São Paulo, sexta-feira, 24 de março de 2006

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ARGENTINA

Para a ex-militante Beatriz Sarlo, presidente cultua vítimas da ditadura para compensar sua inação na época

Kirchner faz o que não fez no golpe, diz autora

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Hoje é feriado na Argentina. No afã de vincular seu nome ao drama dos desaparecidos durante a ditadura (1976-1983), o presidente Néstor Kirchner tomou a esquisitíssima decisão de transformar em dia festivo o 24 de março, data em que, há exatas três décadas, tinha início um governo militar responsável pelo desaparecimento de até 30 mil pessoas.
Além dessa curiosa decisão, Kirchner tem valorizado a memória dos mortos pela repressão de outras maneiras, sob a justificativa de ter sofrido suas conseqüências quando era estudante e ativista. Para seus críticos, isso não passa de uma estratégia de marketing, visando as eleições de 2007.
Para a cientista política e ensaísta Beatriz Sarlo, 64, entretanto, é preciso chamar a atenção para o fato de que Kirchner, na verdade, não chegou a encarar de frente o regime. "Ele fez parte de um grupo de jovens militantes que se refugiou no interior do país", disse.
Ex-militante marxista-leninista, ela diz que um balanço histórico deve resgatar o ambiente de violência política que a Argentina vivia. Leia abaixo trechos da entrevista que Sarlo concedeu à Folha, por telefone, de Buenos Aires.

 

Folha - Você acha que Kirchner está se aproveitando politicamente da efeméride?
Beatriz Sarlo -
Kirchner foi um dos típicos jovens militantes que, assim que o golpe chegou, refugiou-se no interior do país e passou a dedicar-se a outra coisa.
Hoje, sua colocação lhe permite fazer aquilo que gostaria de ter feito nos anos 70. É bom que agora aproveite o tempo perdido valorizando a memória dos desaparecidos e atuando junto a organizações de direitos humanos.
Mas é preciso que se saiba que Kirchner não estava entre os opositores da ditadura na época. Agora, se hoje a política está dando a esse grupo uma oportunidade, é melhor que façam o que eles estão fazendo do que não fazer nada.

Folha - Acredita que 30 anos seja tempo suficiente para analisar o golpe de modo mais crítico?
Sarlo -
Sim. Desde o século 20, esses últimos 20 anos são o período democrático mais longo na história argentina. A transição está completa, tivemos presidentes de diferentes partidos e estamos cada vez mais distantes de um novo golpe militar. É possível fazer um balanço crítico, e não apenas um balanço de memória. E é preciso recuperar a paisagem histórica que rodeou o golpe.

Folha - E como seria esse resgate?
Sarlo -
Teríamos de reconstruir o período de modo mais amplo. Não se deve apenas lembrar o que fizeram os militares, mas também revelar o que foi a guerrilha e a experiência de violência política que se vivia na Argentina.

Folha - Como fazer isso sem correr o risco de amenizar os horrores da ditadura? Por exemplo, hoje há quem chegue a humanizar Hitler.
Sarlo -
O caso de Hitler é diferente. O genocídio tinha a ver com um racismo que estava difundido em toda a Europa. Tratava-se de uma população pacífica massacrada pela força do nazismo.
O golpe argentino não tem essa paisagem. As torturas e os desaparecimentos não caíram sobre quem estava levando sua vida cotidiana, e sim sobre gente que vivia mergulhada num ambiente de violência política muito forte.
O que estou dizendo não justifica nem o golpe nem a repressão ilegal ou o terrorismo de Estado. Mas explica porque é simples fazer um museu do Holocausto e é tão complicado fazer um museu sobre o contexto que rodeou o golpe argentino.
Afinal, no nosso passado, há atos guerrilheiros que foram puro terrorismo. Por isso é tão difícil reconstruir a história do golpe.

Folha - Como você definiria esse ambiente de violência política?
Sarlo -
A Argentina não era um país como hoje, democrático, pacífico e no qual as contradições se resolvem por vias institucionais ou por mobilizações populares. Esse ambiente de violência revolucionária era próprio da época na América Latina.
Os anos 70 eram uma época de violência revolucionária e os ideais revolucionários ignoravam o conceito de direitos humanos.

Folha - Muitos dos que viveram o golpe estão hoje atuantes na sociedade. Como eles mudaram?
Sarlo -
A transição democrática nos transformou. Eu fui uma militante marxista-leninista. O aprendizado que tivemos com a ditadura é que o único regime em que faz sentido viver é o democrático. Mas, entre esses militantes, há os que sabem que precisam fazer uma análise crítica do passado e aqueles que têm uma visão nostálgica, romântica e juvenil.

Folha - Pode dar um exemplo de como esses ideais mudaram?
Sarlo -
Sim. Quando assumiu, Kirchner mudou os juízes da Corte Suprema. Nos anos 70, quando todos nós éramos militantes de esquerda, não se pensava assim.
O que queríamos não era mudar os integrantes da corte, mas, simplesmente, eliminá-la da face da Terra, junto com os juízes e junto com o Estado burguês.

Folha - Como foi a sua atuação naquela época?
Sarlo -
Eu era militante de um partido marxista-leninista pró-China. Não éramos guerrilheiros, mas pensávamos que era necessário organizar exércitos revolucionários. Quando digo isso, não deixo de sentir o caráter caricaturesco disso tudo. Mas estou disposta a dizê-lo. Não sinto nostalgia.


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