São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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O IMPÉRIO VOTA - RETA FINAL

OLHAR BRASILEIRO

Perplexidade

MARCELO GLEISER
No dia 13 de outubro assisti ao último dos três debates entre George W. Bush e John Kerry, o candidato do Partido Democrata à Presidência dos EUA. Durante uma hora e meia, ou melhor, quatro horas e meia, pois assisti aos dois anteriores, me perguntei como uma pessoa com uma visão tão distorcida da realidade pode ser o presidente do país mais poderoso do mundo.
Moro nos EUA desde 1986, quase tempo demais. Vi o pai de George W. levar o país à Guerra do Golfo para expulsar Saddam Hussein e "salvar" o Kuwait -ou seja, garantir que seus poços de petróleo não fossem controlados pelo ditador iraquiano. Bush-pai interrompeu a invasão antes de Bagdá, resolvendo, sabiamente, não envolver os EUA em uma guerra que certamente seria seguida de complicada ocupação. Sabia que isso ecoaria Vietnã. As Nações Unidas impuseram então sanções econômicas e supervisão do suposto programa nuclear iraquiano.
Seu filho, George W., é produto típico de uma família influente, sustentado pelo pai, protegido pelo seu prestígio, que estudou em Yale porque o pai havia sido aluno de lá, que quando se metia em embrulhadas, como evitar a ida ao Vietnã e problemas com álcool e cocaína, era resgatado pelo seu nome. Antes de ser quase empurrado ao governo do Estado do Texas, o sonho de Bush-filho era ser supervisor dos times de beisebol do Estado. De beisebol à Presidência dos EUA é um dos maiores pulos já dados na história da política. Como isso ocorreu?
A resposta está no que Bush-filho fala, ou melhor, no que seus assessores Karl Rove, Donald Rumsfeld, John Ashcroft falam através dele. Quando perguntaram a Bush se ele ouvia conselhos de seu pai, respondeu que agora ouvia apenas a um pai mais elevado, Deus.
Bush saiu de seu caos pessoal descobrindo Jesus, transformando-se em um evangélico radical. Entrou no chamado Cinturão da Bíblia, a região ao sul dos EUA dominada por um cristianismo intolerante e ortodoxo. Junto com seus assessores, vem promulgando a agenda deste grupo: contra o aborto, achando que o Estado pode decidir como uma mulher deve proceder; contra o casamento de homossexuais, querendo impor uma emenda constitucional proibindo o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo; contra a pesquisa com células-tronco, alegando que ela tira a vida de crianças que ainda não nasceram, bloqueando o avanço da ciência nesta área; uma política ambiental desastrosa, onde os únicos interesses defendidos são os das grandes indústrias; uma alienação política total, isolando os EUA como nunca antes no cenário internacional; promulgando uma cruzada entre as forças do "bem" (os evangélicos americanos) e as do "mal" (os grupos islâmicos radicais, os países do "eixo do mal", Irã e Coréia do Norte e quem se opuser à sua linha política); causando uma guerra devastadora e custosa por mais petróleo.
Os EUA são hoje dois países, uma sociedade dividida ao meio, liberais de um lado, conservadores do outro, vítima de uma propaganda do medo, de inseguranças e paranóias. Não podemos ter mais quatro anos disso.


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu" (Companhia das Letras).


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