São Paulo, sábado, 24 de setembro de 2005

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TRAGÉDIA NOS EUA

Efeito do furacão sobre pobres provoca cobranças por trabalho social, mas isso pode não ser suficiente

Katrina gera debate sobre ação antipobreza

JILL LAWRENCE
DO "USA TODAY", EM WASHINGTON

O furacão Katrina trouxe os pobres diretamente para dentro das salas de estar dos americanos. E então, em meio às imagens de sofrimento e devastação, a agência de recenseamento dos EUA disse que a pobreza aumentou no país pelo quarto ano consecutivo.
Estarão os EUA numa encruzilhada, prestes a passar por uma mudança dramática de suas prioridades políticas? O Katrina provocou chamados por uma nova decisão nacional de pôr fim à pobreza, além da esperança de que isso possa de fato acontecer. Mas é possível que o público não se deixe mobilizar para tal cruzada.
Dois terços dos participantes de uma pesquisa "USA TODAY"/ CNN/Gallup feita neste mês afirmaram que o país não está gastando o suficiente para combater a pobreza. Mas essa opinião não pode ser atribuída ao Katrina, já que 69% disseram o mesmo há mais de um ano, numa pesquisa da Universidade de Chicago.
O pesquisador republicano Glen Bolger declarou que as sondagens que fez antes e depois do Katrina indicam que as prioridades dos eleitores não mudaram. Indagados sobre o que vai influir mais sobre seus votos para o Congresso no próximo ano, afirmaram que as questões mais importantes, para eles, são o Iraque, o terrorismo e o emprego.
Mesmo supondo que o público dê apoio a uma guerra nacional contra a pobreza, muitos analistas dizem que é pouco provável que ela aconteça. Uma das razões disso é o custo da recuperação da costa do golfo do México, somado ao custo da Guerra do Iraque e à campanha de George W. Bush por mais cortes nos impostos.
"Sim, é verdade que o Katrina chamou a atenção para a pobreza", disse Sheila Zedlewski, diretora do Centro de Políticas de Renda e Benefícios do Instituto Urbano. "Mas temos um problema que compete com esse: a questão do déficit federal", previsto em US$ 333 bilhões neste ano.
Outro problema é a divergência persistente entre liberais e conservadores no que diz respeito a como combater a pobreza. Mais programas governamentais, ou mais trabalho de igrejas? Ajuda direta ou redução nos impostos?
"Todos nós queremos resolver o problema da pobreza", afirma Donald Devine, vice-presidente da União Conservadora Americana. "A questão é: vamos fazê-lo como foi feito em 1932, ou será que aprendemos alguma coisa desde então?"
Para alguns democratas, o New Deal é um exemplo nada mau. Nesta semana, o ex-indicado à candidatura de vice-presidente John Edwards, diretor do Centro de Pobreza, Trabalho e Oportunidades da Universidade da Carolina do Norte, elogiou três programas da era da Grande Depressão e propôs um programa de geração de empregos para a costa do golfo do México. O senador democrata Edward Kennedy, do Estado do Massachussetts, propõe a criação de uma Autoridade para a Reconstrução da Costa do Golfo, seguindo o exemplo da Autoridade do Vale do Tennessee.
O plano de Bush inclui incentivos fiscais para empresas, vales que ajudem pais deslocados em função da catástrofe a pagar escolas particulares e paroquiais para seus filhos, o abrandamento dos regulamentos ambientais e a suspensão da exigência de que as empresas contratadas pelo governo federal para realizar obras na região paguem a seus contratados os salários locais vigentes. Todas essas medidas integram a pauta republicana constante.
Os chamados por um esforço mais amplo de combate à pobreza estão vindo de diversos setores. A primeira-dama Laura Bush disse à Associated Press que espera que o Katrina ajude o país a reagir "de maneiras diferentes" à pobreza e aos problemas raciais. "Grande parcela de nossa população provavelmente não faz idéia de como são realmente os centros urbanos pobres", declarou ela, na terça.
A maioria dos que pedem uma ação em base ampla é formada por democratas ou religiosos. "Não podemos mais ser uma nação que ignora os pobres e sofredores", disse o pastor T.D. Jakes, de uma megaigreja de Dallas, durante uma cerimônia em memória das vítimas do Katrina.
John Edwards, o senador do Illinois Barack Obama e o senador do Massachusetts John Kerry estão entre os democratas que querem fazer do Katrina um momento divisor de águas. "Será que vamos nos contentar em cuidar apenas do imediato -prestar assistência às vítimas e reconstruir a cidade?" indagou Kerry, que foi o candidato presidencial democrata nas eleições de 2004, em discurso proferido na última segunda na Universidade Brown. "Ou vamos nos inspirar para enfrentar a injustiça social que levou tantos dos menos afortunados a ter que ficar aguardando sobre os telhados, rezando por ajuda?"
Charlie Cook, editor de um relatório político não partidário, afirmou que os republicanos "precisam abrandar algumas de suas posições, para não correr o risco de perder suas maiorias" na Câmara dos Deputados e no Senado. Para ele, o Partido Republicano mostraria inteligência se falasse num combate amplo à pobreza.
Existem medidas que podem diminuir a distância entre os partidos? Rich Lowry, editor da conservadora "National Review", sugere "um grande acordo entre direita e esquerda", pelo qual os liberais concentrassem sua ação na prevenção dos nascimentos ilegítimos e os conservadores promovessem o aumento dos gastos com a população urbana.
Sheila Zedlewski diz que o Katrina trouxe à tona o fato de que a rede de proteção social está fragmentada, com muitos programas e conjuntos de regras separados. Para ela, é tão difícil navegar nessa rede que é possível que ambos os partidos sejam a favor de seu enxugamento. "Ambos os partidos gostariam de ver esse sistema de apoio funcionar melhor do que funciona hoje", avaliou ela.
Consequências assim seriam modestas comparadas ao incêndio da fábrica Triangle Shirtwaist, em 1911, que levou à adoção de reformas nos locais de trabalho e ao surgimento do movimento sindical moderno, sem falar na enchente do rio Mississippi de 1927, que gerou uma reação do governo que antecipou o New Deal.
Mas alguns líderes acham que mesmo uma discussão sem resultados imediatos seria melhor do que o silêncio do período anterior ao Katrina. Para o prefeito de Los Angeles, Antonio Villaraigosa, sua cidade tem o maior índice de pobreza do país. Ele diz: "Fico espantado com a pouca atenção dada pelo Congresso à questão da pobreza. O furacão Katrina representa uma oportunidade para trazermos à tona essa discussão."


Tradução de Clara Allain

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