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São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 2003

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VIDA CIVIL

Família bagdali se diz "chocada" após ter vizinhos atingidos por suposto míssil americano

"O que os EUA querem conosco?"

SÉRGIO DÁVILA
DO ENVIADO A BAGDÁ

Mohammed Ahmed, de 40 anos, é um típico bagdali de classe média. Mora no bairro de Kadisha, no centro da capital, numa rua arborizada, e é dono de um restaurante próximo ao poço de petróleo de Al Dhora, que leva o nome da cidade e vive lotado.
Haffal e Halima, seus dois sobrinhos, estudam no equivalente ao ensino médio brasileiro e pretendem fazer curso superior. Eles usam jeans e camiseta e ouvem a nova geração da música iraquiana em seu toca-fitas (CDs ainda são raridade no Iraque, assim como videocassetes; quase ninguém ouviu falar em DVD).
A casa da família abriga cinco pessoas e dois cachorros e se parece muito com as residências antigas do bairro paulistano do Ipiranga. Com oito cômodos, confortável, tem um impecável gramado em toda a frente e um toldo de plástico verde onde os Ahmed estacionam os carros.
Os móveis, assim como quase tudo dentro, são de antes de 1990, quando começou o embargo econômico ao país. Como todo iraquiano hoje em dia, Ahmed é comedido ao falar do governo, mas sua opinião não difere muito da da maioria: "O país poderia estar melhor, mas esta guerra é injusta e os norte-americanos não têm nada o que fazer aqui".

Cratera
O que difere Mohammed Ahmed e sua família da maioria é seu novo vizinho, que apareceu em sua rua às 19h30 do último sábado: uma cratera de 10 metros de profundidade por 20 de diâmetro, deixada por um míssil Tomahawk norte-americano.
O armamento teria caído por engano no meio do número sete, um conjunto de casas em frente das dos Ahmed, de propriedade do amigo Abdul Bari. O impacto transformou um complexo de seis casas em um monte de tijolos quebrados e ferros retorcidos.

Oito mortos
O míssil matou, na queda, oito pessoas, seis delas menores de idade, segundo um militar ouvido pela Folha no local. De acordo com ele, não havia nenhum militar no quarteirão na hora do ataque, nem qualquer bateria antiaérea no telhado das casas.
Segundo ele, sobrevieram a avó e a neta da família, e ambas estão internadas em um hospital com ferimentos leves. "Essa é uma vizinhança residencial, de pessoas pacatas. O que os americanos querem conosco?", disse Ahmed, olhando para os restos da chuva de pedras que destruiu seu gramado e a cobertura de seus carros, além de estourar os todos os vidros da casa e acabar com a eletricidade. "Estou chocado."

Casa de bonecas
Realmente, a vista é chocante. A começar do buraco deixado pelo míssil, que também minou água no terreno, de tão fundo a que chegou. Em torno dele, ficaram os restos do que um dia foi uma construção de seis cômodos.
Os três andares de cima parecem com o de uma casa de bonecas, daquelas cujo corte longitudinal deixa todo o interior à vista. Há a penteadeira e o espelho, incrivelmente intacto, que dão vista para o nada. Ao lado, em um quarto, um lençol se enrolou no ventilador do teto. Mais para a frente, aparece o que teria sido um banheiro.
No monte de pedras, aos poucos dá para avistar o que teria sido uma almofada azul, outra verde, alguns documentos, uma palmeira retorcida. Um vizinho vem trazer uma placa de metal. "Míssil americano!", grita, mostrando.
O jornalista objeta que parece-se na verdade com um pedaço da artilharia antiaérea, pois o pedaço seria fino demais para fazer parte do armamento dos EUA. "Você é jornalista ou especialista em armas?", pergunta o vizinho, ofendido. Fim da discussão.
"Você sempre pensa que sua casa é segura, principalmente se mora numa zona residencial", disse Mohammed Ahmed. "Foi por isso que nós não fomos para os abrigos quando começamos a ouvir as sirenes. Aliás, nem tem abrigo aqui perto." Agora, os vizinhos começam a se organizar para que um abrigo seja construído.


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