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ATENTADOS EM MADRI
Rei e rainha choram e cumprimentam um a um os parentes das vítimas, diante de dirigentes de vários países
Missa por mortos emociona espanhóis
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA, EM MADRI
As 56 vozes do coral da catedral
de La Almudena entoam "Rosto
Ensangüentado", de Johan Sebastian Bach. O coro acompanha os
passos da família real espanhola,
que vai cumprimentar, um a um,
os cerca de 500 parentes das vítimas dos atentados de 11 de março.
Banco a banco, pessoa a pessoa,
o rei Juan Carlos 1º cumprimenta
um aqui, abraça outro ali, dá um
tapinha carinhoso no rosto de um
terceiro, pára para conversar com
um senhor de sobretudo verde,
gesticulam muito ambos. Parece
velório de bairro.
Não é. É o funeral de Estado para as 190 vítimas do "11M", o momento em que uma instituição
milenar (a Igreja Católica) e uma
monarquia secular tentam oferecer, com a pompa inigualável de
que são capazes, um bálsamo para males mais mundanos.
O último ruído do mundo externo atingiu a catedral, bem no
centro de Madri, ao lado do Palácio Real, pouco antes da missa,
quando o pai de uma vítimas disse ao premiê José María Aznar:
"Señor Aznar, le hago responsable de la muerte de mi hijo".
O rei e a rainha Sofia viraram a
cabeça para ver o que estava acontecendo, mas o organista da catedral já estava tocando o hino espanhol, que, excepcionalmente,
substituiu o cântico de entrada
característico das missas.
Antes, outro protesto: segundo
o jornal "El País", lideranças protestantes, judias, muçulmanas e
adventistas enviaram carta ao governo e aos partidos protestando
contra o fato de o funeral realizar-se em templo católico, "quando
deveria ter sido buscado um recinto civil, por respeito também
aos ateus e agnósticos".
Mas, depois de iniciada a cerimônia, o ruído do mundo desapareceu, como desapareceram do
centro da cena os dignitários estrangeiros presentes (cerca de 50)
e as autoridades espanholas. Ficaram o rei, a rainha, suas filhas,
Cristina e Elena (com os maridos), e seu filho, Felipe, com sua
noiva, a jornalista Letizia Ortiz
-cujo casamento será na mesma
Almudena, em 22 de maio.
A família real vestia luto fechado, bem como os dirigentes estrangeiros, a ponto de Cherie, a
mulher de Tony Blair, premiê britânico, usar até um chapéu negro.
A exceção: o príncipe Mulay Rachid, irmão do rei do Marrocos,
de túnica marroquina branca,
formando um contraste que puxava cochichos, ainda mais que
são marroquinos os principais
suspeitos dos atentados.
Também o príncipe britânico
Charles atraiu cochichos, porque
não resistiu e cochilou leve e rapidamente durante a homilia.
À frente de 18 bispos e três cardeais, o arcebispo de Madri, Antonio María Rouco Varela, presidia a cerimônia em que foi lida a
1ª Epístola de são João, que é o relato da ressurreição de Lázaro.
Terminou com: "Eu sou a ressurreição e a vida. O que crê em
mim, ainda que tenha morrido,
viverá, e o que está vivo e crê em
mim não morrerá".
O arcebispo madrileno retomou o tema na homilia, depois de
aceitar que "a morte é sempre um
enigma indecifrável para o homem, quanto mais a morte violenta". O rei ouviu a homilia com
a cabeça abaixada e apoiada nas
duas mãos unidas em oração.
Dom Rouco Varela lembrou
que Marta, a irmã de Lázaro, cobrou de Jesus: "Se estivesses aqui,
meu irmão não teria morrido".
O cardeal especulou então com
a possibilidade de que muitos dos
parentes que ouviam seu sermão
e enxugavam suas lágrimas deveriam ter-se perguntado "onde estava Jesus em 11 de março?".
Receitou, então, "ante a estratégia do ódio, a estratégia do amor".
Menos etereamente, pediu a todos que fugissem de "toda forma
de nacionalismo exacerbado, de
racismo e de intolerância".
Para o celebrante, "se [os terroristas] não nos fizerem perder o
amor e a generosidade, terão ficado sem armas". O coral chamou
para a comunhão com "Yo Soy el
Canto de la Vida". Os familiares
das vítimas comungaram, alguns
pararam para cumprimentar a
rainha, que chorou sem pudor e
disfarce, e o rei, que também não
disfarçou o lenço com que assoou
o nariz depois do choro.
A catedral é espartana, se comparada a outras da Espanha, como a de Toledo. Foi consagrada
há apenas 11 anos, pelo papa João
Paulo 2º, embora a primeira pedra tivesse sido colocada em 1883.
Ao fundo do altar principal (no
total, são três) e atrás do Cristo na
cruz, pendia no alto um gigantesco laço de crepom negro, que acabou se tornando o símbolo da dor
de Madri pelos seus mortos.
As autoridades espanholas ficaram de um lado, as estrangeiras
do outro. Colin Powell, o secretário americano de Estado, por não
ser chefe de governo ou de Estado, foi relegado à quinta fila dos
estrangeiros, atrás dos presidentes Jorge Sampaio (Portugal) e
Jacques Chirac (França), nos primeiros bancos. A Europa em peso
mandou seus governantes. A
América Latina, ninguém, a não
ser seus embaixadores.
O cardeal de Madri fez questão
de dizer: "Não esqueceremos deste gesto tão grande de solidariedade". O coral soltou então o "Rosto
Ensangüentado", e a família real
passou a cumprimentar os familiares, lágrimas correndo pelas faces como se também fossem parentes de todos e cada um dos
presentes.
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