São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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AMÉRICA LATINA

Números do governo expõem a ampliação do quadro de extrema pobreza e da crise sem paralelo na história do país

Fome mata 3 crianças por dia na Argentina

Antonio Ferroni/"La Gaceta" - 15.nov.2002/Reuters
Em Tucumán, Franco Dibenedetti segura a irmã Milagros, de seis meses, que sofre de desnutrição


MARCELO BILLI
DE BUENOS AIRES

Todos os dias três crianças argentinas morrem devido à desnutrição ou a doenças ligadas à situação de extrema pobreza e fome, estima o Ministério da Saúde do país. Mais de 4 milhões de argentinos deixaram de ter condições de pagar pelos itens básicos para a sobrevivência nos últimos 12 meses. A crise econômica elevou de 35% para 53% a parcela da população urbana que está abaixo do nível de pobreza.
A deterioração do quadro social e os protestos de entidades argentinas e internacionais levou o governo a anunciar planos de emergência e frentes de ação em várias Províncias. Apenas nas últimas semanas, mais de 50 casos de morte de crianças foram registrados. Todos causados por desnutrição crônica, a maioria nas Províncias da região norte do país.
Em Tucumán, Província na qual foi registrado um grande número de casos, mais de 63% da população está abaixo dos níveis de pobreza, e 27% não ganham o suficiente para uma cesta básica.
"É uma situação de emergência social. Trata-se de uma crise nunca vista em nosso país", afirma Victor Abramovich, diretor-executivo do Cels (Centro de Estudos Legais e Sociais).

Sem comida
Quase 6 milhões de argentinos vivem hoje sem recursos suficientes para comprar uma cesta básica de alimentos. Parte dessa população é atendida por programas de governo: transferências de renda, subsídios e restaurantes populares em escolas.
A crise econômica, no entanto, tem impedido o governo de aumentar o gasto social, e o número de desempregados, pobres e indigentes não pára de crescer. Hoje, 20% dos argentinos estão desempregados, e calcula-se que outros 40% trabalhem em empregos precários, com baixos salários e sem nenhum tipo de proteção legal. A estimativa é que 7 em cada 10 crianças nasçam em lares nos quais os pais são pobres ou indigentes. Dessas crianças, cerca de 20%, estimam os órgãos oficiais de estatística do país, não têm alimentação adequada.
Em muitas Províncias, os restaurantes das escolas não têm recursos para atender a todas as crianças e pais que os procuram. Nas Províncias mais pobres, muitas escolas não recebem o suficiente para alimentar os alunos. "Em muitos casos a situação de abandono é total. As pessoas foram excluídas, não têm acesso ao trabalho nem à comida", diz Gabriel Rosesntein, da Comissão de Saúde e Direitos Humanos da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires.

Sem saúde
O último recurso das famílias acabam sendo os hospitais. Mas a crise os têm impedido de oferecer tratamento adequado: faltam medicamentos, pessoal e recursos. Na semana passada, a organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras emitiu um alerta sobre a crise crônica do sistema de saúde argentino.
A procura por serviços médicos aumentou, e os recursos são praticamente os mesmos. O resultado: os hospitais sofrem crises de desabastecimento e não têm os materiais adequados para tratar os pacientes.
Os casos de desnutrição aguda e aumento de mortalidade infantil fizeram com que os argentinos passassem a se referir aos anos 90 como a década perdida. O economista Ernesto Kritz, diretor da SEL (Sociedade de Estudos Laborais), calcula que a renda per capita dos argentinos tenha caído 27% desde 1998, quando começou a atual recessão.
"Os casos de fome são resultado de um processo que dura muitos anos. Mas só agora a sociedade argentina acordou da grande ilusão que foram os últimos dez anos. Nesses anos, aumentou a pobreza e piorou a distribuição de renda", diz Abramovich.
Os índices de pobreza e de distribuição de renda começaram a se deteriorar em 1994. Naquele ano, cerca de 16% da população da Grande Buenos Aires -os índices nacionais só começaram a ser apurados em 2001- era considerada pobre. Hoje, metade desse contingente está abaixo da linha de pobreza. No mesmo período, aumentou também a concentração de renda. Em 1994, um argentino que estivesse entre os 10% mais ricos tinha um ganho 20 vezes superior ao de um que fosse do grupo dos 10% mais pobres. Hoje, o ganho dos mais ricos é 50 vezes maior.


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