São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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Pressões internas, possibilidade de supremacia dos xiitas e cenário econômico desfavorável embaralham futuro

Democratização iraquiana vira dilema

LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO

Quando ordenou a invasão do Iraque, em 20 de março de 2003, o presidente dos EUA, George W. Bush, proclamou que não apenas livraria o país de um ditador cruel, mas que instalaria ali uma democracia que serviria de modelo para toda a região.
A primeira tarefa foi cumprida com presteza. Já a segunda se revelou uma missão tão árida que, passados dez meses, Washington não tem um plano factível para alcançá-la. Pior: os iraquianos não demonstraram o entusiasmo esperado por Bush, e o único esboço que havia (o chamado cronograma da transição) está sendo questionado até na Casa Branca.
"O problema do Iraque é que a democratização pode reproduzir as divisões étnicas e religiosas ao invés de abrandá-las. Um sistema totalmente democrático pode dar aos xiitas a chance de impor suas prioridades", disse à Folha Daniel Brumberg, autor do estudo "Liberalização versus Democracia", do Carnegie Endowment for International Peace (Washington).
A observação de Brumberg reflete um dos principais dilemas da Casa Branca.
Com 24,6 milhões de habitantes, o Iraque é um país com uma conflituosa divisão étnica e religiosa, uma política dominada por líderes tribais e sem nenhuma cultura democrática.
Reprimidos pela ditadura do sunita Saddam Hussein, os xiitas, que são mais de 60% da população do país, vêem no voto direto a porta para a supremacia política.
Nas últimas semanas, essa maioria encontrou no aiatolá Ali al Sistani seu maior porta-voz. Foram as demandas de Al Sistani, um líder islâmico moderado, que levaram 100 mil xiitas às ruas na última semana e, em uma demonstração inédita de força política do grupo, obrigaram a Casa Branca a discutir alternativas para o cronograma da transição.
Em novembro, o Conselho de Governo Iraquiano e a Autoridade Provisória da Coalizão aprovaram o cronograma, que prevê a entrega do poder a um governo interino no próximo dia 30 de junho. A data é ponto pacífico, mas o mecanismo de escolha desse governo -eleições diretas ou indiretas, voto nacional ou regional- é o cerne do debate .
"O desafio é criar um processo que dê a todos os grupos um lugar na mesa de negociação, que por sua vez deve estabelecer uma Constituição cujos princípios garantam os direitos das minorias", disse Brumberg. "Tudo isso à luz da ausência de tradição democrática no país e do medo dos eventuais perdedores. Some a isso o petróleo, motor da economia e usado no passado para comprar lealdade política", enumerou.
Para ser sustentável, a democracia iraquiana, para o analista, tem de começar aos poucos, com uma solução semelhante à proposta pelos EUA -o poder dividido de acordo com a representação de cada grupo entre a população.
"Washington sabe disso e quer o predomínio xiita em qualquer governo, mas teme que eleições diretas neste momento levem clérigos radicais ao poder -daí veio a idéia das convenções regionais [para escolher os membros do colégio eleitoral]", disse. "A ironia é que, ao promover essa alternativa, eles criaram as condições para Al Sistani se erguer."
O especialista acredita que o último passo tomado pelos EUA -recorrer ao apoio da ONU- seja o mais acertado para o momento. "As forças iraquianas só irão ceder à ONU, não aos EUA."



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