aqui perto." Agora, os vizinhos começam a se organizar para que um abrigo seja construído.
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