São Paulo, sábado, 24 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Curdos iraquianos ensaiam seu grito de independência

Em meio a país desfigurado e rixas sectárias, etnia massacrada por Saddam Hussein consolida poder autônomo e prospera

Majoritariamente fora do ciclo de violência iraquiano, região curda tem Exército eficiente e mais poder do que muitos países da ONU


PATRICK COCKBURN
DO "INDEPENDENT", EM ARBIL

Um dos Estados mais estranhos a ter emergido no mundo no último meio século se localiza no norte do Iraque, estendendo-se do Irã à Síria no formato de uma lua crescente.
Teoricamente falando, o Curdistão iraquiano não é um país independente, mas tem mais poder do que a maioria dos países membros das Nações Unidas. Ele possui um Exército eficiente. Integra o Iraque, mas Bagdá exerce pouca influência sobre seus atos.
Um velho ditado da região afirma, em tom amargo, que "os curdos não têm outros amigos senão as montanhas". Hoje, porém, seus líderes fazem e desfazem governos iraquianos. Houve época em que a Casa Branca e o governo britânico ignoravam sua existência, mas hoje os curdos são recebidos por George W. Bush e Tony Blair como aliados importantes.
A luta dos curdos iraquianos pela autonomia tem sido mais longa e sangrenta do que a de qualquer outro movimento nacionalista menos o do Vietnã.
Ela teve início sob o domínio britânico, na década de 1920, quando "Bomber" Harris, que mais tarde comandaria a ofensiva aérea britânica contra a Alemanha, treinou sua arte tendo povoados curdos como alvos. Em 1924, criando o precedente para o tratamento que Bagdá daria aos curdos pelo restante do século, ele escreveu: "Hoje eles já sabem que em 45 minutos um vilarejo pode ser praticamente varrido do mapa, e um terço de seus habitantes, mortos e feridos".
Massacre
Saddam Hussein se mostrou um aluno aplicado. Ele encarcerou ou obrigou a fugir centenas de milhares de curdos quando seu movimento pela independência ruiu, em 1975, depois de ser traiçoeiramente abandonado pelo xá do Irã e pelos EUA. A repressão dos entre quatro e cinco milhões de curdos iraquianos alcançou um pico de crueldade e violência no final dos anos 1980: as forças de Saddam Hussein massacraram 182 mil curdos e destruíram 3.800 vilarejos curdos quando Saddam esmagou outro levante, na guerra entre Irã e Iraque. Até hoje vêem-se com frequência, espalhados pela paisagem curda, os sinistros montes de terra que recobrem os escombros de pequenas cidades e povoados cujos habitantes foram deportados ou mortos. O que Saddam Hussein fez no Curdistão não foi o extermínio total, como o que Hitler impôs aos judeus, mas a escala de destruição e mortandade chegou perto do que os nazistas cometeram na Rússia e Polônia.
À primeira vista, tudo isso mudou. Os curdos iraquianos foram os beneficiários um tanto quanto acidentais da determinação de George Bush em derrubar Saddam Hussein, em 2003. Isso poderia ter sido um desastre para eles. Após o levante fracassado de 1991, eles vinham gozando de uma quase autonomia, sob a proteção aérea dos EUA. Então, 12 anos mais tarde, os líderes curdos descobriram de repente, com horror, que o Exército dos EUA estava prestes a invadir o Iraque desde o norte, acompanhado por 40 mil soldados turcos.
