São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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PORTUGAL

Em meio à euforia, jovens que derrubaram a ditadura na última potência colonial européia foram comemorar nos bares

"Festa" da Revolução dos Cravos faz 30 anos

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA, EM BRUXELAS

A "Revolução dos Cravos" foi, sim, uma revolução, mas foi acima de tudo uma grande festa, de dar tanta inveja aos brasileiros que se opunham ao regime militar da época, que estes recuperaram canção em que Chico Buarque de Hollanda sonhava com um Brasil que fosse "um imenso Portugal".
Que houve uma revolução, ninguém hoje duvida. Basta um número, talvez o mais importante indicador social, para prová-lo: em 1974, quando a canção "Grandola, Vila Morena" deu o sinal para começar o movimento militar, na madrugada de 25 de abril, 37,9 de cada mil crianças portuguesas morriam antes de completar cinco anos. Hoje, são apenas cinco por mil.
Falar da festa é mais difícil. Não havia, de fato, muito tempo para festas para a multidão de espiões que acampou em Lisboa após o 25 de abril. Como é que um pequeno país, hoje com 10 milhões de habitantes, então isolado do mundo e sempre periférico, pôde causar tanto ruído?

Guerra Fria
É só voltar ao contexto da época. Em meados dos anos 70, pela primeira vez (seria a última) parecia que o comunismo tinha chances de ganhar a Guerra Fria contra o capitalismo.
Os Estados Unidos estavam perdendo a Guerra do Vietnã, a primeira derrota militar de toda sua história. Tinha-se à época como certo que, caindo o Vietnã, logo todo o Sudeste asiático se cobriria de vermelho (de fato, logo depois o Laos e o Camboja caíram em mãos de governos comunistas, mas foi só).
Com a revolução em Portugal, haveria inexoravelmente a descolonização na África e, em conseqüência, o poder iria para movimentos guerrilheiros de orientação marxista-leninista.
E foi, na Guiné-Bissau, em Moçambique, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe e em Angola, para seguir a ordem cronológica da independência (Timor Leste também ficou independente na mesma época, mas foi logo depois ocupado pela Indonésia).
Na própria Europa Ocidental, a linha de frente da Guerra Fria, a ascensão ao poder de militares em boa parte de esquerda em Portugal, mais a perspectiva de que o Partido Comunista Italiano ganhasse em breve as eleições introduziria uma espécie de cavalo de Tróia na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar anticomunista).
Era natural, nesse cenário, que os espiões se acotovelassem em Lisboa para tentar antecipar os movimentos dos jovens capitães revolucionários.
Não tinham muito trabalho. A festa em que se transformou a revolução fazia com que os mais jovens e mais afoitos fossem para as casas noturnas de Lisboa a bordo de suas "chaimites", os carros de combate, que deixavam estacionados bem à porta dos estabelecimentos.
Era fácil saber, portanto, onde estavam, como era fácil obter confidências depois da segunda ou terceira dose de uísque.
Pecado burguês de jovens revolucionários? Talvez. Mas era apenas a conseqüência lógica de o 25 de abril ter "destapado a panela de pressão", como analisa hoje o ex-deputado comunista Carlos Brito.
Portugal era uma rara ditadura na Europa Ocidental, e uma ditadura já obsoleta, velha de 42 anos. Portugal era a última potência colonial remanescente na Europa. No ano da revolução, 150 mil soldados participavam das guerras na África, 8.803 dos quais voltaram mortos e 15 mil feridos, para citar os números apenas do ano de 1974.
Portugal era um país inteiramente vestido de cinza e negro, de censura à mídia e aos espetáculos, de divórcio proibido, de polícia política.

"3D contra 3F"
Não por acaso um dos mil cânticos revolucionários de 1974 era o "3D contra 3F", "democracia, descolonização e desenvolvimento" contra "fado, Fátima e futebol", sendo Fátima um dos centros de peregrinação religiosa mais famosos do mundo.
Era natural, nesse ambiente, que a festa não raro predominasse sobre a revolução.
Quando Vasco Gonçalves, o coronel mais próximo dos comunistas, tornou-se primeiro-ministro, os anarquistas pintaram os muros do hospício de Lisboa com a frase: "Vasco, volte para casa" (os inimigos diziam que o premiê era desequilibrado).
A limpeza pública caiou o muro, mas, no dia seguinte, o "a" dentro de um círculo dos anarquistas assinava outra frase: "Vasco, ao menos venha para consultas".
Outra vez o muro foi pintado, outra vez voltaram os anarquistas: "Vasco, pelo amor de Deus tome os remédios".
A fase anárquica da revolução terminou quando Vasco Gonçalves caiu em 1975, ano e meio depois que os cravos vermelhos, símbolo da revolução, enfeitaram o país de ponta a ponta.
Portugal já não tinha mais colônias, o divórcio havia sido legalizado, a polícia política havia sido dissolvida, e até a primeira eleição livre em praticamente 50 anos se realizou (em abril de 75) para escolher os delegados a uma Assembléia Constituinte.
Hoje, 30 anos depois, os 3D convivem com os 3F harmonicamente: Portugal é uma democracia, a descolonização foi feita, o país se desenvolveu (os portugueses são hoje duas vezes mais ricos), mas Fátima continua sendo assiduamente freqüentada, o fado continua tocando e o futebol continua tão importante que, em junho, Portugal será a sede da Eurocopa, o torneio de seleções européias -neste abril, os cartazes promovendo a festa esportiva superam de muito longe as evocações aos cravos vermelhos do 25 de abril de 1974.


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