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Desconfie das notícias
DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
No Vietnã a mídia difundiu
a verdade e ajudou a derrotar os EUA. Washington aprendeu a lição, muito melhor que as
ditaduras vulgares. No lugar da
precária tentativa de neutralização via censura, incorporou a mídia às Forças Armadas.
Uniformizados e subordinados
à hierarquia militar, os "repórteres" na frente de batalha divulgam
palavras e imagens selecionadas
pelos planejadores da guerra.
Fora da frente de batalha, a
CNN e a Fox News veiculam para
o mundo "notícias" plantadas pelo Pentágono. Na primeira noite
da ofensiva, quando se esgotava o
prazo do ultimato norte-americano, a "notícia" era a suposta fuga
de Tariq Aziz, o vice-primeiro-ministro iraquiano.
Para desmentir a versão fantasiosa, Aziz apareceu diante da mídia em Bagdá e foi rastreado até
uma instalação no subúrbio onde
se reuniria com a cúpula do regime. Essa instalação tornou-se o
primeiro alvo dos mísseis e bombas de precisão americanos, na
"Operação Decapitação".
Há uma guerra na mídia global
e outra no Iraque. Existem pontos
em comum entre ambas, mas a
segunda é muito mais complexa e
sutil que a primeira. De fato, a
operação norte-americana não
aguardou o fim da valsa diplomática na ONU, iniciando-se há mais
de um mês, quando forças especiais se infiltraram no norte, oeste
e sul do Iraque.
Olhe para as imagens como
uma seleção parcial da realidade.
Desconfie de todas as notícias.
Boatos e rumores sobre morte, ferimento ou fuga de Saddam Hussein, seus filhos e altas figuras do
regime podem ser verdadeiras,
mas provavelmente são plantadas. A ofensiva da informação está em curso.
No Iraque, não há uma guerra
de verdade, mas um massacre. Do
ponto de vista de Bush, a ameaça
não são as Forças Armadas iraquianas, desmoralizadas e abandonadas, mas a opinião pública
mundial. Por isso, o Plano A consistia na mudança de lado de figuras-chave do aparato militar e de
segurança interna do Iraque, com
a decomposição do regime.
Esse plano fracassou, empurrando Washington ao Plano B,
que começou com o bombardeio
de "choque e pavor" sobre Bagdá
e prossegue em operações terrestres e aéreas destinadas a abrir caminho até as portas da capital do
Iraque.
Não há combate sério pelo controle do território. A rota para
Bagdá aberta, aplainada, desértica
é o corredor ideal para as forças
norte-americanas. Reunir blindados para barrar esse avanço representaria suicídio imediato. As
tropas iraquianas seriam trucidadas por mísseis e bombas lançados de lugares bem distantes do
campo de visão.
A resistência, esporádica, só pode retardar por horas ou dias a
"onda de aço" dos invasores. Mas
esse intervalo tem significado político: todos os dias Bush perde
um pouco mais a guerra pelos
"corações e mentes" no mundo e
mesmo nos Estados Unidos.
Washington ainda se esforça
pelo desmantelamento político
do regime. Tudo indica que forças
especiais estejam agora em Bagdá, sabotando, definindo alvos e
negociando com oficiais militares
iraquianos. Bombas, dinheiro e
promessas. A garra do leão e a astúcia da raposa. A ordem é tentar,
a todo custo, evitar a deflagração
do Plano C.
O Plano C é o sítio a Bagdá e, em
seguida, a penetração na metrópole. A geografia faz diferença. A
cidade não é o deserto. Na cidade,
quase todos os gatos são pardos.
Os alemães se afogaram em Stalingrado, e os russos, em Grozni, a
capital da Tchetchênia.
Bagdá não será Stalingrado ou
Grozni, pois a população do Iraque não identifica Saddam Hussein com a pátria. Mas Saddam
Hussein concentrou na capital as
tropas da Guarda Republicana,
único elemento das Forças Armadas em condições modestamente
operacionais. Lá, pode acontecer
uma guerra de verdade.
Bush não está preparado para
uma guerra de verdade. Suas forças vencerão no teatro militar do
Iraque, mas serão derrotadas no
campo de batalha político das cidades árabes, européias e norte-americanas.
Daqui para a frente, todas as
manobras táticas americanas estarão voltadas para evitar esses
desdobramentos. Inclusive o noticiário da mídia global.
Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana pela Universidade de São
Paulo, é editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional"
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