Isso teria posto fim a sua autonomia "de facto". Sua salvação só veio quando o Parlamento turco surpreendeu os diplomatas americanos, rejeitando o plano. Da noite para o dia, os curdos se tornaram os únicos aliados americanos confiáveis no interior do Iraque, e essa situação permanece até hoje.
Hotéis cheios
Hoje, enquanto a guerra devasta o restante do Iraque, as únicas partes do país em que a situação é de paz são as três províncias curdas de Arbil, Sulaimaniyah e Dohuk. Os hotéis do Curdistão estão repletos de refugiados endinheirados de Bagdá, Basra e Mossul, que fugiram para lá para escapar da ação dos seqüestradores e assassinos. Na capital iraquiana, apesar dos bilhões de dólares supostamente gastos com a reconstrução, praticamente não se vê um guindaste em ação.
Já nas cidades de Arbil e Sulaimaniyah, o contraste é marcante: em quase todas as ruas vêem-se guindastes em ação em obras de construção. Médicos que não se arriscam a trabalhar em outras partes do país vêm abrindo consultórios novos e elegantes. Até mesmo algumas prostitutas de Bagdá se transferiram para o Curdistão, queixando-se de que exercer sua profissão na capital passou a ser perigoso demais.
Os ganhos curdos não se limitam às três províncias do norte do Iraque que eles já governam há 15 anos. Hoje a área sob controle curdo é muito maior. Quando o Exército iraquiano se desfez, em abril de 2003, os "peshmerga" (soldados curdos) entraram em cidades e vilarejos dos quais seu povo tinha sido expulso anos antes. Eles conseguiram ocupar a cidade de Kirkuk e os campos petrolíferos próximos em questão de poucos dias.
De repente havia peshmerga nas ruas de Mossul, cidade de 1,7 milhão de habitantes em sua maioria árabes sunitas, mas que possui uma minoria curda grande. As forças curdas estenderam seu controle para cidades como Khahaqin, a nordeste de Bagdá, que Saddam havia entregue a colonos árabes.
O poder dos curdos vem aumentando não apenas geograficamente. O presidente do Iraque, escolhido no ano passado pelo Parlamento em Bagdá, é Jalal Talabani, que por muitos anos liderou a União Patriótica do Curdistão (PUK), que controla o leste do Curdistão. O muito hábil ministro das Relações Exteriores do Iraque desde 2003 é Hoshyar Zebari, ex-porta-voz do outro partido curdo principal, o Partido Democrático do Curdistão (KDP).
Paradoxalmente, os membros mais eficientes do governo iraquiano em Bagdá são curdos que, na realidade, gostariam de ter um Estado próprio, legalmente independente. As melhores unidades do novo Exército e das novas forças de segurança iraquianos são constituídas de soldados curdos.
Entretanto, apesar de toda a autoconfiança que manifestam externamente, muitos curdos temem quanto ao futuro. Será que estão vivendo o melhor momento de sua história agora? Neste momento sua posição é forte, mas a situação poderia mudar. Eles são aliados firmes dos EUA, mas Washington já demonstrou que não hesita em abandoná-los.

