São Paulo, terça-feira, 24 de abril de 2007

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Morre Ieltsin, que selou o fim da URSS

Era do ex-presidente russo foi marcada por pluralismo e caos; ele afastou-se em 1999, depois de fazer de Putin sucessor

Ieltsin defendeu Rússia do golpe saudosista de 1991, mas foi ele próprio golpista dois anos depois; modelo de privatização gerou miséria

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Boris Ieltsin, o ex-dirigente comunista que implodiu a União Soviética e instalou a democracia na Rússia, morreu ontem aos 76 anos num hospital de Moscou, vítima de insuficiência cardiovascular, segundo um médico do Kremlin.
Seu sucessor e ex-protegido, o presidente Vladimir Putin, decretou luto oficial amanhã, quando ele será sepultado num cemitério moscovita.
O ex-presidente vivia recolhido a uma dacha próxima à capital, dono de uma fortuna de valor desconhecido e cuja origem não será jamais apurada, em razão da imunidade judicial que Putin lhe deu, ao receber dele a Presidência, em dezembro de 1999, antes da conclusão de seu segundo mandato.
Boris Nikoliaevich Ieltsin apressou o colapso da URSS ao abandonar o Partido Comunista e emergir no final dos anos 80 como defensor do pluralismo e da economia de mercado.
Mas foi sob sua liderança que a Rússia mergulhou num capitalismo de estilo mafioso, em que uma casta de oligarcas se beneficiou sem transparência das privatizações. O caos econômico levou em 1993 à inflação de 2.000%, corroendo salários e provocando a miséria de milhões, até então habituados ao paternalismo do Estado.
Os dois momentos cruciais de Ieltsin envolvem o prédio às margens do Volga, a Casa Branca, sede do Parlamento. Em 1991, montado num blindado, ele exortou a população a defender a democracia e a neutralizar um golpe dos comunistas ortodoxos. Mikhail Gorbatchov, líder soviético reformista, estava seqüestrado na Criméia pela polícia política e pelos ministros do Interior e da Defesa. Ieltsin dividiu as Forças Armadas. O golpe fracassou, e ele se tornou um herói.
Dois anos depois, como presidente de uma Rússia "dessovietizada", entrou em atrito com o Parlamento, tentou ilegalmente dissolvê-lo e cercou o prédio com tanques, que atiraram e destruíram algumas dependências. Líderes da oposição foram presos.

Um burocrata
Ieltsin nasceu na aldeia de Butko, nos Urais. Seu pai, camponês empobrecido, mudou-se para Perm, onde o casal e três filhos moraram por dez anos num só quarto de uma cabana comunal. Formado em engenharia, trabalhou por 14 anos na construção civil, antes de entrar no Partido Comunista.
Era a única forma de ascensão para quem não fosse intelectualmente brilhante. Um de seus feitos foi a demolição, para abortar peregrinações, do local em que o czar Nicolau 2º e sua família foram assassinados pelos bolchevistas em 1918.
Gorbatchov assume o partido e a União Soviética em março de 1985. Ieltsin, com a reputação de incorruptível, torna-se membro do Birô Político e líder do Partido Comunista em Moscou. Dois anos depois ele critica a lentidão da política reformista do líder soviético.
Gorbachov faz dele o vice-ministro da Construção. Ele pede sua desfiliação do PC. Candidata-se às eleições de 1989. Sua bancada é a maior da República da Rússia. Força uma reforma constitucional para que os russos elejam seu próprio presidente.
Apóia a República da Letônia quando ela decide se separar da URSS. Ieltsin come pelas bordas o poder de Gorbatchov.
Com a derrota dos golpistas de 1991, em poucos meses se despedaça a estrutura soviética de poder. Gorbatchov fica sem cargo. Ieltsin é o novo senhor da Rússia e da situação.
O olho gordo do Ocidente quer evitar por todos os meios que os comunistas voltem ao poder. Ieltsin é o avalista da operação de rápido mergulho do país na economia de mercado. O economista Jeffrey Sachs aconselha a desestatizar tudo, e o mais rápido possível.
Deu no que deu. Ao longo da década, o país perdeu metade do PIB, a soma de toda a riqueza produzida. Em 1998, o rubro sucumbe à especulação e perde 75% de seu valor, apesar de Anatoly Chubais, o neoliberal do Kremlin, tentar defender a moeda com reservas enviadas pelo FMI. A Rússia é obrigada a decretar moratória.

Tchetchênia
Errático na economia, Ieltsin também o foi com relação à Tchetchênia, República da região do Cáucaso que lutava pela independência e que foi em parte a causa da nomeação e queda de cinco primeiros-ministros entre 1998 e 1999.
O último deles, ex-chefe da KGB e São Petesburgo, foi Vladimir Putin. Ele sabia que só sobreviveria se pusesse fim à guerra de quase dez anos. Fez bonito. Matou um terço da população masculina adulta. A Tchetchênia estava pacificada.
Problemas de saúde graves -cinco pontes de safena em 1996- e o alcoolismo fizeram de Ieltsin um dirigente pouco confiável. Daí a negociação com Putin para deixar o poder, antes das presidenciais de 1999 -ele não poderia ser reeleito.


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