São Paulo, quinta-feira, 25 de março de 2004

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ATENTADOS EM MADRI

Rei e rainha choram e cumprimentam um a um os parentes das vítimas, diante de dirigentes de vários países

Missa por mortos emociona espanhóis

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA, EM MADRI

As 56 vozes do coral da catedral de La Almudena entoam "Rosto Ensangüentado", de Johan Sebastian Bach. O coro acompanha os passos da família real espanhola, que vai cumprimentar, um a um, os cerca de 500 parentes das vítimas dos atentados de 11 de março.
Banco a banco, pessoa a pessoa, o rei Juan Carlos 1º cumprimenta um aqui, abraça outro ali, dá um tapinha carinhoso no rosto de um terceiro, pára para conversar com um senhor de sobretudo verde, gesticulam muito ambos. Parece velório de bairro.
Não é. É o funeral de Estado para as 190 vítimas do "11M", o momento em que uma instituição milenar (a Igreja Católica) e uma monarquia secular tentam oferecer, com a pompa inigualável de que são capazes, um bálsamo para males mais mundanos.
O último ruído do mundo externo atingiu a catedral, bem no centro de Madri, ao lado do Palácio Real, pouco antes da missa, quando o pai de uma vítimas disse ao premiê José María Aznar: "Señor Aznar, le hago responsable de la muerte de mi hijo".
O rei e a rainha Sofia viraram a cabeça para ver o que estava acontecendo, mas o organista da catedral já estava tocando o hino espanhol, que, excepcionalmente, substituiu o cântico de entrada característico das missas.
Antes, outro protesto: segundo o jornal "El País", lideranças protestantes, judias, muçulmanas e adventistas enviaram carta ao governo e aos partidos protestando contra o fato de o funeral realizar-se em templo católico, "quando deveria ter sido buscado um recinto civil, por respeito também aos ateus e agnósticos".
Mas, depois de iniciada a cerimônia, o ruído do mundo desapareceu, como desapareceram do centro da cena os dignitários estrangeiros presentes (cerca de 50) e as autoridades espanholas. Ficaram o rei, a rainha, suas filhas, Cristina e Elena (com os maridos), e seu filho, Felipe, com sua noiva, a jornalista Letizia Ortiz -cujo casamento será na mesma Almudena, em 22 de maio.
A família real vestia luto fechado, bem como os dirigentes estrangeiros, a ponto de Cherie, a mulher de Tony Blair, premiê britânico, usar até um chapéu negro.
A exceção: o príncipe Mulay Rachid, irmão do rei do Marrocos, de túnica marroquina branca, formando um contraste que puxava cochichos, ainda mais que são marroquinos os principais suspeitos dos atentados.
Também o príncipe britânico Charles atraiu cochichos, porque não resistiu e cochilou leve e rapidamente durante a homilia.
À frente de 18 bispos e três cardeais, o arcebispo de Madri, Antonio María Rouco Varela, presidia a cerimônia em que foi lida a 1ª Epístola de são João, que é o relato da ressurreição de Lázaro.
Terminou com: "Eu sou a ressurreição e a vida. O que crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá, e o que está vivo e crê em mim não morrerá".
O arcebispo madrileno retomou o tema na homilia, depois de aceitar que "a morte é sempre um enigma indecifrável para o homem, quanto mais a morte violenta". O rei ouviu a homilia com a cabeça abaixada e apoiada nas duas mãos unidas em oração.
Dom Rouco Varela lembrou que Marta, a irmã de Lázaro, cobrou de Jesus: "Se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido".
O cardeal especulou então com a possibilidade de que muitos dos parentes que ouviam seu sermão e enxugavam suas lágrimas deveriam ter-se perguntado "onde estava Jesus em 11 de março?".
Receitou, então, "ante a estratégia do ódio, a estratégia do amor". Menos etereamente, pediu a todos que fugissem de "toda forma de nacionalismo exacerbado, de racismo e de intolerância".
Para o celebrante, "se [os terroristas] não nos fizerem perder o amor e a generosidade, terão ficado sem armas". O coral chamou para a comunhão com "Yo Soy el Canto de la Vida". Os familiares das vítimas comungaram, alguns pararam para cumprimentar a rainha, que chorou sem pudor e disfarce, e o rei, que também não disfarçou o lenço com que assoou o nariz depois do choro.
A catedral é espartana, se comparada a outras da Espanha, como a de Toledo. Foi consagrada há apenas 11 anos, pelo papa João Paulo 2º, embora a primeira pedra tivesse sido colocada em 1883.
Ao fundo do altar principal (no total, são três) e atrás do Cristo na cruz, pendia no alto um gigantesco laço de crepom negro, que acabou se tornando o símbolo da dor de Madri pelos seus mortos.
As autoridades espanholas ficaram de um lado, as estrangeiras do outro. Colin Powell, o secretário americano de Estado, por não ser chefe de governo ou de Estado, foi relegado à quinta fila dos estrangeiros, atrás dos presidentes Jorge Sampaio (Portugal) e Jacques Chirac (França), nos primeiros bancos. A Europa em peso mandou seus governantes. A América Latina, ninguém, a não ser seus embaixadores.
O cardeal de Madri fez questão de dizer: "Não esqueceremos deste gesto tão grande de solidariedade". O coral soltou então o "Rosto Ensangüentado", e a família real passou a cumprimentar os familiares, lágrimas correndo pelas faces como se também fossem parentes de todos e cada um dos presentes.


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