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CABUL
Escola para meninas ainda é clandestina
Aulas em segredo continuam mesmo após a queda do Taleban, porque colégios mistos seguem fechados
IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A CABUL
Apartamento 36, bloco 130,
bairro Makrorian 3. Nos últimos
cinco anos, o pequeno imóvel de
três quartos foi uma trincheira na
linha de frente das diferenças entre o regime do Taleban e seus cidadãos. Lá funciona uma escola
para meninas, que permanece
clandestina sob o regime da
Aliança do Norte, apesar das promessas de reabertura dos colégios
públicos para ambos os sexos.
Na linha de frente, a professora
primária Zohra Saltani, que, aos
28 anos, é uma exceção na sociedade de Cabul por ser solteira e
sem filhos ou vontade de tê-los.
""Gosto de dar aulas. Quando o
Taleban fechou as escolas para
professoras e para as meninas, em
1996, vi que deveria fazer algo."
Por fazer algo entenda-se abrigar até 70 meninas em aulas secretas, cinco dias por semana, numa jornada que se estendia das 8h
às 16h, com uma hora de almoço.
Esconder tal movimento infantil obrigou Saltani a procurar ajuda de seu amigo Mohammed Zaheb, 23. Estava incorrendo agora
em dois crimes: educar meninas e
falar com um homem que não era
de sua família. ""Zaheb conhecia o
dono do bloco, e isso ajudou a
melhorar as coisas. Uma vez, o
mulá do bairro citou minha escola na pregação de sexta. Tivemos
de juntar 20 mil afeganis (cerca de
US$ 4) para ele esquecer o assunto", conta Zohra, insinuando que
a retidão do Taleban não era assim tão pura.
Dono do bloco é o jeito como os
moradores de Cabul chamam um
misto de zelador e síndico dos
prédios de apartamentos de estilo
soviético. Daquela época, a década de 1980, conservam a mania de
se meter em todos os assuntos dos
vizinhos e cobrar ""taxas" para
quase tudo, inclusive esconder escolas femininas.
De todo modo, as crianças vinham em quatro grupos, separados por horários. Lá aprendiam
as línguas locais, dari e pasthu,
matemática, ciências e, pecado
dos pecados, música. ""O que mais
gosto é de ler", disse a menina
Atiah, que, com 5 anos e aparência de menos, chama a atenção no
grupo de 18 crianças que recebeu
a Folha.
Zohra lhe dá um livro em dari, e
ela lê duas páginas sem gaguejar.
Mesmo quem não entende nada
de educação infantil fica impressionado com a fluência da menina, que usa um cabelo curto e tem
olhos curiosos para os equipamentos estranhos e caras novas
que vê.
No auge da repressão do Taleban, a partir de 1998, as crianças
tiveram de parar de andar com livros na rua. Zohra e Zaheb esconderam tudo em suas casas. ""Tinha
dia que eu precisava manter as
meninas aqui dentro depois da
aula, porque a Marouf (polícia religiosa) estava fazendo rondas no
bairro", diz a professora.
A mãe de uma das meninas, Zakilah Mujahid, 33, conta que havia outro problema. "Nem todos
tinham como pagar. Então eles faziam descontos, mas eu tive de tirar minha filha da escola por um
tempo no ano passado", afirmou.
O custo mensal por aluna é de
50 mil afeganis (aproximadamente US$ 10), cerca de um décimo do
que uma família de seis pessoas
em Cabul ganha a cada mês.
""O pior é que agora tem mais
gente vindo aqui depois que o Taleban caiu e o novo governo não
abriu ainda as escolas", diz Zohra,
sem saber onde vai pôr mais
crianças. Ajuda o fato de que estão para começar as férias de inverno na metade norte do Afeganistão, onde fica Cabul e a estação
é realmente gelada. Na metade
sul, as férias de quatro meses são
no escaldante verão.
Ainda assim, depois dos ataques aos EUA em 11 de setembro
o número de alunas caiu de 70 para 45. ""Gostaria muito de voltar a
dar aulas em uma escola pública,
como fiz por dois anos antes do
Taleban", afirma Zohra.
Segundo o chanceler Abdullah
Abdullah, a Aliança do Norte vai
reabrir as escolas para meninas
assim que a situação política se estabilizar. É exatamente essa a
preocupação de Zohra -que, pelo sim, pelo não, ainda não abandonou sua burga ao sair de casa.
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