São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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"GUERRA DAS PELES"

Venda dispara; compradora típica é a mulher de 30 e poucos anos que despreza o discurso da correção política

Sob protestos, roupas de pele voltam à moda

PAUL VALLELY
DO "THE INDEPENDENT"

Foi uma declaração de guerra, na prática. Polêmico e combativo, o estilista britânico John Galliano ergueu uma placa enorme nos bastidores do desfile da coleção de moda inverno da Christian Dior, neste ano. A placa exortava suas modelos a "deixar as peles esvoaçando". Em seguida, Galliano as enviou para a passarela de Paris envoltas em blusões em estilo peruano, de cores pastéis e enfeitados com bolas de visom. Era o início da "Guerra das Peles".
O ataque pegou o movimento de defesa dos direitos dos animais de surpresa. Nos últimos dez anos, seus militantes já tinham se acostumado a percorrer os corredores do mundo da moda sem serem desafiados. É verdade que os estilistas tinham começado a usar pele novamente. No campo de batalha, porém, os "antipeles" ainda eram vistos como estando em posição moral superior; pareciam ser inatingíveis pelos adeptos das peles. De repente, os militantes se viram sendo atacados.
Eles se reagruparam para o contra-ataque. A cantora Sophie Ellis-Bextor, integrante da nova geração de "antipeles", posou para um anúncio segurando uma raposa esfolada ao lado do slogan: "Eis o resto de seu casaco de pele".
Ela foi fotografada por Mary McCartney, filha do ex-Beatle Paul, vegetariana militante, em prol do grupo ativista Peta (Pessoas pela Ética no Tratamento de Animais).
Em seguida, ativistas do Peta invadiram a passarela de um desfile da grife de lingerie Victoria's Secret, em Nova York, e cercaram a modelo brasileira Gisele Bündchen. Gritaram slogans e brandiram cartazes insistindo que a pele era ostentação vergonhosa. A modelo tem um contrato para estrelar uma campanha publicitária da empresa americana de roupas de pele Blackglama, pelo qual, ao que consta, vai receber US$ 500 mil mais dois casacos de visom preto.
Apesar da reação, o Peta e seus partidários ainda se sentiam na defensiva. As roupas de pele voltaram às passarelas da moda e estão sendo usadas outra vez por celebridades. Cerca de 400 estilistas usaram pele em suas coleções neste ano, contra apenas um décimo desse número há 15 anos. Hoje em dia, ser contrário ao uso de peles é visto como ultrapassado.
Mais alarmante, para os ativistas, é a conversão às peles de estilistas da nova geração, tais como Tristan Webber. Ele não apenas mostrou nas passarelas babados de visom finamente trabalhados nas golas e mangas de seus casacos de noite, mas também afirmou: "As questões morais foram resolvidas no final dos anos 80. Para mim, pele não é diferente de couro". De repente, estilistas que se recusam a usar pele, como Stella McCartney, irmã de Mary, começam a ser vistas como hippies antiquadas devido a sua recusa em trabalhar com peles ou couro.
Celebridades como as atrizes Jennifer Lopez e Halle Berry, a cantora Posh Spice e a modelo Sophie Dahl andam aparecendo em público cobertas de pele. Mesmo muitas personalidades que já protestaram contra as peles, como Madonna, Cindy Crawford e Kate Moss, andam vestindo roupas de visom e ostentando a nova incorreção política para quem quiser ver. A revista ""Vogue" voltou a dar destaque a roupas de pele, pela primeira vez em anos, e, no mês passado, a revista de moda francesa "Numéro" publicou uma edição baseada em pele.
As peles estão de volta também ao mundo dos comuns mortais. Cifras da Federação Internacional do Comércio de Peles mostram um aumento, no ano passado, de 7% nas vendas mundiais, que chegaram a US$ 9,9 bilhões. Segundo a Associação Britânica do Comércio de Peles, porém, as vendas no Reino Unido aumentaram nada menos que 30% em 2000-2001. É uma retomada que os militantes jamais imaginaram que pudesse acontecer.