Divisão
Além disso, os curdos estão fortes porque os árabes iraquianos, divididos entre as comunidades sunita e xiita (que juntas compõem 80% da população) estão, na prática, travando uma guerra civil em Bagdá e nas cercanias da capital. Mas o que aconteceria se eles se unissem no futuro? Uma de suas primeiras prioridades não seria justamente refrear os curdos, que hoje estão tão poderosos?
É claro que poderia acontecer o contrário -o Iraque poderia se fragmentar. Mas isso não seria necessariamente boa notícia para os curdos. Eles já vêm sendo forçados a fugir de Bagdá e das províncias árabes sunitas, onde constituem uma minoria pequena, vulnerável à ação dos assassinos e dos esquadrões da morte.
Tive meu primeiro contato com curdos no momento em que sua sorte chegara ao ponto mais baixo, em 1975, quando Saddam Hussein assumira o controle do Curdistão depois de o Irã, em troca de concessões territoriais do Iraque, ter retirado o apoio que dava ao movimento de autonomia curda. Seu ato de traição não chegou a beneficiar o xá.
Três anos mais tarde, eu estava em Teerã, onde o aiatolá Khomeini acabara de derrubá-lo do poder. Andei de carro por dois dias para chegar à fronteira iraniana com o Iraque, para uma reunião com Massoud Barzani, o atual presidente do Governo Regional do Curdistão, que estava promovendo a reunião para reorganizar as forças curdas.
As perspectivas dos curdos me pareceram muito sombrias. Eles estavam combatendo um dirigente totalmente implacável, Saddam Hussein, que dispunha de um Exército poderoso e riqueza petrolífera sempre crescente. Na época, o líder iraquiano ainda não revelara seu dom infinito de prejudicar a si mesmo, ao exagerar sua própria força e subestimar a de seus adversários. Tendo se convencido de que o regime do aiatolá Khomeini seria um alvo fácil, atacou o Irã em 1980, e os iranianos retaliaram, passando a apoiar aos curdos do Iraque.
A guerra entre Irã e Iraque chegou ao fim com uma derrota ainda mais terrível para os curdos. Aqueles que não foram mortos viram sua terra ser devastada. O levante de 1991, na esteira da derrota sofrida por Saddam Hussein no Kuait, desfez o domínio de Saddam em poucos dias. Soldados curdos capturaram Kirkuk.
Mas, quando a contra-ofensiva do Exército iraquiano ganhou força, a população curda inteira fugiu para as fronteiras da Turquia e do Irã. Uma onda de solidariedade provocada por sua fuga obrigou os EUA a lhes dar cobertura aérea, o que permitiu que um Estado curdo "de facto" começasse a existir. Saddam pensava que podia deixar o Curdistão de lado porque era uma região isolada, miserável e devastada pela guerra.
Ele não estava equivocado em sua avaliação. Em 1996 eu visitei o povoado de Penjwin, próximo da fronteira iraquiana com o Irã. Os moradores do povoado, que corriam o risco de morrer de fome, tinham aderido à ocupação mais perigosa do mundo para conseguir alimentar suas famílias. Durante décadas o Curdistão foi a parte mais perigosa do Iraque. Chegar até lá sempre foi difícil. Quando fui à região por algumas semanas antes da invasão de 2003, tive que atravessar o rio Tigre em segredo, vindo da Síria, numa embarcação de lata com motor de popa.
Hoje, três anos mais tarde, é muito menos estressante viajar até a capital curda, Arbil, do que a Bagdá. O aeroporto recém-construído já está operando com excesso de capacidade, com entre 60 e 70 vôos por semana pousando e decolando para a Europa e o resto do Oriente Médio. Quando desembarquei lá no mês passado, vindo de Amsterdã, meu maior temor foi perder minhas bagagens, devido à dificuldade do pequeno aeroporto em processar o grande número de passageiros que chegavam. Era tudo muito diferente de Bagdá, onde carros queimados usados por homens-bomba se espalham ao lado do aeroporto.
À primeira vista, Arbil, que é a mais antiga cidade habitada do mundo, com população de mais ou menos 1 milhão de habitantes, parece normal quando comparada ao resto do Iraque. Casas e prédios de apartamentos novos estão sendo erguidos em toda a cidade. As pessoas andam de carro tarde da noite, sem preocupar-se com toques de recolher. O gramado do principal Hotel Internacional é recoberto de mesas com fregueses ouvindo música.
Na teoria, a administração do Curdistão, antes profundamente dividida entre os mini-Estados adversários do KDP e do PUK, se uniu desde 8 de maio de 2006 para formar um governo integrado único, o Governo Regional do Curdistão (KRG). Há um gabinete conjunto de 32 integrantes. O grau de unidade é difícil de avaliar, mas, pelo menos, os curdos apresentam uma frente unida ao resto do Iraque e ao mundo.
O Curdistão não está inteiramente isolado dos problemas do resto do Iraque. Ainda está conectado à grade elétrica iraquiana, e a falta de eletricidade é constante. A cada poucas centenas de metros se vêem jovens vendendo gasolina em galões de plástico.
A grande maioria dos curdos gostaria de ter independência, mas tem consciência dos grandes perigos que isso envolve. Além disso, eles vêm se diferenciando cada vez mais dos outros iraquianos. Cada vez menos deles falam o árabe. Quando perguntei a cem peshmerga quantos falavam o árabe tão bem quanto falam curdo, só três levantaram as mãos.
O Curdistão também se destaca por ser em grande medida secular, no meio de um país cada vez mais islâmico. Apesar disso, os líderes curdos sabem que precisam aliar-se aos partidos religiosos xiitas e que, fora do país, precisam do apoio dos EUA. Mesmo que o Iraque se torne cada vez mais uma expressão geográfica, os curdos precisam fazer parte dela.


Tradução de CLARA ALLAIN

Texto Anterior: Tesouro americano defende acesso a dados bancários
Próximo Texto: Frase
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.