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São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 2003

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Desconfie das notícias

DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No Vietnã a mídia difundiu a verdade e ajudou a derrotar os EUA. Washington aprendeu a lição, muito melhor que as ditaduras vulgares. No lugar da precária tentativa de neutralização via censura, incorporou a mídia às Forças Armadas.
Uniformizados e subordinados à hierarquia militar, os "repórteres" na frente de batalha divulgam palavras e imagens selecionadas pelos planejadores da guerra.
Fora da frente de batalha, a CNN e a Fox News veiculam para o mundo "notícias" plantadas pelo Pentágono. Na primeira noite da ofensiva, quando se esgotava o prazo do ultimato norte-americano, a "notícia" era a suposta fuga de Tariq Aziz, o vice-primeiro-ministro iraquiano.
Para desmentir a versão fantasiosa, Aziz apareceu diante da mídia em Bagdá e foi rastreado até uma instalação no subúrbio onde se reuniria com a cúpula do regime. Essa instalação tornou-se o primeiro alvo dos mísseis e bombas de precisão americanos, na "Operação Decapitação".
Há uma guerra na mídia global e outra no Iraque. Existem pontos em comum entre ambas, mas a segunda é muito mais complexa e sutil que a primeira. De fato, a operação norte-americana não aguardou o fim da valsa diplomática na ONU, iniciando-se há mais de um mês, quando forças especiais se infiltraram no norte, oeste e sul do Iraque.
Olhe para as imagens como uma seleção parcial da realidade. Desconfie de todas as notícias. Boatos e rumores sobre morte, ferimento ou fuga de Saddam Hussein, seus filhos e altas figuras do regime podem ser verdadeiras, mas provavelmente são plantadas. A ofensiva da informação está em curso.
No Iraque, não há uma guerra de verdade, mas um massacre. Do ponto de vista de Bush, a ameaça não são as Forças Armadas iraquianas, desmoralizadas e abandonadas, mas a opinião pública mundial. Por isso, o Plano A consistia na mudança de lado de figuras-chave do aparato militar e de segurança interna do Iraque, com a decomposição do regime.
Esse plano fracassou, empurrando Washington ao Plano B, que começou com o bombardeio de "choque e pavor" sobre Bagdá e prossegue em operações terrestres e aéreas destinadas a abrir caminho até as portas da capital do Iraque.
Não há combate sério pelo controle do território. A rota para Bagdá aberta, aplainada, desértica é o corredor ideal para as forças norte-americanas. Reunir blindados para barrar esse avanço representaria suicídio imediato. As tropas iraquianas seriam trucidadas por mísseis e bombas lançados de lugares bem distantes do campo de visão.
A resistência, esporádica, só pode retardar por horas ou dias a "onda de aço" dos invasores. Mas esse intervalo tem significado político: todos os dias Bush perde um pouco mais a guerra pelos "corações e mentes" no mundo e mesmo nos Estados Unidos.
Washington ainda se esforça pelo desmantelamento político do regime. Tudo indica que forças especiais estejam agora em Bagdá, sabotando, definindo alvos e negociando com oficiais militares iraquianos. Bombas, dinheiro e promessas. A garra do leão e a astúcia da raposa. A ordem é tentar, a todo custo, evitar a deflagração do Plano C.
O Plano C é o sítio a Bagdá e, em seguida, a penetração na metrópole. A geografia faz diferença. A cidade não é o deserto. Na cidade, quase todos os gatos são pardos. Os alemães se afogaram em Stalingrado, e os russos, em Grozni, a capital da Tchetchênia.
Bagdá não será Stalingrado ou Grozni, pois a população do Iraque não identifica Saddam Hussein com a pátria. Mas Saddam Hussein concentrou na capital as tropas da Guarda Republicana, único elemento das Forças Armadas em condições modestamente operacionais. Lá, pode acontecer uma guerra de verdade.
Bush não está preparado para uma guerra de verdade. Suas forças vencerão no teatro militar do Iraque, mas serão derrotadas no campo de batalha político das cidades árabes, européias e norte-americanas.
Daqui para a frente, todas as manobras táticas americanas estarão voltadas para evitar esses desdobramentos. Inclusive o noticiário da mídia global.


Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo, é editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional"


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