São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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DROGAS

País que financia destruição de plantações comprou 99,9% da coca vendida em 1999; demanda da Coca-Cola explica números

EUA são o maior comprador legal de coca

ROGERIO WASSERMANN
DA REDAÇÃO

Os EUA, que financiam com centenas de milhões de dólares o combate às plantações de coca nos países andinos, são os maiores importadores legais do produto. Segundo dados da ONU, o país importou, em 1999, 110 mil toneladas de folhas de coca, ou 99,9% de todo o produto legalmente comercializado no mercado internacional.
A razão desses números é a demanda para a fabricação de um dos mais conhecidos produtos norte-americanos, a Coca-Cola, vendida em mais de 200 países, que tem em sua fórmula um extrato "descocainizado" de folhas de coca. Ou seja, o refrigerante não tem cocaína, que é retirada por meio de processos químicos.
As folhas de coca são importadas da Bolívia e do Peru -no ano passado, só o Peru vendeu coca aos EUA- pela empresa Stepan Company, com sede em Maywood, Nova Jersey, que tem autorização legal da DEA (o departamento de controle de drogas norte-americano) para comprar as folhas e produzir o extrato alimentício vendido à Coca-Cola. A mesma empresa, originalmente chamada Schaefer Alkaloid Works, depois Maywood Chemical Works, produz o aromatizante para a Coca-Cola desde 1903.
No processo de extração do alcalóide das folhas, a empresa produz também algumas dezenas de quilos de cocaína. Parte disso é destruída. Outra parte é utilizada em pesquisas médicas ou como anestésico em cirurgias.
Oficialmente, tanto a Coca-Cola quanto a Stepan Company se recusam a comentar o assunto.
"A fórmula da Coca-Cola é um segredo muito bem guardado, sobre o qual a empresa não faz comentários", disse à Folha um porta-voz da empresa.
O mesmo ocorre na Stepan Company. "A empresa tem uma política de não comentar esse assunto", afirmou John O"Brien, gerente da fábrica de Nova Jersey.
A Folha tentou ouvir também a DEA sobre o assunto, mas, após mais de dois meses de tentativas, com diversos contatos com o setor de Relações Públicas do órgão em Washington, com o representante do órgão no Brasil, Patrick Healy, e com o adido de imprensa da Embaixada dos EUA no Brasil, Terry Davidson, o órgão se limitou a enviar, na semana passada, um e-mail com apenas algumas das informações solicitadas.
A Folha pediu informações sobre a empresa (ou as empresas) autorizadas a importar coca e sobre o tipo de utilização do produto nos EUA, mas a DEA informou que são "dados particulares que não podem ser divulgados".
Segundo o órgão, a destinação primordial da importação de coca é comercial. "Há um uso muito limitado de folhas de coca para aplicações de pesquisa", relatou o órgão em e-mail enviado à Folha. A reportagem também pediu uma entrevista à DEA, mas não obtivera resposta até anteontem.

Fórmula divulgada
"Certamente é a demanda da Coca-Cola que explica a grande quantidade de folhas de coca importada anualmente pelos EUA", disse à Folha Mark Pendergrast, autor do livro "Por Deus, pela Pátria e pela Coca-Cola - A História Não-Autorizada do Maior dos Refrigerantes e da Companhia que o Produz", de 1993, no qual ele divulgou uma suposta fórmula do refrigerante.
"Que eu saiba, a Coca-Cola é a única empresa a utilizar esse extrato de coca na fabricação de seu produto", disse. Pendergrast afirmou ter encontrado as informações sobre a fórmula do produto em documentos achados nos arquivos da própria companhia.
Apesar de todo o mistério e proteção, a importação de folhas de coca e a fabricação do extrato aromatizante seguem regras legais e são fortemente controladas pela DEA e pela Jife (Junta Internacional Fiscalizadora de Entorpecentes), órgão ligado à ONU responsável pela aplicação da legislação internacional sobre drogas.
A Convenção das Nações Unidas sobre Narcóticos, de 1961, permite o cultivo controlado da coca nos países em que ela já era tradicionalmente cultivada -Bolívia e Peru-, mas condena seu consumo tradicional -mascada ou em forma de infusão- pelas populações indígenas.
Em seu artigo 27, porém, a convenção admite a produção de extratos aromatizantes a partir da folha de coca, desde que não contenham alcalóides. "O artigo foi escrito sob medida para a Coca-Cola", afirma Pendergrast, que diz não saber se a empresa fez lobby para a aprovação dessa ressalva na convenção.

Sem contradição
Para o secretário-geral da Jife, Herbert Schaepe, não existe contradição entre a política norte-americana de combate às drogas e o uso das folhas de coca para a produção do aromatizante usado pela Coca-Cola. "Tudo isso é permitido pelas convenções internacionais, autorizado pelos órgãos competentes dos países e fiscalizado pela Jife", disse Schaepe à Folha. "O que se combate é a produção para fins ilegais."
Segundo ele, não existe nenhum impedimento legal para que os países produtores incentivem outros usos legais para a coca ou para qualquer outro produto de uso controlado, mas isso poderia criar dificuldades para as campanhas de prevenção às drogas.
"Se a coca, a maconha ou a papoula (matéria-prima do ópio e da heroína) se tornam comuns, a acessibilidade traz a sensação de que não são produtos que provocam algum tipo de dano", afirma.
Esse problema não acontece, na sua opinião, com a presença de um extrato de coca na Coca-Cola. "Quem toma o refrigerante não o faz por causa disso, diferentemente de um jovem alemão que toma cerveja de maconha achando que está consumindo de maneira legal um produto ilegal -apesar de que essa cerveja, assim como a Coca-Cola, não tem nenhum traço de droga em sua composição", diz Schaepe.
"Essa suposta transgressão faz parte do marketing da cerveja, mas a Coca-Cola não faz isso. Alguém poderia até avançar dizendo que o nome do produto faz alusão à coca, mas seria avançar demais."


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