Batalha histórica
A batalha contra as peles tem sido longa. O símbolo histórico de riqueza e status adquiriu peso renovado no século passado graças a Hollywood, cujos fotógrafos descobriram, nos anos 30, que roupas de pele branca formam uma moldura perfeita para o rosto feminino e lhe acrescentam um ar de opulência. Na década seguinte, estolas, mangas e golas de pele viraram o uniforme padrão das candidatas a grandes estrelas. Nos anos 50, as peles já eram vistas como decadentes.
A campanha de combate às peles começou nos anos 70 e 80. Um grupo de pressão chamado Lynx (lince) começou a divulgar anúncios como um que mostrava uma bela modelo loira usando um casaco de pele de raposa branco e arrastando atrás de si o corpo ensanguentado do animal. Piquetes começaram a ser formados todo sábado diante das lojas de peles do West End londrino.
Cartas ameaçadoras eram enviadas aos endereços de funcionários e clientes das lojas. No início dos anos 80, a organização Greenpeace encomendou a David Bailey um famoso anúncio veiculado em cinemas com o slogan: "São necessários mais de cem animais burros para se fazer um casaco de pele, mas apenas um para usá-lo".
Parecia que a campanha estava funcionando. As vendas britânicas de peles caíram de US$ 125 milhões em 1984 para apenas US$ 17 milhões no primeiro semestre de 1989. Nos anos 80, cerca de 90% das lojas britânicas de roupas de pele fecharam suas portas. Grandes lojas como Selfridges, Harvey Nichols e Harrods fecharam seus departamentos de pele por causa da queda nas vendas e dos constantes ataques de sabotagem (geralmente com chicletes).
Em 1994, o Peta lançou seu pôster "Prefiro andar nua do que usar peles", com cinco supermodelos -Naomi Campbell, Christy Turlington, Claudia Schiffer, Cindy Crawford e Elle Macpherson- fazendo exatamente isso (hoje, apenas Turlington e Macpherson continuam firmes na recusa em usar pele). Mesmo os desastrosos ataques a granjas de criação de visons por manifestantes em defesa dos direitos de animais -em que milhares de animais foram soltos de suas jaulas e libertos nos campos, onde acabaram por colocar em risco de extinção as populações de rato-almiscarado, lontra e furão-bravo- não pareceram prejudicar a cruzada.
Em 2000, grupos de combate ao uso de peles conseguiram convencer o governo britânico a declarar ilegal a criação de visons. Apesar de a rainha, num gesto de irreverência, ter comparecido à abertura oficial do Parlamento para anunciar a nova lei vestindo um belíssimo casaco de peles, a lei foi aprovada. A criação de animais para aproveitamento de suas peles passa a ser ilegal a partir do final do próximo mês. Cerca de 13 fazendas de criação de visons e raposas foram fechadas, e tudo o que resta a ser feito por seus proprietários é brigar para serem indenizados.
Apesar de tudo isso, alguns observadores começam a dizer que o piso histórico da produção de peles, em 1994, não foi consequência da cruzada antipeles, mas um reflexo da recessão mundial do fim dos anos 80, e que a produção atual, que já está em mais de 31 milhões de unidades (contra 20,4 milhões em 1993), se aproxima pouco a pouco do pico histórico -42 milhões, em 1988.
Se isso for verdade, muitos envolvidos na questão atribuem a reviravolta a uma única empresa, a Saga Furs, maior produtora de peles da Europa. O continente europeu produz e consome 85% das roupas de pele compradas em todo o mundo. A Saga, uma enorme coalizão de produtores de pele escandinavos, produz 65% do visom do mundo e 70% das roupas de pele de raposa. Em 1988 a empresa abriu um centro perto de Copenhague onde seus pesquisadores trabalham constantemente para criar novas maneiras de usar pele -tingindo-a, aplicando laser a ela, tecendo os fios para formar linha, formando misturas com lã, listras e todas as cores possíveis e imagináveis.

Geração fashion
Hoje, combater a indústria de peles não quer dizer lutar contra a velha guarda de ricos, conservadores, enrugados e ignorantes usuários de casacos longos de visom. Significa combater uma geração jovem que é fashion, colorida e bem informada. Uma criadora de modas como Katie Grand, editora da revista de moda "Pop", usa seu novo casaco de visom para ir ao trabalho sem sentir vergonha. Grand, cujo pai é cientista, explica: "Desde criança acostumei-me à idéia de que ele [o pai] faz experiências com animais. Isso nunca me incomodou".
A compradora típica de uma roupa de pele hoje é uma mulher de 30 e poucos anos, de renda média, que compra protetores de ouvido de pele de coelho da Chanel ou um casaco da Zara com gola de pele de coiote por menos de US$ 150. E, em lugar de estar desafiando o velho establishment, ela demonstra que não dá a mínima para o novo establishment marcado pela correção política liberal, verde e de esquerda. Peso na consciência por estar usando pele é algo tão fora de moda quanto xales de pashmina (pêlos de cabras do Tibete). O único consolo que resta ao lobby dos "antipeles" é a esperança de que, já que a moda é por definição volátil e mutante, não demore muito para as roupas de pele serem mais uma vez vistas como inaceitáveis.


Tradução de Clara Allain


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